sexta-feira, 31 de julho de 2015

CARTOON versus SONETO

Recrutamento
HenriCartoon

«RECRUTAMENTO»

Quase aptos a candidatos
Nas listas pelo CDS...
Pra chegarem a deputados,
Não é qualquer que merece!

O vosso currículo é escasso
Nestas novas andanças…
Poupem esforços e cansaço
A angariar umas poupanças.

Para adquirirem experiência
Em negócios de submarinos,
Precisam ter grande ciência!...

Então é assim, meus meninos:
Em primeiro a incompetência
Dos candidatos mais cretinos!!!

POETA

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

FRANZ LISZT - «Liebestraum»

Poet'anarquista

Franz Liszt
Compositor e Pianista Húngaro

OUTROS CONTOS

«Auschwitz, Cidade Tranquila», por Primo Levi.

«Auschwitz, Cidade Tranquila»
Auschwitz-Birkenau/ Entrada

577- «AUSCHWITZ, CIDADE TRANQUILA»

Pode surpreender o fato de que no campo de concentração um dos estados de ânimo mais frequentes fosse a curiosidade. Porém, estávamos, além de assustados, humilhados e desesperados, curiosos: famintos de pão e também de compreensão. O mundo à nossa volta parecia de cabeça para baixo, portanto alguém devia tê-lo emborcado, e por isso esta pessoa mesma estar de cabeça para baixo: um, mil, um milhão de seres anti-humanos, criados para torcer aquilo que estava direito, para sujar o limpo. Era uma simplificação ilícita, mas naquele tempo e naquele lugar não éramos capazes de qualquer idéia complexa.

No que diz respeito aos senhores do mal, essa curiosidade, que admito conservar, e que não está limitada aos chefes nazistas, continua existindo. São lançados centenas de livros sobre a psicologia de Hitler, Stálin, Himmler, Goebbels, e já li dezenas sem que me satisfizessem: mas é possível que se trate aqui de uma insuficiência essencial da página documentária; esta quase não mais possui o poder de restituir o íntimo de um ser humano: para este fim, mais que o historiador ou o psicólogo, são úteis o dramaturgo ou o poeta.

Entretanto, essa minha pesquisa não foi de todo infrutífera: um destino estranho, mesmo provocativo, me colocou nas pegadas de um dos “do outro lado”, por certo não um grande do mal, talvez nem mesmo um malvado digno do título, porém uma amostra e uma testemunha. Uma testemunha a contragosto, que não desejava sê-lo, mas que o foi sem querer, e talvez mesmo sem saber. Aqueles que testemunham através de seu comportamento são os mais preciosos, porque verídicos.

Ele era um quase-eu, um outro eu-mesmo ao contrário. Éramos coetâneos, não diferentes em formação, talvez nem mesmo em personalidade; ele, Mertens, jovem químico alemão e católico, e eu, jovem químico italiano e judeu. Potencialmente dois amigos: de fato, trabalhávamos na mesma fábrica, mas eu estava do lado de dentro do arame farpado, e ele, fora. Entretanto, estávamos trabalhando a uma enorme distância um do outro, nos canteiros de Bruna-Werke, em Auschwitz, e que nós dois, ele Oberingenieur e eu, químico-escravo, tivéssemos nos encontrado é improvável, e de qualquer forma não mais verificável. Nem mesmo depois nos vimos.

Aquilo que sei dele provém de cartas de amigos em comum: o mundo se revela às vezes risivelmente pequeno, a ponto de consentir que dois químicos de países diferentes possam estar ligados por uma cadeia de conhecidos, e que estes se prestem a tecer uma rede de notícias confusas que é uma substituta imperfeita do encontro direto, mas que, porém, é melhor que a recíproca ignorância. Por esse meio, soube que Mertens havia lido meus livros sobre o campo de concentração, e provavelmente também outros, porque não era um cínico nem um insensível: tendia a negar um certo fragmento do seu passado, mas era bastante evoluído para abster-se de mentir a si mesmo. Não se presenteava com mentiras, mas com lacunas, espaços em branco.

A primeira notícia que tenho dele remonta ao final de 1941, época de repensamento para todos os alemães ainda em condições de raciocinar e de resistir à propaganda: os japoneses espalhavam-se vitoriosos por todo o sudeste asiático, os alemães assediam Leningrado e estão às portas de Moscou, mas a era das blitz acabou, o colapso da Rússia não ocorreu, e, ao invés disso, haviam começado os bombardeios aéreos de cidades alemãs. Agora a guerra é problema de todos, em todas as famílias há pelo menos um homem no fronte, e nenhum homem no fronte está seguro da incolumidade de sua família: atrás das portas das casas, a retórica belicista não tem mais vez.

Mertens é químico em uma fábrica metropolitana de pneus, e a direção da empresa lhe faz uma proposta que é quase uma ordem: terá vantagens de carreira, e talvez também políticas, se aceitar transferir-se para as Bruna-Werke de Auschwitz. A zona é tranquila, longe do fronte e fora do raio dos bombardeios, o trabalho é lá mesmo, o estipêndio é melhor, nenhuma dificuldade de alojamento: muitas casas polonesas estão vazias…

Mertens discute a situação com amigos; em sua maioria, eles lhe aconselham, não se troca o certo pelo incerto, e depois os Bruna-Werke estão em uma má região, pantanosa e insalubre. Insalubre também historicamente, a Alta Silésia é um daqueles cantos da Europa que têm mudado de donos muitas vezes, e que são habitados por povos mistos e inimigos entre si.

Mas contra o nome de Auschwitz ninguém tem objeções: ainda é um nome vazio, que não suscita ecos; uma das tantas cidades polonesas que depois da ocupação alemã mudaram de nome. Oswiecim tornou-se Auschwitz, como se bastasse isso para tornar alemães os poloneses que a habitam há séculos. É uma cidade como tantas outras.

Mertens pensa assim: está noivo, e manter sua casa na Alemanha, sob os bombardeios, é imprudente. Pede uma licença e vai ver o local. O que viu nessa primeira vistoria não sabemos: o homem voltou, se casou, não falou com ninguém, e partiu para Auschwitz com a esposa e os móveis para estabelecer-se lá longe. Os amigos, exatamente aqueles que me escreveram essa história, lhe convidaram a falar, mas ele não falou.

Não falou nem mesmo quando do seu segundo retorno à pátria, no verão de 1943, em férias (porque também na Alemanha nazista em guerra, em agosto andava-se em férias). E depois o cenário havia mudado. O fascismo italiano, batido em todos os frontes, despedaçou-se, e os aliados tomam a península; a batalha aérea contra os ingleses está perdida, e nenhum canto da Alemanha está mais protegido dos impiedosos revides aliados; os russos não apenas não caíram, como Stalingrado infligiu aos alemães, e a Hitler em particular, que havia dirigido a operação com a obstinação de um louco, a mais pungente das derrotas.

O casal Mertens é objeto de uma cautelosíssima curiosidade, porque a este ponto, a despeito de todas as precauções, Auschwitz não é mais um nome vazio. Boatos circulavam, imprecisos mas sinistros: deve-se deixar Dachan e Buchenwald, antes que as coisas fiquem piores; é um daqueles lugares sobre os quais é arriscado fazer perguntas, mas se é entre amigos íntimos, de velha data: Mertens vem de lá, deve saber alguma coisa, e se sabe, deveria contar.

Mas, enquanto cruzam-se as conversas de todos na sala de estar, as mulheres falando de emigrações e do mercado negro, os homens de seu trabalho, e alguns contam a baixa-voz a última anedota antinazista, Mertens se afasta. Na sala ao lado há um piano, ele toca e bebe, volta à sala de estar de vez em quando apenas para um outro cálice. À meia-noite está embriagado, mas o anfitrião não o perdeu de vista; arrasta-o até a mesa e lhe diz claro e forte: – Depois sente-se aqui e diga logo o que diabos há com você, e porque deve embriagar-se em vez de falar com a gente.

Mertens se sente contido entre a embriaguez, a prudência e uma certa necessidade de confessar-se: – Auschwitz é um campo de concentração – ele diz, – ou melhor, um grupo de campos de concentração: um deles é contíguo à fábrica. São homens e mulheres, sujos, em trapos, não falam alemão. Fazem o trabalho mais árduo. Nós não podíamos falar com eles. – Quem foi que proibiu? – A direção. Assim que chegamos, nos disseram que aquelas eram pessoas perigosas, bandidas, subversivas. – E você nunca falou com elas? – pergunta o anfitrião. – Não, – responde Mertens servindo-se de um outro cálice. Aqui intervém a jovem senhora Mertens: – Eu conheci uma mulher que fazia a limpeza na casa de um dirigente. Me dizia apenas “Frau, Brot”: “senhora, pão”, mas eu… – Mertens não devia estar tão embriagado, porque disse secamente à mulher:

– Pare com isso – e aos outros: – Não querem mudar de assunto?

Não sei muito do comportamento de Mertens depois da queda da Alemanha. Sei que ele e sua esposa, como muitos alemães das regiões orientais, fugiram diante dos soviéticos ao longo das intermináveis estradas da derrota, cheias de neve, de escombros e de mortos; e que a seguir ele retomou seu trabalho técnico, mas recusando contatos e fechando-se cada vez mais em si mesmo.

Falou um pouco mais alguns anos depois do fim da guerra, quando não havia mais a Gestapo para fazer-lhe medo. Para interrogar-lhe, desta vez havia um “especialista”, um ex-prisioneiro que hoje é um famoso historiador dos campos de concentração, Hermann Langbein. A perguntas precisas, respondeu que havia aceitado transferir-se para Auschwitz para evitar que ao invés dele assumisse um nazista; que não havia falado com os prisioneiros por temer punições, mas que havia sempre procurado aliviar suas condições de trabalho; que àquele tempo não sabia nada das câmaras de gás, porque não havia perguntado nada a ninguém. Não se dava conta de que sua obediência era uma ajuda concreta ao regime de Hitler? Sim, hoje sim, mas não na época: nunca lhe viera à mente.

Nunca procurei me encontrar com Mertens. Eu experimentava um complexo recato, de que a aversão era apenas um dos componentes. Anos atrás, lhe escrevi uma carta: dizia que se Hitler havia subido ao poder, devastado a Europa e conduzido a Alemanha à ruína, é porque muitos bons cidadãos comportaram-se como ele, procurando não ver e calando-se quando viam. Mertens não me respondeu, e morreu alguns anos depois.

Primo Levi

quinta-feira, 30 de julho de 2015

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

BOY GEORGE - «Everything I Own»

Poet'anarquista

TUDO EU PRÓPRIO

Você me protegeu do mal 
Me manteve aquecido, me manteve aquecido
Você devolveu minha vida
Me libertou, você me libertou
De todos os anos que já passei
Aqueles extraordinários que passei com você

Eu daria tudo que tenho
abriria mão da minha vida, meu coração, meu lar
Eu daria tudo que tenho
Simplesmente para ter você de volta novamente

Você me ensinou como chorar
Não sei por que, simplesmente não sei por que
Você me disse aquelas mentiras
Você me libertou, você me libertou
De todos os anos que já passei
Aqueles extraordinários que passei com você

Eu daria tudo que tenho
abriria mão da minha vida, meu coração, meu lar
Eu daria tudo que tenho
Simplesmente para ter você de volta novamente
Simplesmente para te abraçar
ao menos por uma vez novamente

Se há alguém que você conheça
que não deixará você partir
e que aceite tudo isso sem pedir nada em troca
Você pode perdê-las um dia
Alguém levá-las embora
E você não ouve uma palavra deles

Eu daria tudo que tenho
abriria mão da minha vida, meu coração, meu lar
Eu daria tudo que tenho
Simplesmente para ter você de volta novamente
Simplesmente para te abraçar
ao menos por uma vez novamente

Eu daria tudo que tenho
abriria mão da minha vida, meu coração, meu lar
Eu daria tudo que tenho
Simplesmente para ter você de volta novamente
Simplesmente para te abraçar
ao menos por uma vez novamente
Ao menos por uma vez novamente

Boy George & Culture Club
Cantor e Compositor Britânico

OUTROS CONTOS

«O Morro dos Ventos Uivantes», por Emily Bronte.

«O Morro dos Ventos Uivantes»
Excerto do Romance de Emily Bronte

576- «O MORRO DOS VENTOS UIVANTES»

[Excerto]

 (...)

“Era tarde da noite, e o bebé chorou, E o sapo na lagoa bem que escutou, quando Cathy, que ouvira toda a cena, passou a cabeça pela porta e perguntou, num murmúrio:

— Nelly, você está sozinha?

— Estou, sim — respondi.

Ela entrou e aproximou-se da lareira. Supondo que fosse dizer algo, levantei a cabeça para olhá-la. A sua expressão era de preocupação e ansiedade. Tinha os lábios semi-abertos, como se fosse dizer alguma coisa, mas limitou-se a suspirar. Recomecei a cantar, pois não esquecera ainda o seu recente comportamento.

— Onde está Heathcliff? — perguntou, interrompendo-me.

— Trabalhando na cavalariça — repliquei.

Ele não me contradisse; talvez tivesse adormecido. Seguiu-se outra longa pausa, durante a qual vi uma ou duas lágrimas escorrerem pelas faces de Catherine. "Será que está arrependida da sua vergonhosa conduta?", pensei.

"Isso seria novidade; mas não vou ajudá-la, ela que se arranje!" Enganava-me: ela não se preocupava senão com os seus próprios problemas.

— Oh, meu Deus! — exclamou, finalmente. — Sinto-me tão infeliz!

— Que pena! — observei. — Mas você é mesmo difícil de contentar: tem tantos amigos e tão poucas preocupações, e nem assim se sente satisfeita!

— Nelly, será que você é capaz de guardar um segredo? — continuou ela, ajoelhando-se ao meu lado e erguendo para mim os seus belos olhos, que tinham a propriedade de acabar com qualquer ressentimento, mesmo que fosse absolutamente legítimo.

— É um segredo que vale a pena guardar? — perguntei, com voz menos seca.

— É, e está me preocupando, preciso desabafar! Quero saber o que devo fazer. O caso é o seguinte: Edgar Linton pediu-me hoje em casamento, e eu lhe dei uma resposta.

Agora, antes que eu lhe diga se a resposta foi afirmativa ou negativa, diga-me qual deveria ter sido.

— Ora, Srta. Catherine, como é que eu posso saber? — retruquei. — Para dizer a verdade, depois da cena que fez na presença dele, esta tarde, acho que seria acertado recusar-lhe a proposta; se ele a pediu em casamento depois daquilo, deve ser ou completamente estúpido ou insensato.

— Se você falar assim não lhe conto mais nada — replicou ela em tom caprichoso, pondo-se de pé. — Respondi que sim, Nelly. Agora, diga depressa se eu errei!

— Você já lhe respondeu que sim? Então, para que discutir o assunto? Você já deu a sua palavra, não pode mais voltar atrás.

— Mas diga se eu fiz bem. . . diga! — exclamou ela, já irritada, esfregando as mãos e franzindo a testa.

— Há muitas coisas a considerar antes de se poder responder a essa pergunta — respondi. — Antes de mais nada, você ama o Sr. Edgar?

— Como poderia deixar de amar? Claro que amo — respondeu.

Resolvi passá-la, então, por uma espécie de interrogatório, o que, para uma moça de vinte e dois anos, não deixava de ser razoável.

— Por que é que o ama, Sra. Cathy?

— Ora, porque sim. . . e isso basta.

— Absolutamente; você precisa dizer por quê.

— Bem, porque ele é belo e uma companhia muito agradável.

— Mau! — exclamei.

— E porque ele é jovem e alegre.

— Mau, outra vez.

— E porque ele me ama.

— Isso não interessa.

— E porque ele vai ser rico, e eu serei a mulher mais importante destas bandas e sentirei orgulho em tê-lo por marido.

— Pior ainda. Agora, diga-me, de que maneira você o ama?

— Como todo o mundo. . . oh, você parece boba, Nelly.

— Não sou, não. Responda.

— Bem, amo o chão que ele pisa e o ar que o rodeia e tudo quanto ele toca e tudo o que ele diz. Gosto da figura dele e de todas as suas ações; gosto dele todo. Pronto!

— E por quê?

— Não, você está caçoando de mim, e isso é de muito mau gosto. Para mim não é brincadeira! — exclamou a jovem, franzindo o sobrolho e voltando o rosto para o fogo.

— Não estou caçoando, Sra. Catherine — repliquei. — Você ama o Sr. Edgar porque ele é belo, jovem, alegre, rico e a ama. Essa última razão não interessa: você o amaria mesmo que ele não a amasse, acho eu; mas não o amaria se ele não possuísse as outras quatro atrações.

— Não, claro que não; apenas teria dó dele. . . ou o detestaria, se ele fosse feio e pateta.

— Mas há muitos outros jovens belos e ricos no mundo; até mais belos e mais ricos do que ele. Por que você não haveria de amá-los?

— Se há, não os conheço. Não conheço ninguém como Edgar.


— Mas talvez ainda vá conhecer; e ele não será sempre belo, nem jovem, nem, talvez, rico.

— É, agora, e só me interessa o presente. Gostaria que você falasse mais racionalmente.

— Bom, se só lhe interessa o presente, case-se com o Sr. Linton.

— Não preciso da sua permissão. . . eu vou casar com ele. Mas você ainda não me disse se eu faço bem.

— Muito bem, se é que as pessoas fazem bem em casar pensando apenas no presente.

Agora, gostaria de saber por que é que está tão infeliz. Seu irmão vai ficar muito satisfeito; os pais do Sr. Edgar decerto não porão obstáculos; você sairá de uma casa desordenada e sem conforto para um lar farto e respeitável; e vocês se amam. Tudo me parece um céu aberto. Onde está a infelicidade?

— Aqui! e aqui! — respondeu Catherine, batendo com uma mão na testa e a outra no peito. — Onde quer que a alma resida. No fundo da minha alma e do meu coração, estou convencida de estar errada!

— Isso é muito estranho! Não entendo!

— É esse o meu segredo. Mas, se você não caçoar de mim, eu lhe explicarei. Não posso fazê-lo muito bem; apenas vou dar-lhe uma ideia do que eu sinto. Sentou-se novamente a meu lado. O seu rosto tornou-se mais triste e mais grave ainda, e as suas mãos tremiam.

— Nelly, você nunca tem sonhos esquisitos? — perguntou de repente, após alguns minutos de reflexão.

— Tenho, de vez em quando — respondi.

— Eu também. Já tive sonhos que nunca consegui esquecer e que mudaram a minha maneira de pensar: alteraram a cor da minha mente, assim como o vinho altera a cor da água. Vou lhe contar um desses sonhos. . . mas tenha o cuidado de não rir.

— Oh, por favor, Sita. Catherine! — exclamei. — Para que conjurar fantasmas e visões? Vamos, seja alegre como costuma ser. Olhe para o pequenino Hareton! Ele não está sonhando sonhos esquisitos. Veja como ele sorri docemente!

— Sim, e com o pai dele pragueja! Entretanto, você deve se lembrar dele mais ou menos assim: quase tão pequeno e tão inocente. De qualquer maneira, Nelly, vou obrigá-la a escutar o meu sonho. Não é comprido, e eu não posso estar alegre esta noite.

— Não quero ouvir, não quero ouvir! — repeti.
Eu era supersticiosa a respeito de sonhos, e ainda sou. Catherine tinha, naquela noite, um aspecto sombrio e nada comum, que me fazia temer e profetizar algo terrível. Ficou irritada comigo, mas não insistiu. Aparentemente mudando de assunto, continuou:

— Se eu estivesse no céu, Nelly, sentir-me-ia muito mal.

— É porque você não o merece — respondi. — Todos os pecadores se sentiriam mal no céu.

— Mas não é por isso. Uma vez sonhei que estava lá.

— Já lhe disse que não quero saber dos seus sonhos, Srta. Catherine! Vou para a cama
— ameacei.

Ela riu e segurou-me, pois fiz menção de me levantar.

— Não é nada — disse ela. — Só lhe ia contar que para mim não parecia ser o céu e que eu chorava desesperadamente, querendo voltar para a terra. Os anjos ficaram tão zangados comigo, que me jogaram bem em cima do Morro dos Ventos Uivantes, onde eu acordei soluçando de alegria. Isso me servirá para explicar o meu segredo. Não tenho mais razão para casar com Edgar Linton do que para estar no céu e, se esse homem perverso que é o meu irmão não tivesse feito Heathcliff descer tanto, eu nem teria pensado nisso. Mas agora eu me degradaria se casasse com Heathcliff, por isso ele nunca há de saber o quanto o amo: e não porque ele seja belo, Nelly, mas por ele ser mais eu do que eu própria. Não sei de que são feitas as nossas almas, mas elas são iguais; e a de Linton é tão diferente da minha quanto um raio de lua é diferente de um relâmpago, ou o fogo da geada.

Antes que ela tivesse acabado de falar, apercebi-me da presença de Heathcliff. Tendo notado um ligeiro movimento, virei a cabeça e vi-o erguer-se do banco e sair sem fazer barulho. Ouvira Catherine dizer que casar com ele a degradaria, e não quisera escutar mais. Sentada no chão, atrás do encosto do banco, ela não havia reparado na sua presença nem dera conta da sua partida; mas eu estremeci e fiz-lhe sinal para que se calasse.”

Emily Bronte

quarta-feira, 29 de julho de 2015

OUTROS CONTOS

«História de um Muro Branco e uma Neve Preta», por José Saramago.

«História de um Muro Branco e uma Neve Preta»
Conto de Natal de José Saramago

575- «HISTÓRIA DE UM MURO BRANCO E UMA NEVE PRETA»

A terra, àquela hora, cobria-se de uma noite tão escura que parecia impossível que dela pudesse nascer o Sol. Não tem chovido, as tempestades andam por longe, o rio descansa da sua primeira cheia de Inverno, os charcos são de mercúrio. O ar está frio, parado, e estala quando respiramos, como se nele se suspendesse uma ténue rede de cristais de gelo. Há uma casa e luz lá dentro. E gente: a Família. Na lareira ardem grossos troncos de lenha de donde se desprendem, lentas, as brasas. Quando à fogueira se lhes juntam gravetos, ramos secos, um punhado de palha, a labareda cresce, divide-se em trémulas línguas, sobe pela chaminé encarvoada de fuligem, ilumina os rostos da família e logo volta a quebrar-se. Ouve-se o ferver das panelas, o frigir do azeite onde bóiam as formas redondas das filhós, entre o fumo espesso e gorduroso que vai entranhar-se nas traves baixas do telhado e nas roupas húmidas. São talvez nove horas, a modesta mesa está posta, o momento é de paz e de conciliação, e a Família anda pela casa, confusamente ocupada em pequenos trabalhos, como um formigueiro.

Não tarda que saiam todos para o quintal. Vai ser lançado ao ar o foguete de três respostas, esse que, cumprindo a tradição, anunciará aos vizinhos que naquela casa já a última filhó saiu do tacho, a escorrer, e foi cair no alguidar profundo onde aguardará o retoque final da canela e da calda de açúcar. Entre portas, a Criança vê a Família a sorrir fazendo e desfazendo grupos em torno do avô, que sopra um tição trazido da lareira e o aproxima do cartucho de pólvora amarrado ao caniço. Tinha pedido que o deixassem ajudar, mas responderam-lhe como das outras vezes: “Ainda és muito pequeno, para o ano que vem”. A Família tem razão: é preciso ter cuidado com as crianças.

A pólvora inflama-se bruscamente, lança um jacto de fagulhas vivíssimas, silva como uma serpente, e logo é um dragão rugindo que sobe para o ar gelado, corta-o como uma espada de fogo, e lá muito no alto, quase tocando as primeiras estrelas, estala, estraleja, cobrindo os ecos de outro foguete distante. O caniço desce com uma luz mortiça que desmaia, e vai cair longe, nos olivais que rodeiam a casa, sobre as ervas cobertas de geada. Com este tempo não há perigo de que pegue fogo às árvores. De súbito, a Família diz que está frio e volta para casa, levando entre os braços, entre os anéis, entre os tentáculos, a Criança a quem não deixaram ajudar a lançar o foguete. Tinham deixado a porta aberta, o interior da cozinha arrefecera. A Avó acode a espalhar na fogueira uma mão-cheia de aparas, desgalha um ramo seco de oliveira, parte-o com as mãos calejadas, mas é com suavidade que depois chega os troços à chama, como se estivesse a alimentá-la. O lume hesita, escolhe o lado mais acessível da lenha, e depois, indiferente, alheado, a pensar noutra coisa, recomeça o seu eterno ofício de fabricante de cinzas.

A Família gira em redor da mesa, arruma-se nas poucas cadeiras que há, trazidas algumas de outras casas, uns quantos escabelos pouco firmes, um caixote velho posto em pé. Os rostos estão sorridentes e corados, e têm nomes e apelidos, mas, para a Criança, são, antes de tudo, os Pais, os Avós, os Tios, os Primos, um enorme e complicado corpo de animal que lhe lembra a história da Bicha-de-Sete-Cabeças ou o Dragão-Que-Não-Dorme. Sobre a mesa trava-se uma gesticulação ruidosa de facas e garfos, de mãos, de dentes, uma contínua mastigação que deforma os rostos e engordura as bocas. Contam-se casos, anedotas, todos riem. O frio está lá fora, e a geada, e a noite impenetrável. A Criança anima-se, já esqueceu a decepção, para o ano talvez a deixem lançar o foguete sozinha. Também tem uma história para contar, só está à espera duma pausa, dum momento mágico em que todos se calem, acaso emudecidos por um anjo que passou deixando apenas a imagem de um dedo imperioso sobre os lábios cerrados. O momento está a chegar por fim, uma a uma calam-se as bocas da Família, é agora ou nunca, a Criança inspira fundo, rompe o silêncio, começa a falar. A Família olha surpreendida, dá alguma atenção, mas não muita nem por muito tempo, não dura, não pode durar, as vozes regressam do silêncio, e é o Pai que lhe corta a narrativa com uma frase que faz rir toda a gente. Uma frase que vai fazer chorar a Criança. Porque o Menino, a Criança é um menino, levanta-se da mesa, abre a porta, separa-se da Família e desce os três degraus de pedra que conduzem ao mundo. Ali adiante há um muro caiado, baixo, com uma varanda dando para terras ignotas. A Criança vai debruçar-se sobre o muro, deixa cair a cabeça sobre os braços cruzados, e o terrível nó das lágrimas desata-se dentro de si. Da casa vêm risos e vozes, alguém fala muito alto, e depois ressoam gargalhadas. Ninguém está pensando na Criança.

Faz muito frio. Visto daqui, o céu parece estar feito de veludo negro. E há as estrelas. Duras, nítidas, implacáveis, quase ferozes. A Criança levanta os olhos. Lá estão elas a brilhar. Olhadas através das lágrimas, as estrelas são diferentes. Mundo estranho, estranho mundo, este. Sob os passos da criança, o chão duro e gelado range, E, em frente, as árvores negras, misteriosas, onde à noite os grandes medos se vão esconder, tomam o ar confidencial de quem conhece todos os segredos futuros, a hora e o lugar onde acontecerá o terceiro nascimento e o quarto, e o quinto, todos os aqueles que ainda esperam a esta Criança, até mesmo quando de havê-lo sido já não lhe restar memória.

As Crianças estão sempre a nascer. Às vezes nascem de explosivas alegrias, de achados incríveis, de deslumbramentos únicos, mas o mais frequente, uma vez após outra, é nascerem de cada tristeza sofrida em silêncio, de cada desgosto padecido, de cada frustração imerecida. Há que ter muito cuidado com as Crianças, nunca me cansarei de o dizer. Um dia uma Professora teve uma ideia de Professora e mandou os seus alunos que fizessem uma composição plástica sobre o Natal. Claro está que não empregou esta linguagem, o que disse foi: “Façam um desenho sobre o Natal. Usem lápis de cores, ou aguarelas, ou papel de lustro, o que quiserem. E tragam na segunda-feira”. Uns com lápis, outros com aguarelas, outros com papel recortado, alguns pintando com os dedos, todos cumpriram o melhor que puderam. Apareceu tudo quanto é costume nestes casos: o presépio, os reis magos, os pastores, São José, a Virgem e, inevitavelmente, o Menino Jesus. Bem feitos uns, mal feitos outros, toscos ou esmerados, os desenhos caíram na segunda-feira em cima da secretária da Professora. Ali mesmo ela os viu e lhes pôs nota. Ia marcando “bom”, “mau”, “suficiente”, como se com esses juízos os marcasse para a eternidade. De repente. Ah, quantas vezes ainda teremos de dizer que é preciso muito cuidado com as crianças! A Professora segura um desenho nas mãos, um desenho que não é melhor nem pior que os outros. Mas ela tem os olhos fixos, está confusa, perturbada: o desenho mostra a invariável manjedoura, a vaca e o burrinho, e toda a restante figuração. Sobre esta cena já sem mistério cai a neve, e esta neve é preta. Porquê?

“Porquê?”, pergunta a Professora à Menina que fez o desenho. A Menina não responde. Talvez mais nervosa do que quereria mostrar, a Professora insiste. Há na sala os risos cruéis e os murmúrios de troça que sempre aparecem em ocasiões destas. A Menina está de pé, muito séria, um pouco trémula. E responde, por fim: “Pintei a neve preta porque foi nesse Natal que a minha mãe morreu”. Fez-se silêncio e a Professora pensou, assim o veio a contar mais tarde: “À Lua já chegámos, mas quando e como conseguiremos chegar ao espírito duma criança que pintou a neve preta porque a mãe lhe morreu?”.

Muitos anos depois destas histórias terem acontecido, contei-as a uma outra Menina, que me perguntou: “E eles ainda estão tristes?”. Nessa altura disse-lhe que sim, que há tristezas que o tempo não consegue apagar, mas hoje conforta-me a ideia de que talvez o Menino do Muro Branco e a Menina da Neve Negra se tenham encontrado na vida, e que talvez por causa deles o mundo já esteja a mudar sem que nós tenhamos dado por isso.

José Saramago

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

SCHUMANN - «A Tale Distant Lands»

Poet'anarquista

Retrato de Robert Schumann ao Piano
Compositor Germânico

terça-feira, 28 de julho de 2015

CARTOON versus DÉCIMAS

«Os Cabeças de Lista»
HenriCartoon

«OS CABEÇAS DE LISTA»

Mote

Sei que pareço um ladrão...
Mas há muitos que eu conheço
Que não parecendo o que são,
São aquilo que eu pareço.

António Aleixo

GLOSAS

I
Essa coisa do parecer
Tem muito que se lhe diga,
Haver quem à primeira consiga
Acertar no que está a ver.
P’lo aspecto não podes saber
Se é pessoa de bem, ou não,
O que vai dentro d’um coração
Só cada qual poderá revelar…
Diz o poeta pra desabafar:
«Sei que pareço um ladrão!»

II
Vistosos surgem emproados
Com o sentido à espreita,
Sem levantar a menor suspeita
São os mais conceituados.
Andam assim disfarçados
Os gatunos que desconheço,
Tudo roubam desde o começo
Mas ninguém por isso dá…
Tu não acreditas que os há,
«Mas há muitos que eu conheço!»

III
Passam por grandes senhores
Dentro de suas indumentárias...
Iludem-nos com técnicas várias
Esses intocáveis estupores!
Muito sabidos como actores
Na arte de representação,
Bem estudada a encenação
Ninguém deles mais desconfia…
Disse Aleixo, que os conhecia:
«Que não parecendo o que são…»

IV
Julgar os outros p'la aparência
Não é de todo acertado…
Anda meio mundo enganado,
Isto não é nenhuma ciência!
Trajados com conveniência
Enganam por qualquer preço,
Os larápios trocam d’adereço
E nunca se descobre a verdade…
Outros que roubam à vontade
«São aquilo que eu pareço!»

Matias José

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

JETHRO TULL - «Aqualung»

Poet'anarquista

AQUALUNG

Sentado num banco no parque
Espiando as garotinhas com segundas intenções
Ranho escorrendo pelo seu nariz
Dedos engordurados lambuzando as roupas velhas
Hey Aqualung!
Secando no sol frio
Observando enquanto as calcinhas de rufos correm
Se sentindo como um pato morto
Cuspindo pedaços da sua sorte arruinada
Sentindo-se como um pato morto
Hey Aqualung!

Sol com raios frios
Um velho que perambula solitário
Passando o tempo
O único meio que ele conhece
A perna dói tanto
Enquanto se agacha para pegar um resto de lanche
Ele vai até o brejo
E aquece seus pés
Sentindo-se sozinho
O exército está mais adiante na estrada
Salvação à moda
E uma xícara de chá
Aqualung, meu amigo
Não comece a ficar inquieto
Você pobre velho sodomita, veja,
Sou apenas eu

Você ainda se recorda
A geada nebulosa de Dezembro
Quando o gelo que agarra na sua barba
Gritando por agonia
E você apanha os seus últimos suspiros sacolejando
Com sons de mergulhador do fundo do mar
E as flores florescem como a
Loucura na Primavera
Hey Aqualung

Oh Aqualung

Jethro Tull
Banda Britânica

OUTROS CONTOS

«Grato pela Não-Cooperação», conto poético de John Ashbery.

«Grato pela Não-Cooperação»
Resistência Civil

574- «GRATO PELA NÃO-COOPERAÇÃO»

Descendo a rua têm casas de sorvete para ir lá
e o pavimento é um suave, azulado cinza-ardósia.  As pessoas riem alto.
Aqui você pode ver as estrelas. Dois amantes estão cantando
separadamente, do mesmo telhado: "Deixa pra trás teu troco,
deixa tuas roupas e vai embora. São horas já.
Eram horas também antes, mas agora são mesmo horas.
Você nunca vai ter curtido tanto os temporais
como nessas noites pegajosas quentes que estão mais para março
que abril.  Espere.  Um vento dissimulado quer ver você ir
e lá fora no meio do rio tempestuoso endossar passagens  de ônibus a Connecticut.
E assuntos-em-árvore, e tudo aquilo sobre o que pensamos quando deixamos de pensar.
O clima está perfeito, a estação pouco clara. Chore por sua ida
mas também espere me encontrar em um futuro próximo, quando hei de revelar
novas aventuras mais, e que você vai seguir pensando em mim."

O vento enfraqueceu, e os amantes
não mais cantam, (se falando) comunicando-se um e outro no tédio
da auto-expressão, e a praia encrespou-se e ficou líquida
e assim o lamento celebrado iniciou. E como nós, pessoas
de todo incomuns uns ao outros e a nosso próprio ramo, o explicamos
para a praia se nos é dado
andar por lá "no futuro próximo" o porquê da nossa vinda
e por que nunca estivemos aqui antes? As contrapropostas
do estranho-hóspede impedem nossa construção de nós mesmos qual
pessoas-objeto, os que sabíamos que chegariam aqui
de algum modo, embora possamos lembrar tão fácil como do dia que nascemos
os vermes passados pelo caminho e como o dia vazou
e a noite ao ouvir-nos também, muito embora expressemos somente nossas ideias
imaturas e nunca tentemos impressionar alguém mesmo quando um tanto mais adulto.

John Ashbery

segunda-feira, 27 de julho de 2015

CARTOON versus DÉCIMA

O Bom Exemplo Vem de Cima
HenriCartoon

«O BOM EXEMPLO VEM DE CIMA»

- Ricardito, o que queres fazer
Quando fores homem inteiro?
- Criminoso bué de financeiro,
É mesmo o que pretendo ser!
Resmas de crimes pra cometer…
Mais tarde gozar da reforma,
Manter-me em boa forma
E viver numa rica mansão…
Igual à do Salgado Ricardão
Como manda a boa norma!!

POETA

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

EURYTHMICS - «4/4 In Leather»

Poet'anarquista

Eurythmics
Banda Britânica

OUTROS CONTOS

«Angústia para o Jantar», por Luís de Sttau Monteiro.

«Angústia para o Jantar»
Luís de Sttau Monteiro

573- «ANGÚSTIA PARA O JANTAR»

[Excerto]

(...) " Se o meu destino histórico não se apressa, chega tarde...Estou velho. Velho e farto. E se eu tivesse agora uma mulher na cama? Se eu fosse casado? Não acontecia nada. Contava-lhe o que se passou no restaurante. Contava-lhe tudo. Tudo não. Há coisas que não se podem contar. Um homem não pode contar à mulher que foi humilhado por um amigo no restaurante. Essas coisas só se contam quando é possível rematá-las acrescentando que depois se deu um par de bofetadas no amigo. E os homens que levam bofetadas nos restaurantes? Que contam eles às mulheres? Nada. Deve ser difícil ser casado. Todo o homem, mais tarde ou mais cedo, leva um par de bofetadas de que não pode falar à mulher e depois, cada vez que olha para ela, lembra-se das bofetadas que não foram contadas. Cada vez que olha para ela, leva outro par de bofetadas.(...)

 As mulheres odeiam os jogos dos homens, como odeiam todos os jogos de que não façam parte. Necessitam de estar no palco como os peixes de estar na água. É por isso que odeiam a guerra, o futebol, a caça. Sabem instintivamente que são jogos de homens, jogos inventados por eles, jogos que os homens preferem jogar sozinhos e nos quais elas, ainda que tomem parte, constituem um embaraço.(...)

 O marido é quem decide, é quem vai à frente, é quem come o bife. Acima do marido está o pároco, acima do pároco, o bispo, e acima do bispo, Deus. Eu estou no meio, dou dinheiro ao pároco e pisco o olho ao beijar a mão do bispo. É o meu jogo, o meu lugar no jogo. Regra número sete dos jogos que não levam a nada: "ninguém escolhe o seu lugar no jogo. Ninguém ganha o seu lugar no jogo. Todos nascem no lugar que lhes compete."(...)

 As pegas são mesmo assim. As baratas, as que estão no princípio da carreira e que ainda se chamam Lucindas, Lurdes ou Carmos, têm um profundo respeito pelas famílias e pelas mulheres legítimas dos amigos. Para elas a família é qualquer coisa de sagrado que está ligada ainda às recordações das mães que deixaram nas Beiras ou no Alto do Pina, no Minho ou em Campo de Ourique. No segundo grau da carreira já se chamam Odettes, Lizettes e Arlettes. Já falam dos "velhotes" com desprezo e da família como se esta fosse uma "velharia" merecedora do destino que tem. Num terceiro grau chamam-se Celines, Jeaninnes e Marguerites. Começam a compreender que existem regras e já não falam das famílias. Nem das suas, nem das famílias dos amigos.(...)

 Gostaria de te chamar "amor", Alexandra, mas não o posso fazer. Eras capaz de acreditar, e como necessitas de amor e de acreditar em alguém, eras mesmo capaz de acabar com o matulão que te faz ler Aragon... e eu não te amo, Alexandra, embora gostasse, neste momento, de te chamar "meu amor"... só porque tenho pena de ti... e de mim... e de tudo...(...)

 Não vale a pena responder. A estas coisas não se responde. São os diálogos domésticos dos casais da nossa idade e do nosso meio. Substituem o amor e a vida. Quebram o silêncio e dão a impressão de que tudo vai bem. E vai. O mais engraçado é que tudo vai bem. Quando nada há de comum entre um homem e uma mulher senão a cama e o facto de conhecerem a mesma gente, de que podem eles falar, na idade em que a cama começa a ser o local onde se dorme e nada mais?(...)"

Luís de Sttau Monteiro

domingo, 26 de julho de 2015

CARTOON versus QUADRAS

A Dignidade do Presidente
HenriCartoon

«A DIGNIDADE DO PRESIDENTE»

- O Abosta diz que é preciso
Ajudar o Presidente Acabado,
A terminar em paz o reinado…
Dignidade? Que grande prejuízo!

- Esse Abosta deve estar a falar
De mais ajuda financeira,
Pró Animal se poder saciar…
Dignidade bem à sua maneira!!

POETA

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

PETER GABRIEL - «Biko»


BIKO

Setembro de 1977
Clima agradável no Porto Elizabeth
A rotina era a mesma
Na sala policial 619

Oh, Biko, Biko, por que Biko?
Oh, Biko, Biko, por que Biko?
Yihla Moja, Yihla Moja - O homem está morto.

Quando tento dormir à noite
Meus sonhos são vermelhos
Lá fora o mundo é negro e branco
Com apenas uma cor morta.

Oh, Biko, Biko, por que Biko?
Oh, Biko, Biko, por que Biko?
Yihla Moja, Yihla Moja - O homem está morto.

Tu podes assoprar uma chama
Mas não podes fazê-lo com uma fogueira
Uma vez que as fagulhas incendeiam algo
O vento as tornará maiores.
Oh, Biko, Biko, por que Biko?

Yihla Moja, Yihla Moja - O homem está morto.
E os olhos do mundo agora estão vigilantes.

Peter Gabriel
Cantor e Compositor Britânico

OUTROS CONTOS

«Jorde Amado e Eu», por João Ubaldo Ribeiro.

«Jorde Amado e Eu»
Jorge Amado/ Caricatura de Artur Carvalho

572- «JORGE AMADO E EU»

Em 60 anos de vida, fiquei órfão três vezes. A primeira foi quando Glauber Rocha, nem dois anos mais velho do que eu, morreu e me deixou desarvorado em Portugal, onde convivêramos em seus últimos dias. A segunda foi quando meu pai, Manoel Ribeiro, morreu e perdi de vez o tapinha nas costas dado por ele, nas raras ocasiões em que sua severidade lhe permitia agradar-se de algo que eu tinha feito.

A terceira vez foi na noite de segunda-feira passada, quando morreu Jorge Amado e estou aqui, desnorteado novamente, agora que nunca mais vou poder ouvir seu bom humor, às vezes brincalhonamente irónico, manifestar-se nas muitas lições que me deu, na paciência e generosidade que sempre foram marca de seu temperamento.

Com quem vou conversar agora, na mais desarmada confiança que se pode ter, a quem mais vou contar minhas dúvidas e hesitações, de quem mais vou ouvir macetes e percalços desta vida de contador de histórias, quem mais me olhará — como olhava para todos nós, os jovens de quem, sem o menor paternalismo, mas como uma espécie de irmão mais velho, se tornou amigo e infatigável incentivador — com o orgulho ancho e benevolente de um técnico de futebol, diante da equipe que conseguiu formar? Para quem vou telefonar e pedir juízo, conselhos e sensatez? Por que se vão todas as minhas referências, me deixando cada vez mais só neste mundo, onde tudo indica que ficarei mais um tempo?

Talvez pareça presunçoso eu querer falar no universo que foi e é Jorge Amado através de meu ponto de vista. Mas para falar na persona literária, política e social dele, haverá quem fale melhor do que eu. De especial no que tenho a dizer existe somente a amizade e o amor fraterno que nos uniu durante uns 40 anos e é disso que posso falar. Posso testemunhar sobre a grandeza e a generosidade de seu gênio. Pois o chamo de gênio, no sentido que esta palavra tinha antigamente, antes de enfraquecer-se pelo uso descomedido.

Quem mais, senão um génio, teria criado toda uma nação, teria dado forma, expressão e identidade a uma terra e uma cultura como a Bahia, assim legando aos baianos e aos brasileiros em geral, pois a Bahia pertence a todos os brasileiros, um património inestimável? A Bahia não pode ser compreendida — e, por via de consequência, o Brasil não pode ser inteiramente compreendido — sem Jorge Amado e Dorival Caymmi, esse outro gênio de quem só podemos também ter orgulho. Dois fortíssimos pilares da cultura nacional residem na obra deles e, agora que eles já abriram caminho, tudo parece fácil e até óbvio. É como na história de um ignorante que foi assistir a uma apresentação de “Hamlet” e depois comentou, decepcionado, que não passava de um apanhado de lugares-comuns: ser ou não ser, eis a questão; o resto é silêncio; há algo de podre no Reino da Dinamarca; há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe sua filosofia; e assim por diante. A Bahia desabrochou sob as mãos de artesãos amorosos e de insuperável sensibilidade, como Jorge e Caymmi. Pela primeira vez os negros, os pobres, os humildes, os marginalizados foram trazidos maciçamente, através de uma singularíssima empatia e uma riqueza narrativa incomparável, para o proscênio das nossas artes — e nunca mais a cultura nacional foi a mesma.

Nós aprendemos a nos menosprezar e vivemos treinando isso o tempo todo. Há quem não veja, quem não consiga quase glandularmente não ver, que Jorge Amado não foi um dos mais importantes escritores do Brasil, mas um dos maiores autores do século, sob todos os títulos, a começar pelo fato de que, para o mundo culto e, de certa forma, para o grande público de muitos países, praticamente encarnava o Brasil e bem poucos escritores podem aspirar a esse tipo de galardão. Ele, com altivez e dignidade, nos representava, era como um símbolo da afirmação nacional, era o nosso escritor.

Mas isso tudo é e será visto, pois o património que Jorge nos deixou é perene e indelével, entrou na nossa alma, e a perspectiva histórica ainda lhe dará o relevo que efectivamente merece e que alguns ainda lhe negam, estreitando e tentando apequenar a estatura indestrutível de sua obra e sua vida, cujos ideais o levaram a quatro prisões, ao exílio e à incompreensão. Sempre disse que seu personagem era o povo e por isso, com mal-disfarçado desdém, há quem o chame de populista. Mas vá lá que fosse, ele mesmo não dava nenhuma pelota para isso, até gostava. Eu estava na Bahia para sua despedida e vi o povo nas ruas, aplaudindo seu escritor com emoção. Muitos entre eles nem leem, mas todos sabem que perderam algo de muito importante, que felizmente viverá sempre na obra que aí está.

Acabei me alongando mais do que queria, em seara que outros explorarão muito melhor do que eu. Queria mesmo falar sobre aquilo em que tenho autoridade: nossa amizade. Cacá Diegues disse à imprensa que nós todos somos produto do que ele inventou, queremos ser o projeto que sua obra representa para o Brasil. No avião em que voltávamos da Bahia, Caetano Veloso me disse a mesma coisa. Heródoto escreveu que o Egito é um dom do Nilo e nós somos um dom de Jorge. De minha parte, eu sei bem. Foi ele quem primeiro acreditou em mim, desde os meus 17 anos, foi ele que, me vendo registar-me num hotel, olhou o item onde eu declarava timidamente que minha profissão era jornalista, pegou a ficha, rasgou-a e disse:

— Jornalista é muito bom, mas não é o que você é. Bote aí “escritor”, você é escritor.

Foi ele que me acompanhou durante todo esse tempo, enchendo minha bola onde quer que chegasse ou a que veículo de imprensa falasse. Foi ele quem me chamou a atenção, sempre carinhosamente, para meus erros, minhas decisões mal pensadas, até para meu descuido com a saúde. A sabedoria e o bem-querer com que sempre me orientou não me deixarão nunca, sou um privilegiado maiúsculo, com essa convivência acima de tudo enriquecedora e enobrecedora. Não posso avaliar tudo o que devo a Jorge, direta e indiretamente. Só sei que tenho saudades dele e das muitas horas que passamos juntos e sei que vou atravessar o resto da vida com estas saudades.

João Ubaldo Ribeiro

sexta-feira, 24 de julho de 2015

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

U2 - «Zooropa»

Poet'anarquista

ZOOROPA

(O que você quer? O que você quer?)
(Olhe como fala)

Zooropa... Avanço através da tecnologia.
Zooropa... Seja tudo que você possa ser.
Seja um vencedor
Coma para emagrecer.

Zooropa... Um branco mais azulado.
Zooropa... Pode ser sua hoje a noite.
Somos suaves e fresquinhos
E muito limpos.

Zooropa... Melhor pelo design
Zooropa... Voe pelos céus amigáveis
Através da aplicação da ciência
Nós temos aquele círculo de confiança....

E eu não tenho nenhuma bússola
E eu não tenho nenhum mapa
E eu não tenho razões
Nenhuma razão para voltar

E eu não tenho religião
E eu não sei o que é o que
E eu não sei qual é o limite
O limite do que nós temos

Zooropa... Não se preocupe baby, vai dar certo
Zooropa... Você tem os sapatos certos
Zooropa... Para atravessar a noite.
Zooropa... Está frio lá fora, mas bem iluminado
Zooropa... Pule o metrô
Zooropa... Vamos para a superfície.
Tire sua cabeça fora da lama baby
Ponha as flores na lama baby,
Superfície.

Nenhum nome de lugar específico
Nenhuma canção específica
Eu estive me escondendo
De que estou me escondendo?

Zooropa... Não se preocupe baby. Vai dar certo
Zooropa... Incerteza pode ser sua luz guia.
Zooropa... Eu ouço vozes, vozes ridículas
Zooropa... No murmurinho.
Zooropa... Vamos, vamos... Para a superfície.
Zooropa... Tire sua cabeça fora da lama, baby.

(Ela vai sonhar o mundo em que ela quer viver
Ela vai sonhar bem alto.)

U2
Banda Irlandesa

OUTROS CONTOS

«O Angelus nos Mares da Secília», por Alexandre Dumas, Pai.

«O Angelus nos Mares da Secília»
Conto de Alexandre Dumas, Pai

571- «O ANGELUS NOS MARES DA SECÍLIA»

O dia se tinha escoado em meio a exaustivos cuidados para evitar o naufrágio, e a noite começava a descer. Aproximávamo-nos de Messina, e eu me lembrava da profecia do piloto, que nos havia anunciado que duas horas após a Ave-Maria teríamos chegado ao nosso destino. Isso me recordou que desde nossa partida eu não havia visto nenhum dos nossos marinheiros cumprir ostensivamente os deveres da Religião, que no entanto os filhos do mar consideram sagrados.

Havia mais: uma pequena cruz de oliveira incrustada de nácar, semelhante àquelas que os monges do Santo Sepulcro fazem e os peregrinos trazem de Jerusalém, havia desaparecido de nossa cabine, e eu a havia reencontrado na proa da embarcação, acima de uma imagem da Madonna di Pie’ di Grotta, sob a invocação da qual nossa pequena embarcação estava colocada. Depois de me ter informado se havia um motivo particular para mudar a cruz de lugar, e ter sabido que não, eu a retomei de onde estava e a levei à cabine, na qual ficou desde então. Estava claro que a Madonna, agradecida sem dúvida, nos protegera na hora do perigo.

Nesse momento eu me virara, e percebi o capitão próximo a nós.

— Capitão — disse-lhe — parece-me que em todos os navios napolitanos, genoveses ou sicilianos, quando vem a hora da Ave-Maria, se faz uma prece em comum. Não é esse o seu hábito a bordo do Speronare?

— De fato, Excelência, de fato! — respondeu vivamente o capitão — E devo esclarecer que estamos embaraçados por não o podermos fazer.

— Mas o que o impede?

— Desculpe-me, Excelência, mas como nós conduzimos com frequência ingleses que são protestantes, gregos que são cismáticos e franceses que não são nada, temos sempre receio de ferir a crença ou de excitar a incredulidade de nossos passageiros pela vista de práticas religiosas que não serão as deles. Mas quando os passageiros nos autorizam a agir cristãmente, somos muito agradecidos a eles por isso. De sorte que, se o permite…

— Como não, capitão! Eu lhes peço, e se quiserem podem começar em seguida; parece-me que já está próximo das dezoito horas…

O capitão tirou seu relógio, e vendo que não havia tempo a perder, anunciou em voz alta:

— A Ave-Maria!

A estas palavras, cada um saiu das escotilhas e lançou-se no convés. Mais de um, sem dúvida, já havia começado mentalmente a Saudação Angélica, mas a interrompeu para vir tomar parte na prece geral.

De um extremo ao outro da Itália, essa oração, que cai em uma hora solene, encerra o dia e abre a noite. Esse momento do crepúsculo, em toda parte cheio de poesia, no mar se acresce de uma santidade infinita. Essa misteriosa imensidade do ar e das ondas, esse sentimento profundo da fraqueza humana comparada ao poder onipotente de Deus, essa escuridão que avança, e durante a qual o perigo sempre presente vai ainda crescer, tudo isso predispõe o coração a uma melancolia religiosa, a uma confiança santa que soergue a alma nas asas da fé. Essa tarde sobretudo, o perigo do qual acabáramos de escapar, e que nos era lembrado de tempos em tempos por uma onda encapelada ou rugidos longínquos, tudo inspirava à tripulação e a nós um recolhimento profundo.

No momento em que nos juntávamos no convés, a noite começava a tornar-se mais espessa no oriente. As montanhas da Calábria e a ponta do cabo de Pelora perdiam sua bela cor azul para se confundir em uma tintura acinzentada que parecia descer do céu, como se estivesse caindo uma fina chuva de cinzas. A ocidente, um pouco à direita do arquipélago de Lipari, cujas ilhas de formas extravagantes destacavam-se com vigor sobre um horizonte de fogo, o sol alargado e listrado de longas faixas violetas começava a embeber a orla de seu disco no Mar Tirreno, que, cintilante e movimentado, parecia rolar ondas de ouro fundido.

Nesse momento o piloto levantou-se atrás da cabine e tomou em seus braços o filho do capitão, que pôs de joelhos sobre o estrado. Abandonando o leme, como se a embarcação estivesse suficientemente guiada pela oração, sustentou o menino para que o balanço não lhe fizesse perder o equilíbrio. Esse grupo singular destacou-se logo sobre um fundo dourado, semelhante a uma pintura de Giovanni Fiesole ou de Benozzo Gozzoli. Com uma voz tão fraca que apenas chegava até nós, e que entretanto subia até Deus, começou a recitar a prece virginal, que os marinheiros escutavam de joelhos, e nós inclinados.

Eis uma dessas lembranças para as quais o pincel é inábil e a pena insuficiente; eis uma dessas cenas que nenhuma narração pode descrever, nenhum quadro pode reproduzir, porque a sua grandiosidade está inteira no sentimento íntimo dos atores que a realizam. Para um leitor de viagens ou um amador das coisas do mar, será apenas uma criança que ora, homens que respondem e um navio que flutua. 

Mas para qualquer um que tiver assistido a uma cena assim, será um dos mais magníficos espectáculos que ele tenha visto, uma das mais magníficas lembranças que ele tenha guardado. Será a fraqueza que reza, a imensidade que olha, e Deus que escuta.

Alexandre Dumas, Pai