sábado, 31 de janeiro de 2015

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

THE CHANTAYS
«The Lonesome Road»
The Lonesome Road by The Chantays on Grooveshark
Poet'anarquista

(Para os mais velhinhos, isto não vos faz lembrar outros acordes?
Pois é, parece que são irmãos gémeos!)

OUTROS CONTOS

«Por não estarem Distraídos», por Clarice Lispector.

«Por não estarem Distraídos»
A Árvore Que Dava Olhos/ Maria Keil

404- «POR NÃO ESTAREM DISTRAÍDOS»

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles.

Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles.

Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração.

Como eles admiravam estarem juntos!

Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali.

Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios.

Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.

Clarice Lispector

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

CARTOON versus SONETO

A Irrelevante
HenriCartoon

«A IRRELEVANTE»

Amigo Zé, como ambição ela tem
De continuar a pensar irrelevante,
O que não deixa de ser frustrante
Quando as coisas lhe correm bem!

Eis pois, o cerne da questão…
Cá pra mim a senhora ministra
Ainda não deixou de ser sinistra,
E péssima na governação!...

E quando tudo corre de feição…
Certo e sabido que algo está mal,
Quando parece estar na perfeição;

Termino então o segundo terceto:
Nas finanças mantém-se tudo igual,
É relevante tanto desacerto! 

POETA

OUTROS CONTOS

«A Mulher que Chorava», por José Luís Peixoto.

«A Mulher que Chorava»
Mulher Chorando/ Paul Ranson

403- «A MULHER QUE CHORAVA»

Acordou tão feliz. A freira abriu a porta do quarto e atra­vessou o pequeno corredor entre as camas. Algumas mulheres acordaram logo que esses pequenos ruídos toca­ram o silêncio: a fechadura da porta, as solas finas de bor­racha sobre os tacos de madeira. Quase encostada à janela, a freira subiu as persianas. Naquele quarto, havia duas filas de quatro camas de ferro. À noite, as mulheres deitavam-se e ficavam com os pés apontados para o centro do quarto. A freira subiu as persianas. A luz que entrava no quarto era feita de uma juventude de luz. Devagar, a luz subiu pela superfície do quarto e pela superfície dos corpos das mulheres deitadas sob os cobertores. Os corpos das mulheres estavam mornos. Os cobertores eram de lã muito macia por estar gasta, eram castanhos, cheiravam a lava­dos e cheiravam ao detergente que era o cheiro de todos os objectos do asilo. A freira, diante da janela, em silêncio, parou-se a olhar para as mulheres que acordavam. Mais pela luz doce do que pelas vozes das mulheres que falavam umas para as outras, mais pela luz doce do que pelo olhar também doce da freira, ela acordou. Tão feliz. A sua cama era a terceira a contar da janela, na fila que ficava à esquer­da do olhar da freira. Ao abrir os olhos, a luz da manhã. Sentia no corpo a combinação e os lençóis mornos. Levan­tou o braço sobre o cobertor. Já fora da cama, enquanto vestia o roupão e calçava os chinelos, lembrava-se ainda do sonho que tivera. Lembrava-se do sonho como se sonhas­se ainda. Sorria. Tinha sonhado que era nova e que não estava no asilo. Era nova e estava em casa. A mãe chamava­-a da cozinha. Era nova. Tinha sonhado. Tinha acordado tão feliz. Era nova. A mãe chamava-a da cozinha. No sonho, tinha um pedaço de espelho na mão. Os seus cabe­los eram longos e viçosos. A sua pele era lisa. Os seus olhos eram novos e brilhavam. Tinha sonhado. Com a toalha dobrada sobre o ombro, com o sabonete na mão, esperava na fila para o banho. Ela não estava habituada, mas as frei­ras diziam que todas as mulheres tinham de tomar um duche ao acordar. Ela respeitava as regras do asilo. O vapor envolvia-lhe o olhar. As vozes das mulheres à sua volta eram uma coisa que acontecia num sítio onde ela não esta­va. Tinha sonhado que era nova. Como se sonhasse ainda, sorria.

Acordou incomodada. O cão começou a ladrar no quin­tal. Ainda de madrugada, o cão começou a ladrar, como se ladrasse contra qualquer coisa sem solução: o frio ou a morte. O início do inverno entrava pela janela com a niti­dez incómoda do frio. O início do inverno pousava sobre a pequena bacia de esmalte e sobre as voltas de ferro do lavatório, pousava sobre a cómoda pobre. Entre os lençóis e sob a flanela da camisa de noite caminhavam linhas de ar gelado que lhe tocavam a pele. Ainda com os olhos fecha­dos, o mo e o cão a ladrar trouxeram-lhe a vida que existe com os olhos fechados. A cara engelhada deixou que os olhos se abrissem devagar. Admirou-se com a luz que era como fosse o frio vagamente a iluminar todas as coisas. Os latidos do cão atravessavam o pequeno quadrado de vidro da janela e enchiam o quarto. Afastou a roupa da cama e levantou-se subitamente. Abriu a gaveta da ban­quinha e retirou um pedaço de espelho. Era o pedaço de um espelho que se tinha partido e que ela tinha encontra­do a brilhar na rua. O incómodo de ter acordado perma­necia. O incómodo de ter sonhado. Num sonho que con­tinuava depois do momento em que acordou, tinha-se visto velha. Os seus cabelos eram brancos e secos, eram velhos e mortos. Eram cabelos monos e cinzentos e sujos. A sua pele era muito velha porque era muito mole. O seu rosto era velho. Segurou o pedaço de espelho entre os dedos e, naquela superfície onde não cabia mais do que o olhar de um dos olhos, viu o reflexo da sua pele lisa, dos seus lábios, dos seus cabelos longos e castanhos. Passou os dedos pelos cabelos. Por um instante sentiu-se descan­sada. Por um instante, sentiu-se aliviada. A mãe chamava­-a da cozinha. Naquele dia, aproximou-se da mãe com estranheza. Observou as suas mãos, os seus cabelos, o seu rosto, os seus olhos. Imaginou-se com a idade da mãe, imaginou-se igual a ela. No sonho que permanecia dentro dela, como uma lembrança que não conseguisse esquecer, era ainda mais velha do que a mãe. Por instantes, sentia o corpo cansado. Sem olhar para os cabelos, sentia-os cin­zentos. Sem olhar para a pele, sentia-lhe as rugas como um peso. Sentia que os olhos lhe começavam a chorar de can­saço. Depois, lembrava-se do frio, e lembrava-se que lhe cresciam lágrimas nos olhos por causa do frio. Depois pas­sava as palmas das mãos na pele do braço, puxava as pon­tas dos cabelos com os dedos, e sossegava. A mãe pediu­-lhe para ir buscar lenha ao quintal. O frio entrava por baixo da porta. Ela abriu a porta. O mo bateu-lhe no rosto. No quintal, a irmã brincava com o cão que estava preso ao limoeiro. A irmã atirava um pequeno limão verde a rolar pela terra, o cão corria para agarrá-lo e, no momento em que abria a boca, a corda esticava-se a partir do tronco do limoeiro e segurava o cão pelo pescoço. Aproximou-se da pilha de lenha, agachou-se e, com uma das mãos, come­çou a encher o outro braço de achas que apertava de encontro ao peito. A irmã, pequena, deixou o cão e arru­mou-se à sua saia. Meteu conversa. Ela não respondeu. Sentia-se velha. Como no sonho. Era velha. Como no sonho. Em instantes, não sabia se o sonho tinha sido antes ou depois de acordar.

Depois da missa, deixou-se ficar ajoelhada na capela do asilo a fingir que rezava. À saída, as freiras olharam para ela contentes e quase comovidas. As outras mulheres olharam para ela desconfiadas. Ficou sozinha. A capela, fresca, não existia. Dentro de si, debaixo dos seus olhos fechados, existia aquele sonho onde era uma rapariga. Debaixo dos seus olhos fechados, era nova, tinha ido ao quintal buscar lenha. Sorria. A irmã caminhava ao seu lado. Debaixo dos seus olhos fechados, tinha entrado na cozinha, tinha atirado a lenha para dentro do cesto da lenha. Sorria. Ajoelhada diante da lareira, tinha acendido uma pinha, cruzado duas achas, encostadas ao madeiro meio ardido que sobrara do dia anterior, e tinha disposto a pinha num sítio onde as suas chamas tocavam o ponto em que as achas se cruzavam. Ao seu lado, a irmã olhava as chamas a pegarem-se às achas e ao madeiro, olhava o lume. A mãe tinha-lhe posto um púcaro de café sobre a mesa. Sentou-se num banco a beber. O café aquecia-lhe um caminho no interior. Abria os olhos, tentando ver, ten­tando sentir tudo o que a rodeava, mas os olhos embacia­vam-se e não viam senão aquilo com que tinha sonhado. Sentada a beber café, via-se velha, via-se ajoelhada numa capela que não conhecia. Devagar, com as costas a não se dobrarem, devagar, com as pernas sem acção nenhuma, devagar, com as mãos agarradas ao banco da frente, deva­gar, levantava-se velha e velha. Não olhava para o altar da capela que não conhecia. Olhava para a porta aberta, para a luz a atravessar o lugar da porta. Ver o que tinha sonhado na noite anterior incomodava-a. O café não lhe fazia pro­veito. Mas, por mais que tentasse, não conseguia deixar de se ver como se tinha sonhado. Estava numa capela que não conhecia e olhava para a luz a atravessar o lugar da porta. Caminhava em direcção à porta. Os seus passos eram um ruído leve, mas que durava no mármore. Ao acabar de beber o café, a mãe pediu-lhe que fosse à venda comprar uma quarta de chouriço para o jantar. Já ia a sair, quando a mãe lhe pediu que levasse a irmã. Estendeu-lhe a mão. Na rua, de mãos dadas com a irmã, continuava com o sonho a encher aquilo em que pensava. Velha, avançava por um caminho de terra, entre canteiros de flores que recebiam o sol sobre uma juventude que parecia rir-se da sua pele velha e dos seus cabelos sem vigor e dos seus movimentos trôpegos. Mas estava tão feliz com o sonho da noite ante­rior, com o sonho que ainda estava dentro dela. Ião feliz. O sonho era como aqueles sábados em que acordava a acreditar que era já domingo. No asilo, os dias eram todos iguais. Mas, às vezes, era sábado e acreditava que era já domingo. Nem quando percebia que não era domingo, nem quando via que não tinha ido à missa de domingo, nem quando chegava a hora da visita e reparava que as visi­tas de domingo não tinham chegado, deixava de pensar que era domingo nesses sábados em que acordava a acre­ditar que era já domingo. Assim estava o sonho dentro dela. Via-se nova. Caminhava pelo jardim do asilo, entre os muros de buxo e os canteiros de amores-perfeitos, e via-se nova. Via-se na rua, de mãos dadas com a irmã, a caminhar para a venda onde iria comprar uma quarta de chouriço para o jantar.

Estava sentada à mesa. Durante todo o dia, por mais que tivesse tentado fixar-se nas coisas da sua juventude, não tinha perdido aquela estranheza. Estava velha por dentro. Estava sentada à mesa. Estava cansada. Sentia o mesmo incómodo que sentira no momento em que acor­dou. O jantar estava ao centro da mesa. A mãe estava sen­tada num lado, a irmã estava sentada no outro, ela estava sentado no outro. Não falavam. O candeeiro de petróleo enegrecia as marcas do rosto da irmã quando ela tentava dizer qualquer coisa. A mãe encheu os pratos de sopa. Levantou o chouriço com uma colher e partiu-o em dois pedaços que pôs nos pratos das filhas. Ela estava com pouca vontade de comer. O lume ardia e ela pensava que dentro de pouco tempo seriam horas de ir dormir. Ela esta­va com medo de dormir. Ela estava com medo de sonhar. Em algumas ocasiões, ao enfiar a colher na boca, fechava os olhos e via-se rodeada de velhas a comerem sopa num salão muito iluminado. Abria os olhos de repente. Via a mãe e a irmã. O seu coração batia depressa. Nem a mãe, nem a irmã repararam nestes sustos que ela apanhava. Depois de comer, depois de lavar a loiça, foi deitar a irmã. Despiu-lhe o vestidinho e pôs-lhe a camisa de flanela. Nunca olhou para o rosto da sua pequena irmã com tanta ternura como nessa noite. Pousou-lhe a roupa da cama sobre o peito. A irmã baixou as pálpebras sobre os olhos. A pele branca e serena. Ficou a olhar para o seu rosto. A irmã adormeceu logo a seguir. A sua respiração tão calma. Saiu do quarto da irmã com passinhos breves. Entrou no seu quarto com medo de dormir. Despiu-se, pôs a camisa de noite. Deitou-se debaixo dos lençóis frios. Ficou inquieta durante muito tempo. Estava nervosa. Esta­va incomodada. Dava voltas na cama. Tinha medo de adormecer e de sonhar de novo. Cada instante da noite parecia muito grande. Mas depois de muito tempo, depois de ter passado muito tempo dentro da noite, depois de o tempo já não se distinguir da noite longa, vasta, imensa, o seu corpo perdeu as forças e finalmente adormeceu.

Estava sentada à mesa. Naquele dia tinha sido tão feliz. Na sala de jantar do asilo, as freiras passaram a distribuir terrinas de sopa pelas mesas. A luz branca das lâmpadas fluorescentes tomava a sala de jantar nítida para quem tivesse os olhos nítidos. Ela tinha os olhos num sorriso que via ainda os seus olhos jovens. Os seus olhos viam os seus olhos. Ao seu lado, não estavam aquelas mulheres a comer sopa, aquelas mulheres que levantavam muito depressa a colher como se, do prato até à boca, a sopa se entornasse da colher. Aquelas mulheres que tremiam com a colher cheia de sopa, que fechavam a boca muito depres­sa sobre a colher. Ao seu lado estava a sua irmã pequena e a sua mãe. Sorria. Via-as juntas e sorria porque, naquele tempo, ainda a irmã não tinha apanhado a pneumonia que havia de a levar. A pneumonia que havia de lhe pôr a pele cinzenta, cada vez mais magra, as costelas a conhe­cerem-se mesmo com a camisa de flanela vestida, a voz frágil a pedir-lhe para brincar com ela, as mãos pequenas e fracas, um sorriso pequeno e fraco na pele cinzenta, os olhos quase a fecharem-se e, depois, morta. A sua irmã pequena morta. O caixão branco de anjinho. A sua mãe a chorar. A aflição dentro dela. Tudo isso era ainda impossí­vel quando, dentro daquele sonho, via a irmã a comer sopa. A sua irmã feliz e inocente. Aquele sonho era um pedaço da sua vida antes da tristeza. Naquele dia tinha sido tão feliz. Rodeada de mulheres que comiam sopa, estava ao lado da sua irmã e da sua mãe. A irmã ainda não tinha morrido e a mãe ainda não tinha envelhecido tanto. A mãe ainda não tinha as roupas pretas que havia de vestir duran­te toda a vida, durante todos os dias. Ainda não era uma velha como ela era ali, sentada à mesa, naquele asilo. Nem a morte. Nem o cemitério com a campa pequena da irmã, um montinho de terra e uma cruz no talhão dos anjinhos, com a campa da mãe, mármore e o seu nome e a sua única fotografia. Nem o cemitério sozinho com noites consecu­tivas, sempre negras, sempre frias, noites a passarem sobre a terra, sobre os rostos da sua irmã e da sua mãe. Tudo isso era impossível quando, dentro daquele sonho, via a irmã a comer sopa. A sua irmã feliz e inocente. Aque­le sonho era um pedaço da sua vida antes da tristeza.

Naquele dia tinha sido tão feliz. Assim que acabou de comer quis ir para a cama. Queria dormir. Queria sonhar. Queria ser nova durante mais um dia.

Acordou tão feliz. Assim que percebeu que estava acor­dada, acordou dentro dela um júbilo infinito porque perce­beu que tinha sonhado de novo. Deitada, rodeada de vozes de mulheres a acordarem também, sob o olhar da freira, estava deitada, rodeada de uma luz fria, sob o som do cão a ladrar preso ao limoeiro do quintal. Acordou incomodada. Tinha sonhado de novo. Levantou-se da cama. Na fila para tomar banho, sentia nos braços os arranhões suaves das cascas da lenha que carregava para o lume. Enquanto ris­cava um fósforo, abria a torneira da água. A pequena chama pegava-se à pinha. Com as costas da mão, via que a água do chuveiro já estava morna. Sentia a água no corpo velho, novo. Sentia o calor do lume no corpo velho, novo. A irmã estava ao seu lado enquanto passava o sabonete pelos braços. Agachada diante do lume, ouvia as vozes das outras mulheres. A mãe andava na cozinha de um lado para o outro. A mãe andava na cozinha de um lado para o outro. A irmã estava viva. A mãe estava viva. Velha, nova, aceitava mais um dia. Queria viver.

José Luís Peixoto

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

GWENDAL - «Deu Tu Ganeme»

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

CARTOON versus QUADRA

Brincadeira de Criança

Poet'anarquista

«BRINCADEIRA DE CRIANÇA»

- Acorda prá vida, sou o Syriza!…
Deixa de sonhar com austeridade...

- Este grego provoca-me ansiedade...
Sou o Fedelho, ninguém me pisa!!

POETA

OUTROS CONTOS

«Os Amantes Aprovados», por Agustina Bessa-Luís.

«Os Amantes Aprovados»
Conto de Agustina Bessa-Luís

402- «OS AMANTES APROVADOS»

É uma história simples. No ano de mil novecentos e trinta e tal, vivia na vilazinha de ..., no litoral, uma viúva respeitável, gorda, de olhar brando e bandós a picarem de cinzento. Tinha tido onze filhos, dos quais nove sobreviviam, e toda a aventura da sua vida fora a de, como mulher dum magistrado pobre, ter percorrido o país no decurso duma carreira anónima e sem fé. Triste, talvez não. O marido fora um tipo folgazão, sociável em extremo e que fizera grandes amigos, dos quais muitos também sobreviviam. A sua morte, acontecida em pleno vigor físico e quando esperava a promoção a juiz de segunda classe, provocara uma crispação de pânico nos nervos dos colegas e de toda uma pandilha fervorosa dos vícios de província, que são a má-língua, a política e o interesse - essas fístulas crónicas dos homens de quarenta. Os órfãos, de princípio socorridos com uma generosidade exaltada demais para permanecer fiel, foram aos poucos deixados sob a mão de Deus Padre, para que se criassem. Sabia-se que a mãe era senhora séria e de bons princípios, e isto sossegava - vamos saber porquê! - as consciências. Tinha ela na terra uma casa, pouco mais que um sobrado de pescadores, e para lá se arrumou com as crianças. Duas, protegidas por padrinhos, teriam estudos pagos e donativos de vestuário; os outros cresceram um pouco à sorte, no hábito dessa tragédia ensossa, pasmada, fria, da burguesia pelintra. Podia-se dizer que existiram entre a escola e o emprego na burocracia, sem conhecerem a cor do dinheiro. Entalados numa engrenagem de dívidas, promessas, esmolas, de caridade sopesada até à última gota na balança dos que em cada dádiva ou tutela parecem endossar a batata podre dum conceito inútil, da moralidade mais rapada e sem brilho, adquiriram todos uma sobreposição de personalidade que os fazia muito idênticos. Assim, todos sabiam dissimular e nunca manifestavam a tempo qualquer sentimento; reagiam por aprendizagem, não por instinto, e na sua alma tudo estava pregado e postiço como a lua no teatro do próprio Shakespeare.

Com o tempo e a colocação do mais velho como prefeito dum colégio, mudaram-se para uma sobreloja, deixando o bairro excêntrico em cujas valetas os detritos de peixe atraíam grandes moscas verdes. Viviam pior que nunca, mas tinham conseguido o que se chama "ganhar pé". Possuíam um relativo crédito e, comprovada a sua penúria, os seus antecedentes duma honesta monotonia e o facto abonatório de que tinham vivido bem, a sociedade apaziguara-se um tanto e concedera-lhes certos direitos. Por exemplo, as raparigas traziam golas de velha pele sarnenta, sem que o mundo se risse, porque, nelas, os atributos da classe, o luxo, eram por assim dizer uma aquisição histórica. Admitiam-nas na intimidade superficial das pessoas finas, homenageando-as com a confiança de lhes pedirem favores como os de passarem bilhetes de rifa ou recortarem florinhas de papel para o Dia do Capacete. Enfim, podia-se afirmar que tudo corria bem, se algo de muito estranho e de imprevisto não abalasse a comovida paz dos benfeitores que são a multidão em geral quando se sente despreocupada. Constou que a viúva tinha um amante. Tínhamos dito que era ela mulher gorda, grisalha, de olhar brando, mas não seria bem assim. Era de facto um tanto pesada, com um andar cambaleante de quem sempre calçou chinelos de pasta ou de corda ou de seleiro; não vestia mais do que batas de algodão preto e parecia bastante mal, mesmo aos domingos, sobretudo aos domingos, quando, na missa das nove, se ajoelhava na sua almofadinha de setineta vermelha, ao lado do "altar das Dores". Tinha um rosto inexpressivo do muito que a fadiga se sobrepusera às emoções, e não parecia gostar de rir nem de chorar, nem sequer de observar os outros nessas ocupações. De resto, possuía ainda belos olhos, e a sua frieza de maneiras dava-lhe uma graça um tanto hostil que infundia ternura, depois de ter provocado receio. Era frequente vê-la atravessar a ruazinha de velho macadame, para vir arrastar pelo braço um ou outro filho que se filiava na trupe de garotio para, no átrio do cinema, esmolarem a quantia bastante à entrada. Fugiam-lhe para, no poleiro da geral que era como uma assembleia de jurados apinhados em degraus rente às coxias, uivairem ameaças contra "o cínico" daqueles filmes do Tim Mac Coy de belos dentes que se rolava num fosso da pradaria em chamas. Ai a linguagem desses ladrões de gado, desses sheriffs, dessas "cavadoras de oiro" que sugeriam fome e água de lavar pratos! "Labora num grande erro" - diziam, explicando a intriga e a traição, enquanto, com um rumor de vento infiltrado por fendas de pedreiras, ardia um rastilho de dinamite. Os rapazes precipitavam-se, no intervalo, até à rua, engalfinhavam-se possessos de coragem, imitando tiros; e iam, na lojeca próxima, comprar um pão encortiçado, de domingo, com talhadas de marmelada, ou cartuchos de paciências ou pastilhas Naval que chupavam laboriosamente, mostrando-as na língua uns aos outros, para suscitar invejas.

- Raça! - exclamava a proprietária, que vinha, por condescendência, ajudar na loja, porque a frequência era aos magotes, e ondas de garotos embatiam contra os mostradores onde melavam os "caramilos" junto das onças de tabaco. Era uma mulher oxigenada, vistosa, cheia de ambições mal encabadas no seu ofício de mestra de meninos. Detestava as crianças, as suas roupetas com cheiro de peixe e de surro, as suas chancas tachadas, as suas sacolas de serrapilheira com flores pintadas e que a chuva esborratava; aplicava nelas o ódio pelo mundo de chateza e de frio que conhecera desde a infância, quando, deportada do seu nabal onde o pai sorvia cotos de cigarro sentado nos montículos de pilado, se fizera letrada. Casara ali na vila com um tipo mesquinho que usava manguitos de cotim e pesava quilos de arroz com a proficiência dum Shylock. A filha, bonita como ela, criara-a para outra classe, outro meio, outra vida. Quantas lágrimas raivosas, esses vestidos de folhos, essas sombrinhas japonesas! Quantos favores equívocos, nauseados, em que acumulava tédio e impotência, para que ambas, na Assembleia, sorrissem um pouco duramente, como quem pressente ter-se enganado na porta e no lugar, e espera a todo o momento uma advertência, uma rectificação!

- Raça! - dizia, quando estendia sobre o balcão, procurando não tocar as mãozinhas onde o ranho seco escamava, os confeitos ou os pães varridos de farinha, muito lambidos, cor de cinza. E, em particular, a sua aversão atingia os filhos da viúva. Desprezava-os porque os achava pobres, raquíticos, enfadonhos, sérios; porque tinham hábitos finos, viviam disciplinados como formigas, usavam com naturalidade os seus trapos polidos com benzina, e porque as crianças abastadas os tratavam com deferência. Alguma vez a sua Loló, magra e frenética criatura de olhos verdes, brincara nos jardins dos palacetes, usara as trotinetes dos pequenos burgueses, fora conduzida a casa pelos seus criados? Loló percorria as ruas perseguida por uma turba de catraios de fralda ao vento que se dispersavam quando ela parava para os reconhecer - o que não acontecia nunca. Mesmo assim, denunciava-os a eito, a mãe se incumbia de distribuir reguadas nos nós dos dedos, ferindo, esfolando, com um olhar mau, nublado, e que fazia gritar os menos estóicos antes que se aproximasse deles. Ah, aquela viúva fora por muito tempo um espinho enterrado no centro do peito, fora um pouco como uma sombra projectada sobre um écran onde a paisagem corre! Admirava-lhe as belas maneiras, o ar sóbrio, sem sorrisos, porém sem amargura; invejava-lhe a tranquilidade com que parecia existir entre os filhos, que cresciam feiotes e pelados como ratos dos bueiros. De súbito, apareciam todos grandes, as raparigas com a sua beauté du diable, os seus vestidos inesperadamente à moda, tentando destinos, vivendo; os rapazes tinham agora boas relações, faziam carreira, modestamente, sem importunar, seguros. Também a sua Loló, delgada e cheia de it, dançava um pouco o charleston e namorava um miliciano. Mas as outras crianças, sempre as mesmas, com o seu cheiro de marisco na pele, com os seus narizes lacrados de monco amarelo, com os seus gritos à Tarzan, a sua bola de trapo, essas não cresciam. Continuava a sacudir-lhes as orelhas com varadas, enquanto lhes encaixava as medidas de peso ou de lenha. E um sol tão branco arredondando-se sobre o mar! E o trepidar dos carros no Largo de S. Tiago, na Avenida, na Praça! Meu Deus, meu Deus! Havia uma lampadazinha sobre a mesa onde corrigia exercícios, à noite, e a luz amarela escorria nimbando a sua cabeça oxigenada. Os frequentadores do cinema viam-na, e, na impressão imediata dos cartazes onde se contorciam mulheres como chamas, comentavam: "Parece uma vamp... a Brigitte Helm... a Marlène..." E ela sentia na pele, à flor da sua pele branca, empoada e levemente flácida, que falavam dela, e como.

Foi ela a primeira a compreender e a revelar que a viúva tinha um amante. Era um rapaz de vinte anos, muito estranho, magrinho, e que leccionava num colégio; chamava-se David, tinha vindo das Ilhas, sem recursos, para estudar. Era interno, portanto, e passara a pagar com explicações aos primeiros ciclos as suas propinas. A viúva conhecia-o como colega dos filhos mais velhos, há bastante tempo, vira-os nas mesmas manhãs de Verão saírem juntos para o banho, com a toalha enrolada presa pelo cinto do maillot. Nos dias de aniversário, David sempre mandava um postal ilustrado às meninas - sempre garotas ricas entre flores, em áleas de jardins, e cores muito brilhantes. Ele era tristonho, quase bronco quando desconfiava de alguém ou simplesmente não conseguia adaptar-se; mas, familiarizando-se, rasgada a sua casca de timidez feroz, de orgulho mais feroz ainda, era maravilhoso. Havia nele uma coragem de sinceridade que nem era maculada pela consciência de virtude que a razão nisso podia surpreender. Na sua aceitação de tudo o que acontece, de tudo o que triunfa, de tudo o que perde, de tudo quanto é inútil ou sem estética, de tudo quanto é belo para vexame da nossa própria alma, havia paz. Às vezes sorria, quando todos se agrupavam fazendo traduções do latim, repuxando uma beiça sinistra sobre o queixo. Sorria, com o livro aberto diante dele, como se seguisse uma imagem deveras cheia de interesse e de humor.

- Em que pensa? - perguntava-lhe a viúva. Ela sorria também.

- É tão tolo viver exactamente assim - dizia David. - Dividimos o tempo e emparedamo-nos dentro dele. Mas não há tempo, o tempo não existe, o tempo é apenas memória. Olhe as violetas nessa jarra... murcharam, mas não têm a recordação da sua frescura, portanto existem num tempo único - compreende?

- Compreendo. - E ela já não sorriu. O rosto cansado estremeceu, crispou-se, e voltou a adquirir a sua fria brandura habitual. Sim, tinha compreendido. Durante muitos dias esgotou-se em imobilizar-se dentro dela própria, em rastejar em torno da sua alma, para que ela não pressentisse quanto a vigiava, vendo se dormia ou velava; durante muitos meses viveu metodicamente entre a sua pequena gente escura, questionadora, mesquinhamente ansiosa e que se atraiçoava de quarto para quarto, de prato para prato. Julgava-se sossegada e igual a outrora, surpreendia-se a rir jovialmente, porque tal libertação a exaltava e lhe dava uma espécie de febril felicidade. Depois, recaía de súbito; David obcecava-a até ao ódio, queria que ele partisse, inventava planos para o afastar, para deixar de o receber, para não o ver mais; achava-o sem importância, voltava a rir-se da sua cegueira, a acusar-se de insensatez, de malignidade, de vileza. Rezava muito, mas, na sua prece, no mais ardente voto, brotava-lhe do coração o nome dele, mergulhava numa prostração terna, exasperada e submissa por fim. Adoecia e renascia da doença como a serpente que se desprende da própria pele e se esgueira vigorosamente para fora do ninho bolorento. Assaltavam-na escrúpulos que se traduziam em manifestações de sacrifício; o seu amor pelos filhos parecia recrudescer, escravizava-se a eles, contente se dominava a própria impaciência e o juízo desfavorável que o carácter deles, as suas pegas, a sua nulidade, o seu egoísmo desamparado e impotente lhe provocavam. Matava-se lidando inutilmente, infeliz quando percorria a casa e via que todas as coisas estavam correctas nos seus lugares, que a poeira vogava no ar sem poisar; tudo era tranquilo e mesmo, sob a mesa da sala, os gatos dormiam indiferentes a travessuras no velho tapete inglês muito rapado nas bordas como um caminho trilhado de roda dum capinzal. Sentava-se um momento, com as mãos no regaço, como alguém que espera num banco de estação; a imobilidade doía-lhe, agitava-a uma saudade de lágrimas que não podia chorar, e tudo o que até ali vivera lhe parecia importuno na sua memória. Punha-se a pensar então em David, o sangue pulsava- -lhe devagarinho nas têmporas, ela sorria como uma rapariga. Pensava nele, encontrando sofrimento e alívio porque ele lhe aparecia de repente tão distante como alguém já morto, como alguém a quem, à força de dedicar sentimentos e projectos, nos aproximou da indiferença e da erosão da alma. A vida como que estancava, ficava-se distraída a olhar pela janela o céu frio de Primavera que tão bem lhe sugeria toda a vila desenhada numa luz apática, com sombras que cresciam rapidamente pelos muros, com campos e noras, flores miniaturais balançando-se imperceptivalmente como cabecinhas senis; e os areais onde se compunham redes, escurecidos aqui e além pelos detritos do mar, com recortes de babugem que, devagar, se evaporava. O céu frio de Primavera sobre a vila! Sobre as gavinhas tenras cheias ainda de penugem cinzenta; sobre os talos novos de roseira que, partidos, vertiam seiva doce; sobre os campos, sobre os campos... Frios, dum verde inacabado, com terra fria, fechada, hostil ainda, por debaixo. Esse arrepio agudíssimo do fim de tarde de Primavera comunicava-se-lhe. E, trémula, retomando a custo o movimento, a vontade, voltava a apropriar-se de si mesma.

Quando falaram as vozes, dizendo que David e ela eram amantes, isso apenas se explicaria pelo pressentimento de catástrofe a que são sensíveis as colectividades. Viam-se pouco, nunca se tocavam; mas havia decerto neles uma exaltação de paixão que o próprio silêncio, a própria ausência e aparência de serem estranhos, confidenciava. Os filhos passaram a abandonar mais a casa, a tratá-la com uma cerimónia constrangida. Alguns choravam um pouco pela nostalgia da simbólica mãe; de resto, fora sempre o símbolo de mãe que eles tinham amado, e não a ela. Não a ela. Outros faziam-se mais viris com essa realidade que no fundo da alma os vexava; e torturavam-na.

- É verdade? É verdade? - diziam. - Sempre fomos bons filhos, a pobreza não nos fez corar nunca, bruníamos as nossas roupas ao serão para te poupar canseira, desprezámos as raparigas para não te abandonarmos. Destruíste tudo isso. Já não podemos ter confiança, porque tu nos cuspiste na cara.

- Mãe, mãe! - diziam as moças, com trejeitos duma cólera ávida, repelente, destruidora, a cólera sem finalidade das mulheres, que é apenas pretexto duma afirmação, duma quase vingativa expansão do sexo. - É uma canalhice!...

E o próprio David, que sentenciava com uma voz em que se entrevia mais o prazer da audácia que a intenção de a poupar a ela:

- Não há acções canalhas, mas almas canalhas. A mesma acção vivida por almas diferentes não é a mesma acção.

Ela suspirava, levava a mão ao rosto como se fosse defender uma pancada. Não compreendia; não compreendiam. E, quando David encostava a cabeça nos seus joelhos, o silêncio denso os envolvia, o silêncio amassado com todo o vociferar da rua onde brincavam crianças e se descompunham peixeiras, com todos os soluços de agonia dos que morriam na solidão terrível daqueles a quem o próprio pecado abandonou, ela encontrava felicidade. Um dia, constou que se tinham matado. Ela aparecera com duas balas no peito, no soalho do seu pequeno quarto onde se respirava essa miséria estéril dos que apenas duram, apenas dormem, apenas sonham, apenas mentem. Castiçais de vidro, sobre a cómoda, diante de imagens baratas de arraial de peregrinação, tinham velhos pingos de estearina cobertos de pó. David respirava ainda.

O caso, muito abafado, passou depressa, pois o mundo gosta de resgatar a sua responsabilidade com o esquecimento. Sim, com o esquecimento que antecede sempre a redenção. Tudo passou depressa; portanto, poucos anos depois, a vizinhança só banalmente se referia à viúva, aos filhos que tinham partido ou porque casavam, ou porque os vitimara uma febre, um desastre, ou porque a província os devorara como pequenos burocratas. Só quem fielmente se lembrava de tudo era a loira mestra de meninos, que continuava a corrigir problemas na sua mesa iluminada pelo candeeirinho que o tempo entortara e cujo abat-jour ficara sujo e pingão como um saiote de bailarina de guignol. A luz amarela fazia resplandecer os seus cabelos, e ainda os frequentadores do cinema olhavam, com um interesse logo extinto, o recorte da sua cabeça na vidraça. Mas já não faziam comentários.

- Raça! - murmurava a mulher, riscando ferozmente de vermelho os cadernos cheios de borrões cor de violeta e onde a tripa da tinta se desenhava. Loló engordara e já não tinha olhos verdes, já não usava sombrinhas japonesas; já não tinha pretendentes vestidos de flanela branca como Conrad Nagel, como o Barrymore; casara com não sei quem, desia aos tropeções a sua escada estreitinha, agarrando-se de lado ao corrimão, com uns velhos sapatos debruados de pelúcia e que ganhavam pulgas - oh, esses sapatos de lã que criavam pulgas alimentavam a comunicabilidade calaceira, morosa, feliz, com mais do que uma vizinha! -, ia escolher papos-secos na padaria, fazendo-lhes estalar a crosta entre os dedos, espremendo razões de protesto em todas as coisas que aconteciam.

- Raça! - dizia ela também. A mãe, ainda oxigenada, corajosa ainda porque se pintava sobre as rugas, sobre as feições desfeitas, desprendera-se muito dela. Às vezes pensava na viúva, em David, no seu amor que sentia vivo, penetrado no próprio céu frio de Primavera, fluindo de todas as coisas, mesmo as mais ingratas e inexpressivas coisas do mundo. Tinham-se amado - eles. Naquela casa de sobreloja onde habitara a viúva, não podia ver ninguém correr um estore, abrir uma janela, atirar fora os restos dum cinzento, sem que julgasse que tudo estava a acontecer ainda. Que, no quarto, que recebia luz duma clarabóia do corredor, dois seres tão verdadeiros como só podem ser os que compreendem que a morte participa da vida e a completa, agonizavam, sem tragédia, sem veemência, porque a tragédia, a veemência, não é dos que cumprem, mas dos que apenas os imitam. Os cartazes expostos no passeio do cinema, as mulheres serpentinas de olhar vidrado ou fulgurante, as paixões estereotipadas dum mundo senil, esgotado, impaciente! E aquela criatura, sem juventude, que vestia batas de chita, que era talvez um tanto estúpida e sem importância, mas cuja fealdade, limitação, pobreza, mereciam uma aprovação através do amor! Assim sentia a mestra de meninos que continuava a distribuir aos domingos pacotinhos de pastilhas Naval, reclamando o dinheiro certo na palma da mão para a dispensarem dos trocos. Os garotos apinhavam-se, repeliam-se, esmagavam-se contra o balcão, ela dizia "raça!", entediada e, apesar de tudo, lírica, porque não abdicava dos seus cabelos loiros, da sua solenidade, e porque, enfim, em cada esteta falhado há um lírico que se procura.

Esta é a história simples dos que chamamos os amantes aprovados. Esquecíamo-nos de dizer que David sobreviveu. Que lhe aconteceu depois, não sabemos. Ou antes, na última vez que fomos à cidade, encontrámos na rua um homem que se lhe assemelhava muito; os cabelos eram mais raros e usava óculos. De resto, caminhava muito depressa e não o pudemos observar muito. Parecia um desses eruditos pobres que vivem num saguão, dormem sobre uma arca e eles próprios cozinham um arroz esturrado numa máquina de petróleo. Era bem ele, com o seu olhar retraído, fino, persistente, mas não podemos jurar. O mundo está cheio de pessoas que se parecem e todas se continuam, sim, todas se continuam. De qualquer modo, o David que nós conhecemos há muito... Mas nada temos já a acrescentar a esta história.

Agustina Bessa-Luís

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(Última faixa do álbum «Cat People», de David Bowie)

DAVID BOWIE - «Bring the Prod»

POEMA DE ROBERT FROST

«A Trilha que não Tomei»
Poema de Robert Frost

A TRILHA QUE NÃO TOMEI

Duas trilhas divergiam sob árvores amarelas
E eu, triste por não poder percorrer ambas
E permanecer um, detive-me em longa espera
E olhei tão abaixo quanto pude uma delas
Até onde se dobrava entre as plantas;

Então tomei a outra, tão bela quanto correcta,
E talvez por ser a mais atraente
Por seu gramado almejar o passeio como meta,
Embora passassem por ali de forma recta
E usassem ambas de maneira semelhante,
E ambas igualmente deitassem naquela manhã
Em folhas que nenhum passo tornara pretas.
Ah, eu guardei a primeira para o amanhã!
Ainda que soubesse como à seguinte leva uma direção
Duvidei se um dia deveria voltar atrás.
Eu contarei isso enquanto expiro
Em algum lugar, em tempos e tempos:
Pois duas trilhas em um bosque divergiram, e eu,
Eu tomei aquela que menos percorreram,
E isso fez toda a diferença.

Robert Frost

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

CARTOON versus QUADRA

Os 20 Erros
HenriCartoon

«OS 20 ERROS»

Caros professores: sabem qual o motivo
De trinta e cinco por cento de reprovação?
Eu explico: os erros não passaram no crivo,
E vocês têm o pior ministro da educação!

POETA

POEMA DE IOSIF BRODSKII

«Separação»
Separação/ Edvard Munch

SEPARAÇÃO

Querida, hoje saí de casa já muito ao fim da tarde
para respirar o ar fresco que vinha do oceano.
O sol fundia-se como um leque vermelho no teatro
e uma nuvem erguia a cauda enorme como um piano.

Há um quarto de século adoravas tâmaras e carne no braseiro,
tentavas o canto, fazias desenhos num bloco-notas,
divertias-te comigo, mas depois encontraste um engenheiro
e, a julgar pelas cartas, tornaste-te aflitivamente idiota.

Ultimamente têm-te visto em igrejas da capital e da província,
em missas de defuntos pelos nossos comuns amigos; agora
não param (as missas). E alegra-me que no mundo existam ainda
distâncias mais inconcebíveis que a que nos separa.

Não me interpretes mal: a tua voz, o teu corpo, o teu nome
já não mexem com nada cá dentro. Não que alguém os destruísse,
só que um homem, para esquecer uma vida, precisa pelo menos
de viver outra ainda. E eu há muito que gastei tudo isso.

Tu tiveste sorte: onde estarias para sempre — salvo talvez
numa fotografia — de sorriso trocista, sem uma ruga, jovem, alegre?
Pois o tempo, ao dar de caras com a memória, reconhece a invalidez
dos seus direitos. Fumo no escuro e respiro as algas podres.

Iosif Brodskii

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(Continuação do álbum «Cat People», de David Bowie)

DAVID BOWIE
«Leopard Tree Dream»

OUTROS CONTOS

«Os Peixes do Guardião», por Teófilo Braga.

«Os Peixes do Guardião»
Escritor Teófilo Braga
(Columbano Bordalo Pinheiro)

401- «OS PEIXES DO GUARDIÃO»

De uma vez estavam os frades comendo no refeitório e coube a um deles um peixe muito pequenino. Este então reparou e viu que no prato do guardião estava um muito grande e que o comia à boca cheia. 

O frade era ladino e para se vingar do jejum a que o obrigavam abaixou a cabeça sobre o seu peixinho que tinha no prato e começou a nomear, como quem estava a conversar em segredo.
O guardião reparou nisto e pergunta de lá da cabeceira da mesa:

- Ó irmão, Frei Fulano, então o que é isto que está fazendo?

- Reverendo padre mestre, estava perguntando a este peixinho se alguma vez teria encontrando meu pai que morreu afogado no mar. Mas este respondeu-me que como é muito pequenino não soube disso e quem o poderá saber é o peixe que está no prato de vossa reverência que é muito grande e pode bem dar fé de tudo.

Teófilo Braga

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

CARTOON versus QUADRA

O Justo e o Pecador
HenriCartoon

«O JUSTO E O PECADOR»

- Mas tu estás a rir de quê, ó grego?
- Zé Tuga, faz-te falta o bom humor…
Afoga as mágoas, dá de beber à dor!
- Pra matar a sede, vejo-me negro!!

POETA

OUTROS CONTOS

«A Loba», por Giovanni Verga.
«A Loba»
Conto de Giovanni Verga

400- «A LOBA»

Era alta, magra; mas tinha um seio firme e vigoroso, de morena - embora já não fosse criança - pálida como se tivesse sempre a malária, e naquela palidez, uns olhos grandes e uns lábios frescos e rubros que fascinavam.

No povoado chamavam-lhe "A Loba" porque nunca se saciava. As mulheres persignavam-se ao vê-la passar sozinha como uma cadela, com aquele andar errante e desconfiado de loba faminta; roubava filhos e maridos num abrir e fechar de olhos, com seus lábios rosados, e levava-os colados aos seus vestidos, com aquele olhar de Satanás, ainda que estivessem ante o altar de Santa Agripina. Por sorte, a Loba não ia nunca à igreja, nem pela Páscoa nem pelo Natal, nem para ouvir missa, nem para se confessar. O padre Ângelo de Santa Maria de Jesus, um verdadeiro servo de Deus, tinha perdido a alma por ela.

A pobre Marica, menina boa e desembaraçada, chorava às escondidas, porque, filha da Loba, ninguém a queria por mulher, apesar de ter seu enxoval na cómoda e seu pedaço de chão como qualquer outra moça do povoado.

Um belo dia, a Loba enamorou-se de um belo rapaz que tinha voltado do serviço militar e que ceifava feno com ela nos campos do notário; mais do que se diz enamorar-se, sentia que lhe ardiam as carnes sob o fustão do corpete, e provar, ao fitá-lo nos olhos a sede das cálidas tardes de junho, em meio da planície. Porém ele continuava ceifar tranquilamente, atento aos feixes, e dizia-lhe: - O que há, dona Pina?

Nos campos imensos, onde só se ouvia o estridular do voo dos grilos, quando caía o sol a prumo, a Loba ceifava gavela após gavela e feixe atrás de feixe, sem se cansar jamais, sem erguer nem um momento o corpo, sem aproximar os lábios do garrafão, com o intuito de estar sempre nos calcanhares de Nanni, que ceifava e ceifava, e lhe perguntava de quando em quando: - O que quer, dona Pina?

Uma noite lhe disse, enquanto os homens dormitavam na eira, cansados, e vagavam os cães pelo campo vasto e negro: - Quero você, que é bonito como um sol e doce como o mel! Quero a ti!

- E eu quero a tua filha, que é mocinha - respondeu Nanni rindo.

A Loba levou as mãos à cabeça, coçou as fontes sem dizer palavra e, e se foi, sem voltar mais na eira. Mas em outubro tornou a ver Nanni, quando se extraía azeite, pois trabalhava perto de sua casa e o ranger da prensa não a deixava dormir a noite inteira.

- Apanha o saco das azeitonas - disse à filha - e vem comigo.

Nanni empurrava com a vara as azeitonas para debaixo da mó, e gritava "upa!" à mula para que não parasse.

- Gosta de minha filha Marica? - perguntou-lhe dona Pina.

- Que a senhora dá para a sua filha Marica? - perguntou Nanni.

- Tem tudo o que era do pai, e, além disso, lhe dou minha casa; a mim me basta que me dê um canto na cozinha onde possa estender um colchão.

- Se é assim, falaremos para o Natal - disse Nanni.

Nanni estava todo besuntado e sujo do azeite e das azeitonas postas a fermentar, e Marica não gostava dele de jeito algum; porém sua mãe agarrou-a pelos cabelos, diante da casa, e lhe disse, apertando os dentes:

- Se você não o pega, te mato!

A Loba parecia doente, e o povo dizia que o diabo quando fica velho se faz ermitão. Já não vivia de lá para cá; já não se punha a soleira com aqueles olhos de endemoninhada. O genro, quando ela lhe olhava com aqueles olhos, desandava a rir, e tirava o escapulário da Virgem para se benzer. Marica ficava em casa amamentando seus filhos, e sua mãe andava pelos campos trabalhando com os homens, como um homem também, lavrando, capinando, conduzindo o gado, podando as videiras, quer soprasse o gregal, o levante de janeiro ou o siroco de agosto, quando mulas abaixavam a cabeça e os homens dormiam de bruços ao abrigo do muro, do norte. "Nessa hora, entre véspera e nona, em que não passeia mulher direita", dona Pina era o único ser vivente a quem se via errar pela campina, sobre os seixos abrasados dos caminhos, entre os secos restolhos dos imensos campos, que se perdiam no cálido ambiente, longe, muito longe, para o Etna nevoento, onde o céu pendia, pesado, sobre o horizonte.

- Acorda - disse a Loba a Nanni, que dormia no valado junto da cerca poeirenta, com a cabeça entre os braços. - Acorda, eu te trouxe vinho para refrescar a garganta.

Nanni abriu os olhos atordoados, entre adormecido e desperto, e viu-a erecta, pálida, prepotente, olhos negros como o carvão, e tocou-lhe as mãos.

- Não! mulher direita não passeia entre véspera e nona! - disse Nanni, escondendo o rosto entre as ervas secas da valada. - Vai, vai! não volte mais à eira!

E a Loba se foi, de fato, reatando as formosas tranças, de olhar fixo ante seus passos nos cálidos restolhos, com os negros como carvão.

Voltou, porém, muitas vezes à eira, e Nanni não lhe disse nada. E até quando tardava a chegar, na hora, entre véspera e nona, ia esperá-la no alto da senda branca e deserta, com o suor na fronte, e depois levava as mãos à cabeça repetindo-lhe sempre:

- Vai, vai, e não volte mais à eira!

Marica chorava dia e noite, e plantava-se ante sua mãe, os olhos ardentes de ciúmes e lágrimas, como uma lobinha, ela também, sempre que a via voltar do campo, pálida e muda.

- Desalmada! - lhe dizia. - Mãe desalmada!

- Cala-te!

- Ladra, ladra!

- Cala-te!

- Vou contar ao brigadeiro!

- Vai!

E foi mesmo, com seus filhos nos braços, sem medo, sem verter uma lágrima, como uma louca, porque agora também ela queria aquele marido que lhe tinham dado à força, besuntado e sujo das azeitonas postas a fermentar.

O brigadeiro mandou chamar Nanni; ameaçou-o até com a prisão e a forca. Nanni desatou a chorar e a puxar os cabelos. Nada negou! Não tentou desculpar-se! - É a tentação - dizia - é a tentação do inferno! - E se se jogou aos pés do brigadeiro, suplicando-lhe que o metesse na cadeia:

- Por caridade, senhor brigadeiro, tire-me deste inferno! Que me matem! Que me encarcerem; contanto que não a veja mais, nunca mais!

- Não! - argumentou a Loba ao brigadeiro. - Eu reservei para mim um canto da cozinha para dormir, quando lhes dei minha casa como dote. A casa é minha; não quero sair!

Pouco depois, Nanni levou um coice de mula, e estava para morrer; mas o pároco recusou-se lhe levar o Senhor se a Loba não saísse da casa. A Loba saiu, e seu genro pôde então se preparar para morrer como bom cristão, e confessou-se e comungou com tais mostras de arrependimento e de contrição, que todos os vizinhos e curiosos choravam junto ao leito do moribundo. Melhor lhe teria sido morrer naquele dia, antes que o diabo voltasse a tentá-lo e a meter-se-lhe na alma e no corpo se restabeleceu.

- Me deixa! - dizia à Loba. - Por caridade, me deixa em paz! Vi a morte com estes dois olhos! A pobre Marica está desesperada. Todo o povoado já sabe! Quando não te vejo é melhor para ti e para mim...

Teria desejado arrancar os olhos para não ver os da Loba, que quando se cravavam nos seus lhe faziam perder a alma e o corpo. Não sabia o que fazer para livrar-se do feitiço. Pagou missas às almas do Purgatório; pediu ajuda ao pároco e ao brigadeiro. Pela Páscoa se confessou e arrastou-se em público, lambendo, em penitência, seis palmos de ladrilhos do adro da igreja. Mas depois, como Loba voltasse a tentá-lo:

- Escuta! - disse-lhe - não volte mais à eira, porque se voltar para me tentar, te mato; tão certo como há Deus.

- Me mata, - respondeu a Loba, eu não me importo; mas não vou ficar sem você.

Quando a viu ao longe, em meio das verdes sementeiras, deixou de cavar as vinhas e foi arrancar o machado do olmo. A Loba viu-o aproximar-se, pálido, com olhos arregalados, de machado brilhando ao sol, e não recuou um só passo; não baixou os olhos, continuou andando ao seu encontro, com as mãos cheias de papoilas vermelhas, devorando-o com seus olhos negros. 

- Ah, maldita seja tua alma! - balbuciou Nanni.

Giovanni Verga

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(Continuação do álbum «Cat People», de David Bowie)

DAVID BOWIE - «To The Bridge»

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

OUTROS CONTOS

«Prisão Azul», por Antônio Callado .

«Prisão Azul»
Conto de Antnio Callado

399- «PRISÃO AZUL»

Patas macias sobre folhas mortas. Ao atravessar num salto a janela aberta o tigre sabia muito bem que o lenhador tinha saído. O bebê de dois anos estava sentado no chão, brincando. Sozinho, sozinho. O tigre se aproximou cauteloso e quando a criança viu aquele cachorrão rajado abriu com espanto dois olhos azuis, dois lábios sorridentes, dois bracinhos. O tigre começou pelos braços. Depois devorou o resto da criança e tratou de voltar à floresta.

Suponha, agora, que esse tigre cresceu, deixou de comer criança e relembra um dia como havia devorado o filho do lenhador. Um sorriso estranho paira sobre sua cara, sorriso no qual seu orgulho tigrino só permite que se manifeste um tiquinho de remorso. O resto do sorriso é a pura lembrança da carne tenra da criança, é desprezo pelo lenhador estúpido que deixou a janela aberta — uma completa orgia de satisfação consigo mesmo.

Foi com um sorriso assim (e há sorrisos dificílimos de descrever) que o amigo do homem desaparecido se aproximou da janela do seu apartamento tendo na mão o livro que o desaparecido dedicara a ele: “Para você, meu grande amigo”. O amigo olhou lá fora o mar que ia além da praia de Copacabana e que flambava ao sol do meio-dia como uma poncheira acesa. Era quase um milagre a capacidade que tinha o Rio de dar às pessoas uma sensação de bem-estar, de saúde. O desaparecido também amava o Rio. Curioso como ele tinha desaparecido de forma tão absoluta. Evaporou-se. Soube-se depois da sua morte que ele passara os últimos dez anos de vida nas brenhas de Goiás. Ninguém sabia ao certo de que modo morrera. O manuscrito do livro tinha sido encontrado no meio das coisas dele, o manuscrito em cuja primeira página aparecia a dedicatória a ele, o amigo. O sorriso de tigre regenerado voltou à cara do homem que lembrava o amigo: “Para você, meu grande amigo”.

Antes de sumir, o desaparecido frequentemente ria de si mesmo. Diferenças de grau, só de grau. Diferenças de espécie são um absurdo. Mesmo quando muda, a espécie muda gradualmente, portanto é válido o princípio. Veja-se, como exemplo, a sensação que às vezes tomava conta dele em plena rua e que ele chamava de pedra de contato com a realidade: isso acontecia com todo o mundo. Só que com ele a frequência e a intensidade com que acontecia eram muito maiores. Parecia uma bolha a inchar, inchar e doer. Perguntara a uma porção de pessoas se acontecia com elas de repente, no meio da rua e em hora de movimento, começar subitamente a sentir a estupidez incompreensível de todo aquele ir e vir. Sim, acontecia. Mas ficavam todos surpreendidos e faziam cara de dúvida quando ele lhes perguntava se sentiam aquilo a ponto de parar no meio da multidão; de olhar um lado para o outro, tentando entender o que estava acontecendo; de seguir alguém, para descobrir onde estava indo e para resolver o mistério de tanta pressa; de logo depois fazer o mesmo em relação a outra pessoa; de olhar angustiado aqueles arroios humanos que não corriam para nenhum mar comum e sim para lagoas isoladas, piscinas, poças d’água; de segurar com ambas as mãos a cabeça que doía e correr para o meio da rua sem pensar nos carros que passavam rápidos. Não, isso era um exagero e aliás dava para sentir, em todos aqueles que interrogava, que nem acreditavam que ele vivesse momentos assim. Eram pessoas que não acreditavam sequer em diferenças de grau.

— Deve ser sua imaginação, diziam com um sorriso, mas que é interessante não tem dúvida. Aliás, hoje em dia está até na moda uma certa morbidez, acrescentavam, sem saber que estavam usando uma arma muito antiga e possivelmente necessária.

A verdade pura e simples é que ele só fazia essas perguntas com a honesta intenção de obter uma resposta, de descobrir alguma coisa a respeito da pessoa com quem falava, ou, talvez mais ainda, sobre ele mesmo. Já lhe bastava, e muito, o quebra-cabeça representado por todos aqueles desconhecidos que ele tinha ímpetos de parar e interrogar sem mais nem menos no meio da rua.

Uma coisa, porém, o preocupava mais que qualquer outra na véspera do dia em que desapareceu. Aquela sensação que nas ruas apinhadas de gente acabava quase em angústia, pois envolvia estranhos, na sua própria vida íntima, privada, acabava em puro contentamento. Quando lhe aparecia um problema especial a resolver, ele o encarava corajosamente, sem evasões ou truques, pois sabia de antemão qual seria o resultado. Com método, pesando prós e contras, considerando todas as consequências, chegava à própria e nua raiz do problema… e então tudo se evolava, se desfazia no ar, e ele entrava num estado de puro e neutro prazer, um prazer branco, luminoso, para lá do pensamento. Como se fosse entrando com cautela mas com passo firme numa floresta densa na qual, chegado ele ao ponto mais escuro, todas as árvores ainda em volta tombassem ao mesmo tempo, no maior silêncio; e só permanecesse no mundo a luz ofuscante do sol. O que o preocupava na véspera do dia em que desapareceu é que ele tentava, mas ainda não haviam conseguido, concentrar todas as suas faculdades num problema sério.

Por que tão sério? Porque envolvia o amigo. Não por causa de minha mulher, continuou o homem que desapareceu, determinado agora a pensar seu problema até o fim. Para mim minha mulher é feito um sapato velho, cambaio. E meu amigo sabe muito bem disso, o que apenas torna a coisa toda mais incompreensível. Um tolo desejo de aventura? Nunca, jamais. Meu amigo sabe que eu não abandono minha mulher porque ninguém propriamente abandona um par de sapatos velhos. A gente simplesmente os esquece em algum canto. Ele me diria, se fosse o caso, que havia, que há alguma coisa entre os dois — e pronto.

— Usei aquele seu sapato velho outro dia, ele diria. Tudo bem. São inúmeros os caminhos abertos neste mundo mesmo para quem caminhe descalço. Que sentido haveria em criar um caso sobretudo quando eram tão velhos os sapatos? Não, ele está cansado de conhecer meus sentimentos e já teria me falado a respeito. Ou… Caso fosse verdade (o chato é que tanta gente dizia que era que ele se obrigava a pensar tanto sobre tal bagatela), só uma explicação era possível: meu amigo de fato se apaixonou por minha mulher e simplesmente não tem coragem de me dizer. E quem sabe por minha exclusiva culpa? Ela para mim tem tão escasso valor, e isso eu disse ao amigo tantas vezes, que lhe falta coragem para dizer que passou a amar uma pessoa tão depreciada. Sim, talvez fosse isso. E o homem prestes a desaparecer sorriu, meio envergonhado de pensar que estava, ainda que sem intenção, fazendo uso do amigo: seria de todo o cúmulo da amizade se o amigo pensasse em ficar definitiva e legalmente com minha mulher. Aqui se apagou no seu rosto o vago sorriso de até agora. Quem sabe, Deus meu? O amigo sabe como é grande meu amor por Maria Auxiliadora. Será que lhe ocorreu a idéia de se sacrificar por mim? Não, nem eu permitiria nem ele… Eu só quero Maria Auxiliadora como a tenho agora, mesmo porque a gente não se casa com uma mulher assim, a gente simplesmente aceita a luz e o calor, banho de sol no coração do inverno… Ela é quase a Luz! Aquela claridade. A floresta que se deita no chão. Era precisamente quando chegava ao ponto em que a floresta se tragava a si mesma que Johann Sebastian começava a passar a música para o papel, aquela música que se encerrava de repente de forma inesperada, mas que podia ter continuado para sempre, eterna, já que não tinha fim e ele apenas aparentava ou fingia ter chegado ao fim porque chegara isto sim ao fim do papel pautado e porque sabia que ninguém podia suportar sem enlouquecer o luzir permanente daquela Luz em música.

O homem que ia desaparecer perdeu-se nas profundezas do seu problema… Ao voltar a si passou o lenço na testa húmida. A inexistência de todos os problemas. O compromisso que tinha assumido que cuidasse de si mesmo. Ele ia, isto sim, ver Maria Auxiliadora. Tomou o ônibus e no caminho deixou-se invadir pelo salgado travo de onda e de alga que subia das praias de alva areia, a infinita, angustiada fieira de areia que é a única coisa a impedir que as montanhas azuis e o mar azul se dissolvam num único e irreparável azul. O ônibus beirou primeiro a praia de Santa Luzia, depois Flamengo, Botafogo, as vastas areias brancas de Copacabana, Ipanema, Leblon. Quando parou no fim da linha o homem que ia desaparecer saltou e foi andando para a pequena casa em que morava Maria Auxiliadora. Aproximou-se das tábuas brancas do portão, espantadas de vê-lo àquela hora do dia. E lá estava a fascinante casa branca, feito um brinquedo esquecido na grama. Entrou, atravessou o jardim e espiou pela janela da sala de estar. Não viu Maria Auxiliadora, que ainda estaria dormindo. Abriu a porta da frente e ia atravessar a sala, em direção ao quarto de dormir, quando ouviu vozes e riso que vinham de lá. Ia chamar Maria Auxiliadora em voz alta, alegre, mas se conteve e andou até a porta. Ouviu as únicas duas vozes que realmente conhecia bem. Pela única e última vez em sua vida curvou-se até o buraco da fechadura. As venezianas estavam cerradas. Só havia no quarto aquela luz baça e enjoativa na qual se escondem aqueles que preferem não encarar nem o amor. O homem que naquele momento já quase havia desaparecido ouviu a voz do amigo, seguida do riso de Maria Auxiliadora.

— Pois é. Quanto mais ele acha que há alguma coisa entre a mulher dele e eu, menos consegue adivinhar que…

O homem que desapareceu saiu da sala de estar pé ante pé, fechou sem ruído a porta, passou em silêncio pelo portão de tábuas brancas e se foi. Como um ladrão. E qualquer policial que o pegasse naquele momento teria a certeza, sem lhe fazer qualquer pergunta, que o ladrão tinha encontrado joias, joias do mais alto preço, que ninguém imaginaria pudessem estar guardadas numa casa tão pequena e simples.

Antônio Callado

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de Hoje é ...
(Continuação do álbum «Cat People», de David Bowie)

DAVID BOWIE
«Seduction transformation»

domingo, 25 de janeiro de 2015

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(Continuação do álbum «Cat People», de David Bowie)

DAVID BOWIE - «Night Rabbit»

OUTROS CONTOS

«Segunda ou Terça-Feira», por Virginia Woolf.

«Segunda ou Terça-Feira»
Conto de Virginia Woolf

397- «SEGUNDA OU TERÇA-FEIRA»

Preguiçosa e indiferente, vibrando facilmente o espaço com suas asas, conhecendo seu rumo, a garça sobrevoa a igreja por baixo do céu. Branca e distante, absorta em si mesma, percorre e volta a percorrer o céu, avança e continua. Um lago? Apaguem suas margens! Uma montanha? Ah, perfeito – o sol doura-lhe as margens. Lá ele se põe. Samambaias, ou penas brancas para sempre e sempre. 

Desejando a verdade, esperando-a, laboriosamente vertendo algumas palavras, para sempre desejando – (um grito ecoa para a esquerda, outro para a direita. Carros arrancam divergentes. Ônibus conglomeram-se em conflito) para sempre desejando – (com doze batidas eminentes, o relógio assegura ser meio-dia; a luz irradia tons dourados; crianças fervilham) – para sempre desejando a verdade. O domo é vermelho; moedas pendem das árvores; a fumaça arrasta-se das chaminés; ladram, berram, gritam “Vende-se ferro!” – e a verdade? 

Radiando para um ponto, pés de homens e pés de mulheres, negros e incrustados a ouro – (Este tempo nublado – Açúcar? Não, obrigado – a comunidade do futuro) – a chama dardejando e enrubescendo o aposento, exceto as figuras negras com seus olhos brilhantes, enquanto fora um caminhão descarrega, Miss Fulana toma chá à escrivaninha e vidraças conservam casacos de pele. 

Trêmula, leve-folha, vagueando nos cantos, soprada além das rodas, salpicada de prata, em casa ou fora de casa, colhida, dissipada, desperdiçada em tons distintos, varrida para cima, para baixo, arrancada, arruinada, amontoada – e a verdade? 

Agora recolhida pela lareira, no quadrado branco de mármore. Das profundezas do marfim ascendem palavras que vertem seu negrume. Caído o livro; na chama, no fumo, em momentâneas centelhas – ou agora viajando, o quadrado de mármore pendente, minaretes abaixo e mares indianos, enquanto o espaço investe azul e estrelas cintilam – verdade? Ou agora, consciente da realidade? 

Preguiçosa e indiferente, a garça retoma; o céu vela as estrelas; e então as revela.

Virginia Woolf

sábado, 24 de janeiro de 2015

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(Continuação do álbum «Cat People», de David Bowie)

DAVID BOWIE
«Cat People/ Putting out Fire»
Cat People (Putting Out Fire) by David Bowie on Grooveshark
Poet'anarquista

POVO GATO (APAGANDO O FOGO) 

Veja estes olhos tão verdes
Eu posso olhar por mil anos
Tão frios como a lua

Sinto meu sangue gelar
É apenas o medo de te perder
Você não sabe meu nome
Bem, faz tanto tempo

E eu tenho apagado o fogo
Com gasolina

Veja estes olhos tão vermelhos
Vermelhos como o clarão de uma mata queimando
Aqueles que me sentem por perto
Puxem as cortinas e mudem suas mentes
Já faz muito tempo

Esta noite ainda pulsa
Uma praga que chamo de batimentos cardíacos
Apenas fique calma comigo
Você não acreditaria pelo que passei
Você se foi há tanto tempo
Bem, isso foi há tanto tempo

E eu tenho apagado fogo com gasolina
Apagando o fogo
Com gasolina

Veja estas lágrimas tão azuis
Um coração sem idade que não tem conserto
Estas lágrimas nunca podem secar
Um julgamento feito nunca pode mudar

Veja estes olhos tão verdes
Eu posso olhar por mil anos
Apenas fique calma comigo
Você não acreditaria pelo que passei

Você se foi há tanto tempo
Bem, isso foi há muito tempo
E eu tenho apagado fogo com gasolina
Apagado fogo com gasolina

Apagando fogo
Nós temos apagado fogo
Bem, já faz tanto tempo, tanto tempo, tanto tempo
Sim, já faz muito tempo, muito tempo, muito tempo
Eu tenho apagado fogo
Faz muito tempo, muito tempo, muito tempo
E apagando o fogo
Faz muito tempo, muito tempo, muito tempo
É, é, apagando o fogo
Faz muito tempo, muito tempo, muito tempo
Tenho apagado fogo
Faz muito tempo, muito tempo, muito tempo
É, apagando fogo
Faz muito tempo, muito tempo, muito tempo
Apagando fogo
Faz muito tempo, muito tempo, muito tempo
Faz tanto tempo
Faz muito tempo, muito tempo, muito tempo
Faz tanto tempo
Faz muito tempo, muito tempo, muito tempo
Faz tanto tempo
Faz muito tempo, muito tempo, muito tempo
Eu tenho apagado fogo

David Bowie