DESCRIÇÃO DE FRANCISKA...
(Homenagem à memória de Viriato da Cruz)
O meu amigo andava triste! E
eu era o único que conhecia o motivo daquela tristeza. Eu, e a Franciska (
não é gralha.... é assim mesmo.... Franciska com kapa). Uma estória de
amores e desamores!
«Tocador de Quissange»
Pintor Angolano Neves e Sousa
O meu amigo era mestiço. Era um
mulato que rondava o metro e oitenta de altura, peso a condizer, olhos grandes,
e uma carapinha que deixava as miúdas do Bairro da Samba com a cabeça à roda.
Não conheci nenhuma que não olhasse para ele sem segundas intenções. Em seu
redor havia sempre uma mulher que o olhava com ares atrevidos. Das três cores
do selo de povoamento: Pretas, brancas e mestiças. E eu, branco deslavado, sem
cheiro que se cheirasse, aproveitei a aura dele e andei de merengue em
merengue, de rebita em rebita.... meses a fio.... ali pelas praias do Bispo e
da Corimba, aproveitando também da companhia das suas admiradoras.
«Um Homem de Outro Mundo»
Capa de Livro: Neves e Sousa
Até que apareceu a Franciska.
Vinha do outro lado da cidade. Do Bairro Operário, o maior musseque de Luanda.
Vinha para merengar, para rebitar até de madrugada, em companhia de um grupo de
amigas luandinas.
Convém apresentá-la melhor para
se entender que a paixão avassaladora do meu amigo não era apenas sentimento,
eram também sentidos. Aqueles sentidos que ele tinha sempre latentes.
«Mocinha Muxilengue»
Pintor Angolano Neves e Sousa
«Era uma negra alta, não tão alta
como o meu amigo, mas quase. Queixo erguido. Trazia o cabelo penteado em finas
tranças, filigrana pura, presas à cabeça por invisíveis ganchos e pequeníssimas
missangas a alindar. De uma das orelhas pendia um longo brinco de tambaque que
lhe tocava o ombro; na outra orelha, assim como que colada ao lóbulo, usava uma
pequena estrela dourada que se destacava na sua pele muito negra. A estrela do
"éme", disse-me mais tarde, quando ficámos amigos. Olhos cinzentos,
muito escuros, pestanudos, nariz direito e boca de lábios grossos, sensuais.
Dentes grandes e brancos, prontos a morder. Longo pescoço. Peito atrevido,
arrebitado, sem precisar de soutien. Barriga fina, lisa, plana, aveludada.
Pernas de tenista, musculosas, mas femininas, cobertas com uma quase invisível
penugem. Pés grandes, pés de quem andou descalça durante grande parte da sua
vida.» (Fim de descrição.)
Ah.... convém ainda dizer que do
seu guarda roupa apenas constavam mini-saias e t'shirts. Pronto, está
apresentada a mulher que deu volta à cabeça do meu amigo.
«Muhuila Solteira»
Pintor Angolano Neves e Sousa
E quando se cruzaram
foi como se ele não existisse.
Não lhe ligou
nenhuma.
Ele rogou a atenção
dela; E ela olhou para o outro lado.
Pediu a um amigo para
tipografar um cartão
Em que lhe pedia
namoro: num canto sim, noutro canto não;
O cartão foi
devolvido com o canto não dobrado.
Nem a avó Chica,
famosa kimbandeira,
Ao consultar os
búzios e as estrelas,
Acertou num feitiço
capaz.
Desesperado, andou
perdido - de amores, cucas e alguma liamba,
Acho eu - ali pelos
morros da Samba.
Até que o levámos ao
baile do Sr. Januário, no Bairro Operário,
Musseque de moças
bonitas, como é sabido.
E num salto maluco
atravessou a sala com a Franciska nos braços,
E a malta gritou «Aí
Benjamim!»
«Baile Mahungo»
Pintor Angolano Neves e Sousa
Mas essa parte já todos conhecemos.
O Ségio encarregou-se de nos contar isso muito bem.
- Este texto é uma homenagem à
memória de Viriato da Cruz. Foi ele o autor do «Namoro» que o Sérgio
tão bem musicou. O Viriato foi militante do «émepélá». Não o MPLA que
hoje governa Angola. Do outro, aquele «émepélá» por quem a Franciska
ostentava a estrelinha dourada no lóbulo da orelha.
Orson W. Calabrese
Agradecimentos a Orson W. Calabrese pela partilha do
texto.
Poet’anarquista
Viriato da Cruz
Poeta e Político Angolano
BREVE NOTA…
Outra figura proeminente da vida
politica e cultural de Angola, foi sem duvida Viriato Francisco Clemente
da Cruz. Nasceu em Kikuvo, Porto Amboim em 1928. Fez os estudos liceais em
Luanda.
Considerado um dos mais
importantes impulsionadores de uma poesia regionalista angolana nas décadas de
40 e 50, caracterizando-se a sua obra pelo apego aos valores africanos, quer
quanto à temática, quer quanto à forma. A sua produção está dispersa por
publicações periódicas e representada em várias antologias, das quais uma
- «No Reino de Caliban» - reúne a sua obra poética.
Foi uns principais mentores do
Movimento dos Novos Intelectuais de Angola (1948-49) e da revista Mensagem
(1951-1952).
Saiu de Angola em 1957 e em Paris
foi juntar-se a Mário Pinto de Andrade, tendo desenvolvido
intensa actividade política e cultural.
Foi membro-fundador e o primeiro
secretário-geral do MPLA durante os primeiros anos da década 60. Dissidente
deste movimento, esteve exilado em Portugal e noutros países europeus, fixando-se
posteriormente na China, onde veio a falecer em 13 de Julho de 1973.
Fonte: www.mazungue.com
MAMÁ
NEGRA
(Canto
de esperança)
(À
memória do poeta haitiano Jacques Roumain)
Tua
presença, minha Mãe - drama vivo duma Raça,
Drama
de carne e sangue
Que
a Vida escreveu com a pena dos séculos!
Pela
tua voz
Vozes
vindas dos canaviais dos arrozais dos cafezais
[dos
seringais dos algodoais!...
Vozes
das plantações de Virgínia
dos
campos das Carolinas
Alabama
Cuba
Brasil...
Vozes
dos engenhos dos banguês das tongas dos eitos
[das
pampas das minas!
Vozes
de Harlem Hill District South
vozes
das sanzalas!
Vozes
gemendo blues, subindo do Mississipi, ecoando
[dos
vagões!
Vozes
chorando na voz de Corrothers:
Lord God, what will have we done
-
Vozes de toda América! Vozes de toda África!
Voz
de todas as vozes, na voz altiva de Langston
Na
bela voz de Guillén...
Pelo
teu dorso
Rebrilhantes
dorsos aso sóis mais fortes do mundo!
Rebrilhantes
dorsos, fecundando com sangue, com suor
[amaciando
as mais ricas terras do mundo!
Rebrilhantes
dorsos (ai, a cor desses dorsos...)
Rebrilhantes
dorsos torcidos no "tronco", pendentes da
[forca,
caídos por Lynch!
Rebrilhantes
dorsos (Ah, como brilham esses dorsos!)
ressuscitados
em Zumbi, em Toussaint alevantados!
Rebrilhantes
dorsos...
brilhem,
brilhem, batedores de jazz
rebentem,
rebentem, grilhetas da Alma
evade-te,
ó Alma, nas asas da Música!
...do
brilho do Sol, do Sol fecundo
imortal
e
belo...
Pelo
teu regaço, minha Mãe,
Outras
gentes embaladas
à
voz da ternura ninadas
do
teu leite alimentadas
de
bondade e poesia
de
música ritmo e graça...
santos
poetas e sábios...
Outras
gentes... não teus filhos,
que
estes nascendo alimárias
semoventes,
coisas várias,
mais
são filhos da desgraça:
a
enxada é o seu brinquedo
trabalho
escravo - folguedo...
Pelos
teus olhos, minha Mãe
Vejo
oceanos de dor
Claridades
de sol-posto, paisagens
Roxas
paisagens
Dramas
de Cam e Jafé...
Mas
vejo (Oh! se vejo!...)
mas
vejo também que a luz roubada aos teus
[olhos,
ora esplende
demoniacamente
tentadora - como a Certeza...
cintilantemente
firme - como a Esperança...
em
nós outros, teus filhos,
gerando,
formando, anunciando -
o
dia da humanidade
O
DIA DA HUMANIDADE!...
Viriato
da Cruz