Ângelo Vaz Pinto Azevedo Coutinho de Lima, mais conhecido por Ângelo de Lima, nasceu no Porto, a 30 de Julho de 1872. Foi um poeta da corrente simbolista, membro da revista Orpheu, que viria a integrar expedição militar a Moçambique de onde regressou em estado mental debilitado. Da sua obra destacam-se «Poemas Inéditos», «Poesias Completas» e «Poemas in Orpheu 2 e outros escritos». Ângelo de Lima faleceu em Lisboa, a 14 de Agosto de 1921. Boas leituras!
Poet'anarquista
Ângelo de Lima
Poeta Português
«Retrato do Doente Pragana»
Ângelo de Lima
SOBRE O POETA…
Escritor português, frequentou o Colégio Militar e estudou
na Academia de Belas-Artes do Porto.
Conspirador da revolução republicana de 31
de Janeiro, foi enviado, um pouco antes desta ocorrer, numa expedição militar a
Moçambique. Após o seu regresso de África começou a manifestar os primeiros
sintomas de loucura, sendo então internado. Uma parte significativa da sua vida
seria passada em estabelecimentos psiquiátricos.
Publicou pela primeira vez um conjunto significativo de
poemas no segundo número da revista modernista Orpheu. Nesses poemas notam-se
já algumas das características mais marcantes da sua poesia, nomeadamente o
carácter desviante da linguagem e o emprego de vocábulos novos, o que o aproxima
da corrente simbolista.
A sua linguagem poética parece reflectir a doença mental que
o vitimou, e os seus versos, se por vezes dão a sensação de terem sido escritos
no mais completo estado de alucinação, conseguem também ser extremamente
lúcidos e bem construídos.
Tendo colaborado no Orpheu, a sua poesia aproxima-se mais da
corrente simbolista do que da estética modernista. A sua obra poética, muito
breve, encontra-se reunida em Poesias Completas (1971).
Com um dia de atraso (tinha tudo preparado, mas...), publicação de «Auto-Retrato» (1888, um ano antes da sua morte vendo-se como artista), e o quadro «Campo de Papoilas» do pintor holandês pós-impressionista, Vincent van Gogh. Foi no dia 29 de Julho de 1890 que se suicidou com um tiro, naquela que foi a última paisagem da sua vida como homem, e como pintor - «Campo de Trigo com Corvos». Pode rever aqui- «PINTURA
- VAN GOGH», e apreciar a obra mencionada. O quadro ficou concluído poucos dias antes de pôr fim à vida; as cores e a paisagem são reveladoras do estado de espírito e inquietude do artista.
Recebi ontem esta pintura, imagem partilhada pelo meu filho na minha página do facebook. O desenho a cores, da autoria de JP Galhardas representando «O Bode», encontra-se no tecto de um sótão, numa casa de gente amiga situada em Évora, que o pintor visitava com frequência quando estudou na capital alentejana. Tudo se passou no seio de um grupo de amigos, entre os quais se encontrava JP e eu próprio, à conversa, ouvindo música e umas 'cenas' para fluir. Na passagem da data do seu nascimento (30 de Julho de 1964), publica-se pintura inédita prestando homenagem a JP, com sentidos agradecimentos ao Rolando pela bela foto que me enviou, e a sua avó materna, a Madalena que ao longo dos anos tão bem estimou a obra de arte do nosso amigo João Paulo. Bem-hajam!
Poet'anarquista
Representação do Bode (Mitologia)
JP Galhardas
O BODE (MITOLOGIA)
Era um fim de tarde, d' esplendoroso sol!...
Reunidos no sótão da casa de Madalena
Começava o ritual, preparava-se a 'cena',
Ao som de acordes do velho Rock & Roll.
JP, esfumaçando a 'dita' com algum fervor,
Falava do diabo na representação mitológica...
Do pentagrama invertido, da estrela simbólica,
E o demónio em forma de bode assustador!
Pediu as tintas... por aí se ficou de conversa!...
Amei profundamente um certo alguém
Que durante algum tempo
Me amou também
Depois partiu, sem me dar explicação
Muito eu tenho chorado
Pra desabafar, meu coração
Meu coração, amante vadio
Ficou vazio com a sua ingratidão
E pra perdoar
Me sinto tão frio
Quisera ter a chama
Do início da nossa paixão
Como eu te amei
Ninguém te amará
Desejo que você seja bem feliz
Estou chorando, desabafando
E não lamento
Todo bem que eu lhe fiz
Vou, vou-vos mostrar mais um pedaço da minha vida, um pedaço
um pouco especial, trata-se de um texto que foi escrito, assim, de um só jorro,
numa noite de Fevereiro de 79, e que talvez tenha um ou outro pormenor que já
não é muito actual. Eu vou-vos dar o texto tal e qual como eu o escrevi nessa
altura, sem ter modificado nada, por isso vos peço que não se deixem distrair
por esses pormenores que possam ser já não muito actuais e que isso não
contribua para desviar a vossa atenção do que me parece ser o essencial neste
texto.
Chama-se FMI.
Quer dizer: Fundo Monetário Internacional.
Não sei porque é que se riem, é uma organização democrática
dos países todos, que se reúnem, como as pessoas, em torno de uma mesa para
discutir os seus assuntos, e no fim tomar as decisões que interessam a
todos...
É o internacionalismo monetário!
FMI
Cachucho não é coisa que me traga a mim
Mais novidade do que lagostim
Nariz que reconhece o cheiro do pilim
Distingue bem o Mortimore do Meirim
A produtividade, ora aí está, quer dizer
Há tanto nesta terra que ainda está por fazer
Entrar por aí a dentro, analisar, e então
Do meu 'attaché-case' sai a solução!
FMI Não há graça que não faça o FMI
FMI O bombástico de plástico para si
FMI Não há força que retorça o FMI
Discreto e ordenado mas nem por isso fraco
Eis a imagem 'on the rocks' do cancro do tabaco
Enfio uma gravata em cada fato-macaco
E meto o pessoal todo no mesmo saco
A produtividade, ora aí está, quer dizer
Não ando aqui a brincar, não há tempo a perder
Batendo o pé na casa, espanador na mão
É só desinfectar em superprodução!
FMI Não há truque que não lucre ao FMI
FMI O heróico paranóico harakiri
FMI Panegírico pró lírico daqui
Palavras, palavras, palavras e não só
Palavras para si, palavras para dó
A contas com o nada que swingar o sol-e-dó
Depois a criadagem lava o pé e limpa o pó
A produtividade, ora nem mais, celulazinhas cinzentas
Sempre atentas
E levas pela tromba se não te pões a pau
Um encontrão imediato do 3º grau!
FMI Não há lenha que detenha o FMI
FMI Não há ronha que envergonhe o FMI
FMI ...
Entretem-te filho, entretem-te,
não desfolhes em vão este malmequer que
bem-te-quer, mal-te-quer, vem-te-quer, ovomalte-quer-messe gigantesca,
vem-te bem, bem te vim,
vim na cozinha, vim na casa-de-banho,
vim-me no Politeama, vim-me no Águia D’ouro, vim-me em toda a parte,
vem-te filho, vem-te comer ao olho, vem-te comer à mão,
olha os pombinhos pneumáticos como te arrulham por esses cartazes fora,
olha a música no coração da Indira Gandhi,
olha o Moshe Dayan que te traz debaixo d'olho,
o respeitinho é muito lindo e nós somos um povo de respeito, né filho?
nós somos um povo de respeitinho muito lindo,
saímos à rua de cravo na mão sem dar conta de que saímos à rua de cravo na mão
a horas certas, né filho?
Consolida filho, consolida,
enfia-te a horas certas no casarão da Gabriela que o malmequer vai-te tratando
do serviço nacional de saúde.
Consolida filho, consolida, que o trabalhinho é muito lindo,
o teu trabalhinho é muito lindo, é o mais lindo de todos,
com'ò Astro, não é filho? O cabrão do astro entra-te pela porta das traseiras,
tu tens um gozo do caraças, vais dormir entretido, não é?
Pois claro, ganhar forças, ganhar forças para consolidar,
para ver se a gente consegue num grande esforço nacional estabilizar esta desestabilização
filha-da-puta, não é filho?
Pois claro!
E estás aí a olhar para mim, estás aí a ver-me dar 33 voltinhas por minuto,
pagaste o teu bilhete,
pagaste o teu imposto de transacção
e estás a pensar lá com os teus zodíacos: "Este tipo está-me a gozar, este
gajo quem é que julga que é?" né filho?
Pois não é verdade que tu és um herói desde que nasceste?
A ti não é qualquer totobola que te enfia o barrete, meu grande safadote!
Meu Fernão Mendes Pinto de merda, né filho?
Onde está o teu Extremo Oriente, filho?
Aniki-bé-bé, aniki-bó-bó, tu és Sepúlveda, tu és Adamastor,
pois claro, tu sozinho consegues enrabar as Nações Unidas com passaporte de
coelho, não é filho? Mal eles sabem, pois é, tu sabes o que é gozar a vida!
Entretem-te filho, entretem-te!
Deixa-te de políticas que a tua política é o trabalho,
trabalhinho, porreirinho da Silva,
e salve-se quem puder que a vida é curta e os santos não ajudam quem anda para
aqui a encher pneus com este paleio de sanzala em ritmo de pop-chula, não é
filho?
A-one, a-two, a-one-two-three
FMI dida didadi dadi dadi da didi
FMI ...
Camòniú sanòvabiche! Camóne beibi a ver se me comes!
Camóne Luís Vaz, amanda-lhe co'os decassílabos que eles já vão saber o que é
meterem-se com uma nação de poetas!
E zás! enfio-te o Manuel Alegre no Mário Soares,
zás! enfio-te o Ary dos Santos no Álvaro de Cunhal,
zás! enfio-te a Natalia Correia no Sá Carneiro,
zás! enfio-te o Zé Fanha no Acácio Barreiros,
zás! enfio-te o Pedro Homem de Melo no Parque Mayer
e acabamos todos numa sardinhada ao integralismo Lusitano, a estender o braço,
meio Rolão Preto, meio Steve McQueen,
ok boss, tudo ok, estamos numa porreira meu,
um tripe fenomenal, proibido voltar atrás, viva a liberdade, né filho?
Pois, irreversível, pois claro, irreversívelzinho,
pluralismo a dar com um pau,
nada será como dantes, agora todos se chateiam de outra maneira, né filho?
Olha que porra, deixa lá correr o marfil, homem, andas numa alta, pá,
é assim mesmo, cada um a curtir a sua, podia ser tão porreiro, não é?
Preocupações, crises políticas pá?
A culpa é dos partidos pá!
Esta merda dos partidos é que divide a malta pá,
pois pá, é só paleio pá, o pessoal não quer é trabalhar pá!
Razão tem o Jaime Neves pá!
(Olha deixaste cair as chaves do carro!)
Pois pá!
(Que é essa orelha de preto que tens no porta-chaves?)
É pá, deixa-te disso, não desestabilizes pá!
Eh, faz favor, mais uma bica e um pastel de nata.
Uma porra pá, um autêntico desastre o 25 de Abril,
esta confusão pá,
a malta estava sossegadinha, a bica a 15 tostões, a gasosa a sete e coroa...
Tá bem, essa merda da pide pá, Tarrafais e o carago,
mas no fim de contas quem é que não colaborava, ah?
Quantos bufos é que não havia nesta merda deste país, ah?
Quem é que não se calava, quem é que arriscava coiro e cabelo, assim mesmo, o
que se chama arriscar, ah?
Meia dúzia de líricos, pá,
meia dúzia de líricos que acabavam todos a fugir para o estrangeiro, pá,
isto é tudo a mesma carneirada!
Oh sr. guarda venha cá - á,
venha ver o que isto é - é,
o barulho que vai aqui - i,
o neto a bater na avó - ó,
deu-lhe um pontapé no cu, né filho?
Tu vais conversando, conversando,
que ao menos agora pode-se falar...
...ou já não se pode?
Ou já começaste a fazer a tua revisãozinha constitucional tamanho familiar, ah?
Estás desiludido com as promessas de Abril, né?
As conquistas de Abril!
Eram só paleio a partir do momento que tas começaram a tirar e tu ficaste
quietinho, né filho?
E tu fizeste como o avestruz, enfiaste a cabeça na areia, "não é nada
comigo, não é nada comigo", né?
E os da frente que se lixem...
E é por isso que a tua solução é não ver, é não ouvir, é não querer ver, é não
querer entender nada,
precisas de paz de consciência,
não andas aqui a brincar, né filho?
Precisas de ter razão,
precisas de atirar as culpas para cima de alguém
e atiras as culpas para os da frente,
para os do 25 de Abril,
para os do 28 de Setembro,
para os do 11 de Março,
para os do 25 de Novembro, para os do...
... que dia é hoje, hã?
FMI Dida didadi dadi dadi da didi
FMI ...
Não há português nenhum que não se sinta culpado de qualquer coisa, não é
filho?
"Todos temos culpas no cartório", foi isso que te ensinaram, não é
verdade?
Esta merda não anda porque a malta, pá, a malta não quer que esta merda ande.
Tenho dito.
A culpa é de todos, a culpa não é de ninguém, não é isto verdade?
Quer-se dizer, há culpa de todos em geral e não há culpa de ninguém em
particular!
Somos todos muita bons no fundo, né?
Somos todos uma nação de pecadores e de vendidos, né?
Somos todos, ou anti-comunistas ou anti-fascistas,
estas coisas até já nem querem dizer nada, ismos para aqui, ismos para acolá,
as palavras é só bolinhas de sabão, parole parole parole
e o Zé é que se lixa,
cá o pintas é sempre mexilhão...
Eu quero lá saber deste paleio vou mas é ao futebol, pronto,
viva o Porto, viva o Benfica,
Lourosa! Lourosa!
Marrazes! Marrazes!
Fora o arbitro! gatuno! Qual gatuno, qual caralho!
Razão tinha o Tonico Bastos para se entreter, né filho?
Entretem-te, filho, com as tuas viúvas e as tuas órfãs
que o teu delegado sindical vai tratando da saúde aos administradores,
entretem-te, que o ministro do trabalho trata da saúde aos delegados sindicais,
entretem-te, filho, que a oposição parlamentar trata da saúde ao ministro do
trabalho,
entretem-te, que o Eanes trata da saúde à oposição parlamentar,
entretem-te, que o FMI trata da saúde ao Eanes,
entretém-te, filho,
e vai para a cama descansado
que há milhares de gajos inteligentes a pensar em tudo neste mesmo instante,
enquanto tu adormeces a não pensar em nada,
milhares e milhares de tipos inteligentes e poderosos
com computadores, redes de policia secreta, telefones, carros de assalto,
exércitos inteiros, congressos universitários, eu sei lá!
Podes estar descansado que o Teng Hsiao-Ping está a tratar da tua vida com o
Jimmy Carter,
o Brejnev está a tratar de ti com o João Paulo II,
tudo corre bem,
a ver quem se vai abotoar com os 25 tostões de riqueza que tu vais produzir
amanhã nas tuas oito horas.
A ver quem vai ser capaz de convencer de que a culpa é tua e só tua se o teu
salário perde valor todos os dias,
ou de te convencer de que a culpa é só tua se o teu poder de compra é como o
rio de S. Pedro de Muel
que se some nas areias em plena praia, ali a 10 metros do mar em maré cheia e
nunca consegue desaguar de maneira que se possa dizer: porra, finalmente o rio
desaguou!
Vão-te convencer de que a culpa é tua e tu sem culpa nenhuma, estás tu a ver?
Que tens tu a ver com isso, não é filho?
Cada um que se vá safando como puder, é mesmo assim, não é?
Tu fazes como os outros, fazes o que tens a fazer:
- votas à esquerda moderada nas sindicais,
- votas no centro moderado nas deputais,
- e votas na direita moderada nas presidenciais!
Que mais querem eles? que lhes ofereças a Europa no natal?!
Era o que faltava!
É assim mesmo, julgam que te levam de mercedes?
toma, para safado, safado e meio, né filho? nem para a frente nem para trás!
e eles que tratem do resto, os gatunos, que são pagos para isso, né?
Claro! Que se lixem as alternativas, para trabalho já me chega.
Entretem-te meu anjinho, entretem-te,
que eles são inteligentes,
eles ajudam,
eles emprestam,
eles decidem por ti,
decidem tudo por ti:
- se hás-de construir barcos para a Polónia ou cabeças de alfinete para a
Suécia,
- se hás-de plantar tomate para o Canada ou eucaliptos para o Japão,
descansa que eles tratam disso,
- se hás-de comer bacalhau só nos anos bissextos ou se hás-de beber vinho
sintético de Alguidares-de-Baixo!
Descansa, não penses em mais nada,
que até neste país de pelintras se acha normal haver mãos desempregadas e se
acha inevitável haver terras por cultivar!
Descontrai baby, come on descontrai,
afinfa-lhe o Bruce Lee, afinfa-lhe a macrobiótica, o biorritmo, o horoscópio,
dois ou três ovniologistas, um gigante da ilha de Páscoa
e uma Grace do Mónaco de vez em quando para dar as boas festas às criancinhas!
Piramiza filho, piramiza,
antes que os chatos fujam todos para o Egipto,
que assim é que tu te fazes um homenzinho
e até já pagas multa se não fores ao recenseamento.
Pois pá, isto é um país de analfabetos, pá!
Dá-lhe no Travolta,
dá-lhe no discossáunde,
dá-lhe no pop-chula,
pop-chula pop-chula,
yeah yeah, jo-ta-pi-men-ta-for-e-ver!
Quanto menos souberes a quantas andas melhor para ti!
Não te chega para o bife? - antes no talho do que na farmácia!
Não te chega para a farmácia? - antes na farmácia do que no tribunal!
Não te chega para o tribunal? - antes a multa do que a morte!
Não te chega para o cangalheiro? - antes para a cova do que para não sei quem
que há-de vir,
cabrões de vindouros!
Hã? Sempre a merda do futuro! E eu que me quilhe!
Pois, pá!
Sempre a merda do futuro, a merda do futuro, e eu hã?
Que é que eu ando aqui a fazer?
Digam lá! e eu? José Mário Branco, 37 anos,
isto é que é uma porra!
anda aqui um gajo cheio de boas intenções,
a pregar aos peixinhos,
a arriscar o pêlo,
e depois?
É só porrada e mal-viver, é?
"O menino é mal criado", "o menino é pequeno-burguês",
"o menino pertence a uma classe sem futuro histórico"...
Eu sou parvo ou quê?
Quero ser feliz, porra,
quero ser feliz agora,
que se foda o futuro,
que se foda o progresso,
mais vale só do que mal acompanhado!
Vá: mandem-me lavar as mãos antes de ir para a mesa, filhos da puta de
progressistas do caralho da revolução que vos foda a todos!
Deixem-me em paz, porra,
deixem-me em paz e sossego,
não me emprenhem mais pelos ouvidos, caralho,
não há paciência, não há paciência,
deixem-me em paz caralho,
saiam daqui,
deixem-me sozinho só um minuto,
vão vender jornais e governos e greves e sindicatos e policias e generais para
o raio que vos parta!
Deixem-me sozinho, filhos da puta,
deixem só um bocadinho,
deixem-me só para sempre,
tratem da vossa vida que eu trato da minha, pronto, já chega,
sossego porra, silêncio porra,
deixem-me só, deixem-me só, deixem-me só,
deixem-me morrer descansado.
Eu quero lá saber do Artur Agostinho e do Humberto Delgado,
eu quero lá saber do Benfica e do bispo do Porto,
eu quero se lixe o 13 de Maio e o 5 de Outubro e o Melo Antunes e a rainha de
Inglaterra e o Santiago Carrilho e a Vera Lagoa,
deixem-me só porra!
rua!
larguem-me!
desòpila o fígado,
arreda!
t’arrenego Satanás!
filhos da puta!
Eu quero morrer sozinho ouviram?
Eu quero morrer,
eu quero que se foda o FMI,
eu quero lá saber do FMI,
eu quero que o FMI se foda,
eu quero lá saber que o FMI me foda a mim,
eu vou mas é votar no Pinheiro de Azevedo se ele tornar a ir para o hospital,
pronto, bardamerda o FMI,
o FMI é só um pretexto vosso seus cabrões,
o FMI não existe,
o FMI nunca aterrou na Portela coisa nenhuma,
o FMI é uma finta vossa para virem para aqui com esse paleio,
rua!
desandem daqui para fora!
a culpa é vossa!
a culpa é vossa!
a culpa é vossa!
a culpa é vossa!
a culpa é vossa!
a culpa é vossa!
(...)
Mãe, eu quero ficar sozinho...
Mãe, não quero pensar mais...
Mãe, eu quero morrer mãe.
Eu quero desnascer,
ir-me embora, sem sequer ter de me ir embora.
Mãe, por favor!
Tudo menos a casa em vez de mim,
útero maldito que não sou senão este tempo que decorre entre fugir de me
encontrar e me encontrar fugindo...
de quê mãe?
Diz, são coisas que se me perguntem?
Não pode haver razão para tanto sofrimento.
E se inventássemos o mar de volta?
E se inventássemos partir, para regressar?
Partir, e aí, nessa viajem, ressuscitar da morte às arrecuas que me deste.
Partida para ganhar,
partida de acordar, abrir os olhos,
numa ânsia colectiva de tudo fecundar,
terra, mar, mãe...
Lembrar como o mar nos ensinava a sonhar alto,
lembrar - nota a nota - o canto das sereias,
lembrar o "depois do adeus",
e o frágil e ingénuo cravo da Rua do Arsenal,
lembrar cada lágrima,
cada abraço,
cada morte,
cada traição,
partir aqui,
com a ciência toda do passado,
partir, aqui, para ficar...
Assim mesmo,
como entrevi um dia,
a chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila,
o azul dos operários da Lisnave a desfilar,
gritando ódio apenas ao vazio,
exército de amor e capacetes.
Assim mesmo, na Praça de Londres, o soldado lhes falou:
- Olá camaradas, somos trabalhadores, e eles não conseguiram fazer-nos
esquecer; aqui está a minha arma para vos servir.
Assim mesmo,
por trás das colinas onde o verde está à espera,
se levantam antiquíssimos rumores,
as festas e os suores,
os bombos de Lavacolhos,
assim mesmo senti um dia,
a chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila,
o bater inexorável dos corações produtores, os tambores.
- De quem é o carvalhal?
- É nosso!
Assim te quero cantar, mar antigo a que regresso.
Neste cais está arrimado o barco-sonho em que voltei.
Neste cais eu encontrei a margem do outro lado, Grandola Vila Morena.
Diz lá: valeu a pena a travessia? Valeu pois.
Pela vaga de fundo se sumiu o futuro histórico da minha classe.
No fundo deste mar, encontrareis tesouros recuperados, de mim que estou a
chegar do lado de lá para ir convosco.
Tesouros infindáveis que vos trago de longe e que são vossos,
o meu canto e a palavra.
O meu sonho é a luz que vem do fim do mundo, dos vossos antepassados que ainda
não nasceram.
A minha arte é estar aqui convosco
e ser-vos alimento e companhia
na viagem para estar aqui
de vez.
Sou português,
pequeno-burguês de origem,
filho de professores primários,
artista de variedades,
compositor popular,
aprendiz de feiticeiro.
Faltam-me dentes.
Sou o Zé Mário Branco,
37 anos, do Porto,
muito mais vivo que morto.
Contai com isto de mim
para cantar e para o resto.
José Mário Branco
(texto escrito de um só jorro numa noite de Fevereiro de
1979)
SER SOLIDÁRIO
Ser solidário assim pr’além da vida
Por dentro da distância percorrida
Fazer de cada perda uma raiz
E improvavelmente ser feliz
De como aqui chegar não é mister
Contar o que já sabe quem souber
O estrume em que germina a ilusão
Fecundará por certo esta canção
Ser solidário assim tão longe e perto
No coração de mim por mim aberto
Amando a inquietação que permanece
Pr’além da inquietação que me apetece
De como aqui chegar nada direi
Senão que tu já sentes o que eu sei
Apenas o momento do teu sonho
No amor intemporal que nos proponho
Ser solidário sim, por sobre a morte
Que depois dela só o tempo é forte
E a morte nunca o tempo a redime
Mas sim o amor dos homens que se exprime
De como aqui chegar não vale a pena
Já que a moral da história é tão pequena
Que nunca por vingança eu te daria
No ventre das canções sabedoria
Foi no Domingo passado que passei
À casa onde vivia a Mariquinhas
Mas está tudo tão mudado
Que não vi em nenhum lado
As tais janelas que tinham tabuinhas
Do rés-do-chão ao telhado
Não vi nada, nada, nada
Que pudesse recordar-me a Mariquinhas
E há um vidro pegado e azulado
Onde via as tabuinhas
Entrei e onde era a sala agora está
À secretária um sujeito que é lingrinhas
Mas não vi colchas com barra
Nem viola nem guitarra
Nem espreitadelas furtivas das vizinhas
O tempo cravou a garra
Na alma daquela casa
Onda às vezes petiscávamos sardinhas
Quando em noites de guitarra e de farra
Estava alegre a Mariquinhas
As janelas tão garridas que ficavam
Com cortinados de chita às pintinhas
Perderam de todo a graça porque é hoje uma vidraça
Com cercaduras de lata às voltinhas
E lá pra dentro quem passa
Hoje é pra ir aos penhores
Entregar o usurário, umas coisinhas
Pois chega a esta desgraça toda a graça
Da casa da Mariquinhas
Pra terem feito da casa o que fizeram
Melhor fora que a mandassem prás alminhas
Pois ser casa de penhor
O que foi viver de amor
É ideia que não cabe cá nas minhas
Recordações de calor
E das saudades o gosto eu vou procurar esquecer
Numas ginjinhas
Pois dar de beber à dor é o melhor
Já dizia a Mariquinhas
Pois dar de beber à dor é o melhor
Já dizia a Mariquinhas
Amália Rodrigues (23 de Julho de 2004, morre o mestre da guitarra portuguesa, Carlos Paredes) CARLOS PAREDES - «Dança» Dança by Carlos Paredes on Grooveshark Poet'anarquista
Este é o Tango Senhor Paris
Toda a Paris dançando este Tango Senhor
E eu mostro-lhes como este passo
Porque eu sei como eles fazem.
Paris Tango Tango
Eu dou meu coração ao Tango
A noite é azul e o vinho doce
Dançamos na felicidade
Em Paris Tango Tango
Com isso espero que permaneça
Assim por muito tempo
Uma vida tão bonita quanto hoje
Com você e eu para todas as vezes.
Num pequeno café
Perto de Champs-Elysées
Onde Robert vem jogando há anos
Que nunca foram atingidos
Como ele se fez
Mas você apenas riu
Então, ele tocou uma música
E um milagre aconteceu:
Este é o Tango Senhor Paris
Toda a Paris dançando o Tango Senhor
E eu mostro-lhes este passo
Porque eu sei como eles fazem.
Num Tango Tango em Paris
Eu dou meu coração ao Tango
A noite é azul e o vinho doce
Dançamos na felicidade
Em Paris Tango Tango
Com isso espero que permaneça
Assim por muito tempo
Uma vida tão bonita quanto hoje
Com você e eu por todo o tempo.
Uma vida tão bonita quanto hoje
Com você e eu por todos os tempos.
O pintor e escritor espanhol Antonio Saura, nasceu em Huesca,
a 22 de Setembro de 1930. Foi um dos mais importantes pintores do pós-guerra a
surgir em Espanha na década de cinquenta, e o seu trabalho marcou várias
gerações de artistas. A voz crítica deste representante da arte espanhola do séc. XX
, continua a ser bastante recordada nos dias de hoje. Saura faleceu em Cuenca,
a 22 de Julho de 1998.
Poet’anarquista
Antonio Saura
Pintor e Escritor Espanhol
«Retrato Imaginário»
António Saura
SOBRE O ARTISTA...
Antonio Saura nasce em Huesca em 1930 e morre em Cuenca
em 1998.
Começa a pintar e escrever, em Madrid, em 1947,enquanto
permanece imobilizado durante cinco anos, doente de tuberculose.
Reivindicando a influência de Arp e Tanguy, distinguindo, no
entanto, com um estilo muito pessoal, fez inúmeros desenhos e pinturas de sonho
e de caráter surrealista, nomeadamente representações de paisagens imaginárias,
criando uma área plana, suave e rica em cores.
Primeira viagem a Paris em 1952.
Sucessivas estadias em Paris, em 1954 e 1955.
Nesta segunda ocasião, ele conheceu Benjamin Péret e
frequenta o grupo surrealista de que se distancia com seu amigo, o pintor Simon
Hantaï.
Emprega a técnica de Grattage, adopta um estilo gestual e
faz uma pintura radicalmente abstracta, colorida, de design funcional e
aleatório.
Começa a pintar ocupando o espaço da tela de várias maneiras
muito diferentes, criando estruturas formais próprias, que a partir desse momento
não deixará de desenvolver.
São as primeiras formas que irá em breve tornar-se
arquétipos do corpo feminino e da figura humana.
Estas são duas questões fundamentais que dominam grande
parte do seu trabalho.
Após 1956, Saura iniciou a sua grande série: Meninas, Nudês,
Autoretrato, Sudario, crucificação, pintando tanto em tela como em papel.
Funda em Madrid, o grupo El Paso, em 1957, e dirige-a até à sua dissolução
em 1960.
Conhece Michel Tapié.
Primeira exposição individual na galeria de
Rodolphe Stadler em París, onde expõe regularmente durante toda a sua vida.
Através de Stadler conhece Otto van Loo em Munique e Pierre
Matisse, em Nova York, que exibiu o seu trabalho e também o representam.
Limita a sua paleta de preto, cinza e marrom.
Declarou no seu próprio estilo, independente dos movimentos
e tendências da sua geração.
O seu trabalho está em consonância com Velázquez e Goya.
As suas pinturas estão em grandes museus. A partir de 1959,
desenvolve uma obra prolífica e ilustrações originais em inúmeros livros tais
como Don Quijote de Cervantes, 1984 de Orwell, Pinocho na adaptação
de Nöstingler, Diarios de Kafka, Trois visions de Quevedo, e muitos mais.
Em 1960, começa a esculpir criando obras compostas por
elementos de metal soldados, que representam a figura humana, personagens e
cruxificações.
Em 1967 instala-se definitivamente em Paris.
Está envolvido na oposição à ditadura franquista e
participou em inúmeros debates e controvérsias na arena política e na estética
e criação artística.
Amplia o seu registo temático e pictórico.
Aparecem junto a las Mujer-sillón, as séries Retrato
imaginario, El Perro de Goya y Retrato imaginario de Goya.
Em 1971 abandonou a pintura sobre tela (que será retomado em
1979) para dedicar-se à escrita, desenho e pintura sobre papel.
A partir de 1977 iniciou a publicação de seus escritos.
Realiza vários cenários para o teatro, ballet e ópera.
De 1983 até sua morte prematura, retoma e desenvolve
completamente todos os seus temas e figuras criando, talvez, o seu melhor
trabalho.