segunda-feira, 31 de agosto de 2015

CARTOON versus DÉCIMA

«Tudo Bons Amigos»
HenriCartoon

«TUDO BONS AMIGOS»

- Colegas, não podemos
A mau negócio dar dinheiro;
O bom, está sempre primeiro,
É assim que nós procedemos…?
Os amigalhaços protegemos
Porque neles confiamos,
Com eles ainda estudamos
Juntos na mesma escola…
Não acham ser boa bitola?
- Que fique claro: não achamos!

POETA

A LÍNGUA PORTUGUESA

Discordo do Acordo Ortográfico
A Língua Portuguesa é Minha Pátria

LIVRAI-NOS...

Livrai-nos Senhor do acordo ortográfico
Que quer prostituir a língua portuguesa,
E fazer com ela um filme pornográfico…
Senhor, não abandones a pobre indefesa!

Matias José

SÁTIRA PRÉ-HISTÓRICA

«Pithecanthropus»
Ilustração/ José Vilhena

SÁTIRA PRÉ-HISTÓRICA

Depressa se apanha um pré-aldrabão!
Dizias ser Pithecanthropus Erectus,
Mas p'lo que apalpo, não é Correctus…
Só dá Pithecanthropus na minha mão!!!

POETA

OUTROS CONTOS

«O Ousado Rapaz do Trapézio Suspenso», por William Saroyan.

«O Ousado Rapaz do Trapézio Suspenso»
Conto de William Saroyan

604- «O OUSADO RAPAZ DO TRAPÉZIO SUSPENSO»

1. Sono

Horizontalmente desperto entre as dimensões do universo, praticando sorrisos e alegria, sátira, o fim de tudo, de Roma e também de Babilónia, dentes trincados, um enorme calor vulcânico, as ruas de Paris, as planícies de Jericó, muito deslizar como de réptil distraído, uma exposição de aguarelas, o mar e o peixe com olhos, sinfonia, uma mesa num canto da Torre Eiffel, jazz no Teatro da Ópera, um despertador e o sapateado da condenação, conversas com uma árvore, o rio Nilo, de Cadillac cupê até Kansas, o roncar de Dostoievsky, um sol sombrio.

Este mundo, a face de alguém que existiu, a forma sem o peso, pranto sobre a neve, a branca música, uma flor ampliada ao duplo do tamanho do universo, nuvens negras, o olhar fixo da pantera enjaulada, espaços sem morte, Mr. Elliot de mangas arregaçadas torrando pão, Flauber e Guy de Maupassant, uma rima silenciosa de sentido primitivo, Finlândia, matemática altamente polida e untuosa como uma cebola verde para o dente, Jerusalém, o caminho do paradoxo.

O canto profundo de um homem, os cochilos dissimulados de alguém invisível mas vagamente conhecido, furacão no trigal, uma partida de xadrez, faça calar a rainha, o rei, Karl Franz, o negro Titanic, Mr. Chaplin chorando, Stalin, Hitler, a multidão de judeus, amanhã é segunda, nenhuma dança nas ruas.

Ó fugaz minuto de vida: acabou, o mundo está de novo presente.

2. Vigília

Ele (o sobrevivente) vestiu-se e fez a barba, olhando-se com desgosto no espelho. “Bem antipático”, pensou. Onde está minha gravata? (Ele só possuía uma.) Café e céu cinzento, o fogo do Oceano Pacífico, o estrépito de um bonde de um bonde passando, gente indo à cidade, novamente a hora, o dia, prosa e poesia. Desceu rapidamente as escadas para a rua, e saiu a caminhar, começando inesperadamente a pensar: “é somente no sono que podemos saber se existimos. Somente lá, naquela morte viva, poderemos encontrar a nós mesmos e à terra distante, a Deus e aos Santos, os nomes de nossos pais, a substância de perdidos momentos; é lá que os séculos se revelam no instante, que o inconcebível se transforma no limitado, átomo tangível da eternidade.”

Saiu a caminhar na manhã, tão desperto quanto podia, dando batidas secas com os calcanhares, recebendo com os olhos a verdade superficial das ruas e das estruturas, a verdade banal da realidade. Sem que o procurasse, viu-se a cantarolar: “Com a maior facilidade voa no imenso espaço, o ousado rapaz do trapézio suspenso”,* e depois riu com toda a capacidade do ser. Estava, na verdade, uma esplêndida manhã; nublada, fria e triste, uma manhã para a vida interior; ah, Edgar Guest, que fome de tua música.

Descobriu na sarjeta uma moeda, um pêni datado de 1923, e colocando-a na palma da mão examinou-a minuciosamente, procurando lembrar-se daquele ano e pensando em Lincoln cujo perfil nela estava gravado. “Hei de comprar um automóvel”, pensou. “Hei de me vestir como um grã-fino, visitar as pensões de mulheres, beber e jantar, e voltar depois a uma vida sossegada. Ou então, colocarei a moeda na fenda de uma balança e me pesarei.”

Era bom ser pobre, e os comunistas... ― Mas era horrível ter fome. Que apetite o deles, como eram loucos por comida! Estômagos vazios. Lembrou-se de quanto ele necessitava de comida. Seu único alimento era pão, café e cigarros, e agora não tinha mais pão. Café sem pão não constituía ceia razoável, e no parque não havia ervas que servissem para se cozinhar como espinafre.

A dizer a verdade, embora já tivesse meio morto de fome, compreendia haver ainda um número infindável de livros que precisava ler antes de morrer. Lembrou-se do jovem italiano do Hospital do Brooklyn, um insignificante e doente funcionário chamado Mollica, a dizer, desesperadamente: “como gostaria de ver a Califórnia, ainda uma vez, antes de morrer”, e pensou com gravidade, “preciso ao menos ler Hamlet de novo; ou talvez Huckleberry Finn”.

Foi então que tornou-se inteiramente lúcido à ideia de morte. A lucidez, agora, se assemelhava a um estado de choque prolongado. “A um rapaz era muito mais fácil morrer discretamente”, pensou, e ele já estava meio morto de fome. A água e a prosa eram boas, preenchiam muito espaço inorgânico, mas eram insuficientes. Se ao menos houvesse algum trabalho que pudesse fazer por dinheiro, algum trabalho vulgar, do tipo chamado comércio. Se ao menos lhe fosse permitido sentar-se a uma cadeira, e ali, todo o dia, somar cifras, subtrair, multiplicar, dividir, talvez então não viesse a morrer de fome. Poderia comprar comida, todas as espécies de comida: iguarias nunca provadas da Noruega, Itália, França; carne de vaca preparada de todas as maneiras, carneiro, peixe, queijo; uvas, figos, pêras, maçãs, melões, coisas que ele adoraria depois de satisfeita sua fome. Numa travessa, colocaria um cacho de uvas vermelhas entre dois figos negros, uma grande pêra amarela e uma maçã verde. Durante horas, levaria ao nariz uma fatia de melão. Compraria grandes formas de pão francês, legumes de todas as qualidades, comida; haveria de comprar vida.

De uma elevação divisou a cidade que se erguia a leste, majestosamente, com suas grandes torres, compacta à sua maneira, e de repente sentiu-se fora de tudo aquilo, quase, definitivamente convencido, persuadido mesmo de que jamais conseguiria ser admitido naquele mundo injusto, ou melhor, naqueles tempos injustos, muito embora tentasse o que quisesse... e agora, um rapaz de 22 anos estava sendo permanentemente rejeitado desse mundo. Este pensamento não era de entristecer. Disse consigo mesmo: “muito em breve terei de preencher um pedido de Licença para Viver”. Aceitou a ideia de morrer sem piedade de si mesmo ou dos homens, imaginando que ao menos dormiria ainda uma noite. O aluguer de um outro dia estava pago: contudo, haveria sempre outro amanhã. E além disso, podia ir onde vão os homens sem lar.

Podia mesmo visitar o Exército da Salvação ― entoar hinos a Deus e a Jesus (desafecto de minha alma), ser salvo, comer e dormir. Mas ele bem sabia que não iria lá. Sua vida era uma vida privada. Não desejava perder essa qualidade. Qualquer outra solução seria melhor.

“Pelo ar, no trapézio suspenso”, murmurou seu subconsciente. Era divertido, terrivelmente engraçado. Um trapézio até Deus ou até nada, um trapézio suspenso em alguma eternidade; rezou objectivamente pedindo coragem para empreender graciosamente aquele voo.

― Tenho um cêntimo ― disse. ― Uma moeda americana. Mais tarde eu a polirei até que venha a brilhar como um sol e decifrarei suas palavras.

Caminhava agora na própria cidade, entre gente viva. Havia um ou dois lugares aonde ir. Entreviu sua imagem no vidro das vitrinas das lojas e ficou desapontado com sua aparência. Não parecia absolutamente tão disposto como se sentia; parecia, na verdade, um débil enfermo, alguém que sofresse de cada parte do corpo, do pescoço, ombros, braços, tórax e joelhos. Isso nunca, disse, e com esforço recompôs as peças desconjuntadas, tornando-se tensa e artificialmente erecto e sólido.

Com magnífica disciplina, recusando-se mesmo a relanceá-los, passou por numerosos restaurantes, e chegando, por fim, a determinado edifício, nele entrou. Um elevador levou-o ao sétimo andar, onde ele, cruzando um vestíbulo e abrindo uma porta, penetrou no escritório de uma agência de empregos. Já uns vinte rapazes se achavam na sala; descobriu um canto onde, de pé, aguardou sua vez de ser entrevistado. Por fim, este grande privilégio lhe foi concedido e foi interrogado por uma magra e estouvada senhorita de uns cinquenta anos.

― Agora me diga ― falou ela ―, o que sabe fazer?

Sentiu-se embaraçado.

― Sei escrever ― disse enfaticamente.

― Quer dizer... sua letra é boa? É isso? ― disse a idosa senhorita.

― Bem... é ― replicou ele. ― Mas o que quero dizer é que sei escrever.

― Escrever o quê? ― disse a moça, quase com raiva.

― Prosa ― respondeu ele simplesmente.

Houve uma pausa. Por fim a moça disse:

― Sabe escrever à máquina?

― Naturalmente ― disse o rapaz.

― Está bem ―  continuou a moça, ficando com seu endereço ―; estaremos em contacto com o senhor. Esta manhã não há nada, absolutamente nada.

A mesma coisa aconteceu em outra agência; apenas ele foi interrogado por um rapaz pretensioso, extremamente parecido com um porco. Das agências ele foi à administração das grandes lojas; havia um grande luxo, alguma humilhação de sua parte e finalmente a informação de que não podia ser aproveitado. Não se sentiu aborrecido, e por mais estranho que pareça nem mesmo sentiu que estava pessoalmente envolvido com toda aquela maluquice. Ele era um ser vivo, que tinha necessidade de dinheiro com que continuar a sê-lo, e nenhum meio havia de consegui-lo senão trabalhando para isso; mas não havia trabalho. Tratava-se simplesmente de um problema abstracto que pela última vez tentara resolver. Mas agora se alegrava de ver o assunto liquidado.

Começou a perceber toda a precisão do curso de sua vida. excepto por momentos, ela nunca tivera uma direcção definida, mas agora, no último minuto, ele determinara que ela devia ser tão pouco imprecisa quanto possível.

Em seu caminho para a A.C.M., passou por cafés e restaurantes sem conta, e lá arranjando papel e tinta começou a preencher sua inscrição. Durante uma hora preparou esse documento, e depois, devido ao ar abafado e à fome, sentiu subitamente que ia desmaiar. Sentia-se como se nadasse para fora de si mesmo, em grandes braçadas, e precipitadamente abandonou o edifício. No parque Central, enquanto se encaminhava para o edifício da Biblioteca Pública, bebeu quase um litro de água e sentiu-se reconfortado. No centro do passeio de tijolos, um ancião cercado de gaivotas, pombos e pintarroxos tirava um punhado de migalhas de pão de um grande saco de papel atirando-as aos pássaros num elegante movimento.

Secretamente sentiu-se impelido a pedir ao velho uma porção das migalhas de pão mas não deixou mesmo que tal pensamento se tornasse consciente. Entrou na Biblioteca Pública e, durante uma hora, leu Proust. Mas sentindo-se novamente como se nadasse para fora de si, apressou-se em sair. Na fonte do parque bebeu mais água e começou o longo caminho para seu quarto.

“Dormirei um pouco mais”, pensou. “Não há outra coisa a fazer.” Compreendia agora estar muito cansado e fraco para procurar enganar-se a respeito de seu estado. Todavia sua razão parecia ainda, de algum modo, flexível e alerta. Ela persistia, como se fosse uma entidade diversa dele, em inventar impertinentes brincadeiras a propósito de seu sofrimento real. Às primeiras horas da tarde chegou a seu quarto e imediatamente preparou café no pequeno fogareiro a gás. Não havia leite na lata e a meia libra de açúcar comprada uma semana antes se havia acabado; tomou uma xícara de líquido quente e negro, sentando-se no leito e sorrindo.

Da Associação Cristã de Moços ele furtara umas 12 folhas de papel de carta com as quais pensava terminar sua inscrição, mas a simples ideia de escrever lhe era agora desagradável. Nada tinha a dizer. Começou a polir o pêni achado naquela manhã, e esse ato absurdo como que lhe deu um grande prazer. Nenhuma moeda americana se podia fazer brilhar tanto como um pêni. Quantos daqueles precisaria para continuar vivendo? Não haveria mais nada que pudesse vender? Olhou em volta o quarto desguarnecido. Nada. Seu relógio se fora; seus livros também. Todos aqueles belos livros; por nove deles recebera oitenta e cinco cêntimos. Sentiu-se incomodado e envergonhado de se haver separado de seus livros. Seu melhor terno fora vendido por dois dólares, mas isso compreendia. Ele não ligava absolutamente para isso de roupas. Mas os livros... Aí o caso era diferente. Deixava-o exasperado pensar que não havia respeito pelas pessoas que escrevem.

Colocou a reluzente moeda sobre a mesa, contemplando-a com o prazer de um avarento. Quão lindamente ela sorri ― disse. Sem que as lesse passou os olhos sobre as palavras E Pluribus Unun Um Cêntimo Estados Unidos da América, e virando-a contemplou Lincoln e as palavras In God We Trust Liberty 1923. “Como é lindo”, pensou.

Começou a ficar sonolento e sentiu um angustiante mal-estar invadir seu sangue, uma impressão de náusea e desintegração. Perturbado, pôs-se de pé ao lado da cama, imaginando que nada lhe restava fazer senão dormir. Já se sentia dando aquelas grandes braçadas através de uma zona fluída do universo, nadando em direcção às origens. Caiu de bruços sobre a cama, dizendo: preciso ao menos dar a moeda a alguma criança. Qualquer criança pode comprar um número sem fim de coisas com um pêni.

Então, rapidamente, elegantemente, com a graça do rapaz do trapézio suspenso, afastou-se de seu próprio corpo. Durante um minuto que lhe pareceu sem fim, ele foi todas as coisas ao mesmo tempo: pássaro, peixe, roedor, réptil, homem. Um mar de gravura ondulava diante dele, escuro e sem fim. A cidade ardia. Multidões aglomeradas revoltavam-se. O mundo se afastava girando, e vendo que se afastava também, voltou sua face perdida para o céu vazio e tornou-se sem sonhos, sem vida, perfeito.

William Saroyan

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

THE WATERBOYS - «Red Army Blues»

Poet'anarquista

BLUES DO EXÉRCITO VERMELHO

Quando eu deixei minha casa e minha família,
Minha mãe me disse:
‘Filho, não é quantos alemães você mata que conta,
É quantas pessoas você consegue libertar!’

Então, eu arrumei minhas malas
Escovei meu boné
Saí para o mundo
Dezassete anos de idade
Nunca beijei uma garota

Apanhei o trem para Voronezh
Que foi tão longe como seria de ir
Mudei meus sacos por um uniforme
Mordi meu lábio contra a neve
Eu rezei para a mãe Rússia
No verão de ‘43
E como nós enviámos os alemães de volta
Eu realmente acreditava
Que Deus estava me ouvindo

Nós uivámos em Berlim
Rasgámos para baixo os edifícios fumegantes
Levantámos a bandeira vermelha bem alto
Queimámos o marrom Reichstag
Eu vi meu primeiro soldado americano
E ele se parecia muito comigo
Ele tinha o rosto do mesmo tipo do fazendeiro
Disse que ia vir de algum lugar chamado Hazzard, Tennessee

Em seguida, a guerra tinha acabado
Meus documentos foram devolvidos
Eu e vinte centenas de outros
Fomos para Stettiner de trem
Kiev! disse o comissário
A partir daí o seu próprio caminho para casa
Mas eu nunca cheguei a Kiev
Nós nunca regressámos a casa
O trem foi para o norte para Taiga
Onde fomos despojados e marchámos em fila
A caminho da grande estrada siberiana
Por milhas e milhas e milhas e milhas
Vestidos com listras e farrapos
Num campo deixado para morrer
Tudo porque o camarada Stalin estava com medo
Que nos torna-se-mos demasiado ocidentalizados!

Usado para amar o meu país
Eu ainda tão jovem
Costumava acreditar que a vida era
A melhor música nunca cantada
Eu teria morrido pelo meu país em 1945
Mas agora só uma coisa permanece
Mas agora só uma coisa permanece
Mas agora só uma coisa permanece
Mas agora só uma coisa permanece
A brutal vontade de sobreviver!

The Waterboys
 Banda Britânica

«GAIOLA ABERTA»

Rebobinando...
«A Psicose do Voto»
José Vilhena

«A PSICOSE DO VOTO»

- Acorda, António… então
Hoje não me vais à urna?
- Mantenho postura taciturna,
Amanhã é dia de reflexão.
- Podes simular a votação,
A urna encontra-se aberta…
- Esta não é a hora certa,
A urna vais ter que fechar.
- Quando a psicose passar,
Vota nesta urna deserta!

POETA

domingo, 30 de agosto de 2015

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

DEXY'S MIDNIGHT RUNNERS - «Old»

Poet'anarquista

VELHO

Velho têm memórias para manter tudo frio à distância.
O que é que você diz?
Não faz sentido habitar.
Velho, você está ridicularizado e foi longe demais,
Sem atenção?
Foi o que pensei. Sim e os patriotas mudos têm uma palavra a dizer,
Veja apenas o seu caminho.
Nada para vender .
E pior de nós, tão óbvio,
Absurdo, quando você pensar no tempo que cada um gastou.
Palavras enviadas do céu e realmente mostram o que significam.
Velho, posso sentar aqui e hoje?
Eu vou ouvir tudo que você diz .
Eu não vou embora.

Dexy’s Midnight Runners
Banda Britânica

OUTROS CONTOS

«Roger Dodsworth», por Mary Shelley.

«Roger Dodsworth»
Escritora Britânica

603- «ROGER DODSWORTH»

[Pequeno Excerto]

‘Agora, todos os seres humanos que ele alguma vez viu estão envoltos em chumbo, são pó, todas as vozes que ele alguma vez ouviu estão mudas. O próprio som da língua materna está mudado. 

Impérios, religiões, raças humanas iniciaram-se, provavelmente, ou desapareceram; o seu próprio património  (o pensamento é vão, contudo, sem ele, como se pode viver?) está afundado na goela sedenta que se escancara sempre, ávida para engolir o passado; as suas aprendizagens, os seus conhecimentos, estão provavelmente obsoletos. 

Os objectos, pensamentos e hábitos familiares à sua infância são agora antiguidades.

Pergunta a si próprio onde estão os cento e sessenta volumes manuscritos que o seu pai compilara e que, enquanto criança ele contemplara com uma reverência religiosa; estão agora onde, onde? 

O seu companheiro favorito de brincadeiras, o amigo dos seus últimos anos, a encantadora noiva que lhe estava destinada; lágrimas há muito geladas fluem pelas suas velhas faces jovens abaixo.’

Mary Shelley

sábado, 29 de agosto de 2015

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

THE SMITHS - «Nowhere Fast»

Poet'anarquista

NENHUM LUGAR RÁPIDO 

Eu gostaria de baixar minhas calças para o mundo
Sou um homem de recursos (de recursos escassos)
Qualquer utensílio doméstico
Parece uma maravilha da ciência em minha cidade

E se chegasse o dia em que eu sentisse uma certa comoção
Eu ficaria chocado e na certa me jogaria no oceano
E quando um trem passa
É um som tão triste

Não...
É uma coisa muito triste

Gostaria de baixar minhas calças para a rainha
Qualquer criança sensível sabe o que isso significa
Os pobres e necessitados
São mesquinhos e gananciosos no ponto de vista dela
E se chegasse o dia em que eu sentisse uma certa comoção
Eu ficaria chocado e na certa me jogaria no oceano
E quando um trem passa
É um som tão triste

Não...
É uma coisa muito triste

E quando estou deitado na minha cama
Penso sobre a vida
E penso sobre a morte
E nenhuma das duas particulamente me atrai
E se chegasse o dia em que eu sentisse uma certa comoção
Eu ficaria chocado e na certa deitaria
No meio da rua e morreria
Eu deitaria e morreria

Oh, oh

The Smiths
Banda Britânica

OUTROS CONTOS

«O Prepotente», conto poético por Matias José.

«Potentes, Prepotentes e Impotentes»
Quino

602- «O PREPOTENTE»

Mote

Sei que sou prepotente,
Abuso da autoridade...
Minto descaradamente
Pra esconder a verdade!

Glosas 

I
Pra chegar ao poder
Finjo ser o que não sou,
Quando instalado lá estou
Dou-me então a conhecer.
Quem não me obedecer
Castigo-o severamente,
Mesmo sendo competente
Tento tramar-lhe a vida…
Eis a história resumida:
Sei que sou prepotente!

II
Começo por dividir
As ovelhas do rebanho,
Dessa forma apanho
Quem não me quer seguir.
Depois de conseguir
Criar instabilidade,
Ajo com naturalidade
Pra não haver desconfiança…
Tenho pronta a vingança,
Abuso da autoridade!

III
A mentira no começo
Tratarei de espalhar…
Confusão vai arranjar,
O resultado até conheço.
Desde logo esclareço
Considero-me inocente,
Dou benesses a quem mente
Se for em meu benefício…
Apanhei este mau vício,
Minto descaradamente!

IV
Aprecio ‘o culambismo
E o engraxanço português’…
Cada qual lambe à vez,
Não precisa haver histerismo.
Faço uso do meu cinismo
Mascarando toda a maldade,
Descarto responsabilidade
Quando me vejo caçado…
Minto, se sou culpado,
Pra esconder a verdade!

Matias José

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

OUTROS CONTOS

«Na sua Cegueira», conto poético por John Milton.

«Na sua Cegueira»
A Feliz Cegueira/ Sergio Bustamante

601- «NA SUA CEGUEIRA»

Quando medito em minha luz perdida,
Nesta tão vasta e mais sombria terra,
E que esse dom que só a Morte cerra
Inútil mora em mim, embora a vida

N´alma me seja ao Criador rendida
E a mais prestar-lhe a conta que não erra,
«A quem, negada a luz, a treva encerra,
Calcula Deus a quotidiana lida?»

Pergunto ansiosamente. E a Paciência
O murmurar me cala: «El´ não precisa
Dos dons de um só em cada humana esfera.

Se El´ convoca os seus fiéis, e com ardência
Que milhar´s correm para onde Ele pisa.
Também O serve aquel´ que fica e espera.»

John Milton, 1655

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

THE ROLLING STONES
«Back Of My Hand»

Poet'anarquista

PALMA DA MINHA MÃO

Eu ouço um pregador na esquina
Falando alto feito um louco
Ele diz que há problemas, problemas à vista
Eu posso ler isto como a palma da minha mão

Eu vejo amor, eu vejo sofrimento
Tocando lado a lado no palco
No vento alguma melodia triste
Eu posso ler isto como a palma da minha mão

A palma da minha mão..... Oh yeah

Oh yeah....

Eu vejo sonhos, eu vejo visões
Imagens que eu não entendo
Eu vejo Goyas e paranóias
Eu posso ler isto como a palma da minha mão

Bem, leio isto como a palma da minha mão
Oh yeah, oh yeah

Oh yeah

Leio isto como a palma da minha mão

The Rolling Stones
Banda Britânica

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

CARTOON versus QUADRAS

Aos Indecisos, com Amor
HenriCartoon

«AOS INDECISOS, COM AMOR»

Aos caros não votantes:
Se votarem cá no Bosta,
Os empregos dão à costa…
Austeridade? Isso era antes!

Sobre os malditos cartazes:
Nunca devia ter feito um,
E não vou fazer mais nenhum…
Então, fazemos as pazes?

POETA

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

THE STRANGLERS - «Golden Brown»

Poet'anarquista

MARROM DOURADO

Ouro textura marrom como do
Coloca-me com a minha mente ela corre
Ao longo da noite
Não há necessidade de lutar
Nunca uma carranca com marrom dourado

Toda vez como o último
Em seu navio amarrado ao mastro
para terras distantes
Toma minhas mãos
Nunca uma carranca com marrom dourado

Ouro tentadora mais fina marrom
Através dos tempos ela rumo ao ocidente
De muito longe
permanece por um dia
Nunca uma carranca com marrom dourado

Nunca uma carranca
Com marrom dourado
Nunca uma carranca
Com marrom dourado

The Stranglers
Banda Britânica

OUTROS CONTOS

«Em Auxílio das Frases Feitas», por Julio Cortázar.

«Em Auxílio das Frases Feitas»
Escritor Francês de Origem Argentina

600- «EM AUXÍLIO DAS FRASES FEITAS»

Dito tudo
não resta
evidentemente
nada a dizer.

Dito isto,
mas o quê?
Para saber
seria preciso situar-se
atrás do poema,
no não escrito do escrito,
coisa mais difícil.

Afinal de tudo
não resta nada.

Passando de uma coisa à outra,
outra coisa é brilhantina
único fabricante Brancato.

Pensando bem,
não seria necessário
dizer o que disse antes, não é?

.Quase sempre prelúdio
de algo indesculpável.

Sinto muito, mas...
Vamos, vamos.

Julio Cortázar

terça-feira, 25 de agosto de 2015

TRÊS EMPLASTROS

Três Emplastros
Só um é Original

TRÊS EMPLASTROS

Se um emplastro incomoda muita gente...
Dois sabemos, incomodam muito mais.
Se dois emplastros chateiam certamente…
Três é dose,  já são chatices demais!
Se um aparece às vezes nos telejornais,
Os outros dois aparecem diariamente.
Se o primeiro não engana sinceramente,
Os outros até enganam os próprios pais.
Se um emplastro faz parte dos originais,
Os dois que restam são cópia deprimente!!

POETA

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

MADNESS - «Night Boat To Cairo»

Poet'anarquista

BARCO NOCTURNO PRO O CAIRO

Tinha acabado de passar a monção do meio dia e meia
Nas margens do rio Nilo
Aí vem o barco boiando apenas pela metade
O barqueiro sorri um sorriso desdentado
Apenas mais um para esta praia deserta
Último barco ao longo do rio Nilo
Não parece se importar, sem mais vento no seu cabelo
Quando chega em sua última meia milha
O remo se encaixa em sua mão antes que ele atinja a terra seca
Mas o som não ensurdece seu sorriso
Apenas cutuca areia molhada com um remo na mão
Flutua rio abaixo no Nilo
Flutua rio abaixo no Nilo

Todos a bordo, o barco noturno pro Cairo
Barco noturno pro Cairo

Madness
Banda Britânica

OUTROS CONTOS

«As Ruínas Circulares», por Jorge Luís Borges.

«As Ruínas Circulares»
Conto de Jorge Luís Borges

599- «AS RUÍNAS CIRCULARES»

Ninguém o viu desembarcar na unânime noite, ninguém viu a canoa de bambu sumir-se na lama sagrada, mas daí a poucos dias ninguém ignorava que o homem taciturno vinha do Sul e que a sua pátria era uma dessas infinitas aldeias que ficam rio acima, no flanco violento da montanha, onde a língua zenda não está contaminada do grego e onde é rara a lepra. O que é certo e seguro é que o homem pardo beijou a lama, subiu a margem sem afastar (provavelmente sem sentir) as sanguessugas que lhe dilaceravam as carnes e arrastou-se enjoado e sangrando, até ao recinto circular dominado por um tigre ou um cavalo de pedra, que teve outrora a cor do fogo e agora a da cinza. Essa arena é um templo que os antigos incêndios devoraram, que a floresta pantanosa profanou e cujo deus não recebe as honras dos homens. O forasteiro deitou-se sob o pedestal. Só o despertou o sol alto. Verificou sem assombro que as feridas haviam cicatrizado; fechou os olhos pálidos e adormeceu, não por fraqueza da carne mas por decisão da vontade. Sabia que esse templo era o lugar referido para o seu invencível desígnio; sabia que as árvores incessantes não tinham conseguido estrangular, a jusante, as ruínas de outro templo propício, também de deuses incendiados e mortos; sabia que a sua obrigação imediata era o sono. Por volta da meia-noite acordou-o o grito inconsolável de um pássaro. Marcas de pés descalços, uns figos e um cântaro avisaram-no de que os homens da região lhe tinham espiado com respeito o sono e solicitavam o seu amparo ou temiam a sua magia. Sentiu o frio do medo e procurou na muralha delapidada um nicho sepulcral e tapou-se com folhas desconhecidas.

O desígnio que o guiava não era impossível, se bem que sobrenatural. Queria sonhar um homem: queria sonhá-lo com uma integridade minuciosa e impô-lo à realidade. Este projecto mágico esgotara o espaço inteiro da sua alma; se alguém lhe perguntasse o seu próprio nome ou qualquer pormenor da vida anterior, não seria capaz de responder. Convinha-lhe o templo desabitado e desmantelado, porque era um mínimo do mundo visível; a vizinhança dos lenhadores também, dado que estes de encarregavam de prover às suas necessidades frugais. O arroz e os frutos do seu tributo eram pasto suficiente para o seu corpo, consagrado à única tarefa de dormir e sonhar.

Ao princípio, os sonhos eram caóticos; pouco depois, foram de natureza dialéctica. O forasteiro sonhava-se no meio de um anfiteatro circular, que era de certo modo o templo incendiado: magotes de alunos taciturnos fatigavam os degraus; as caras das últimas filas pendiam a muitos séculos de distância e a uma altura estelar; mas viam-se com uma precisão absoluta. O homem dava-lhes lições de anatomia, de cosmografia, de magia: os rostos escutavam com ansiedade e tentavam responder com entendimento, como se adivinhassem a importância daquele exame, que deveria redimir um deles da sua condição de vã aparência e o interpolaria no mundo real. O homem, no sonho e acordado, considerava as respostas dos seus fantasmas, não se deixava enganar pelos impostores, adivinhava em certas perplexidades uma inteligência crescente. Procurava uma alma que merecesse participar no universo.

Ao cabo de nove ou dez noites compreendeu com certa amargura que nada podia esperar dos alunos que aceitavam passivamente a sua doutrina, mas sim dos que arriscavam, às vezes, uma contradição razoável. Os primeiros, embora dignos de amor e de afeição, não podiam elevar-se a indivíduos; os últimos preexistiam um pouco mais. Uma tarde (agora também as tardes eram tributárias do sonho, agora só estava acordado umas horinhas ao amanhecer) despediu para sempre o vasto colégio ilusório e ficou apenas com um único aluno. Era um rapaz taciturno, azedo, desordeiro às vezes, de feições afiladas que repetiam as do seu sonhador. A brusca eliminação dos seus condiscípulos não o desconcertou por muito tempo; os seus progressos, ao fim de poucas lições particulares, conseguiram maravilhar o mestre. No entanto, aconteceu a catástrofe. Um dia o homem emergiu do dono como de um deserto viscoso, fitou a vã luz da tarde que começou por confundir com a da aurora, e compreendeu que não tinha sonhado. Durante essa noite toda e todo o dia, abateu-se sobre ele a intolerável lucidez da insónia. Quis explorar a floresta, extenuar-se; só a custo conseguiu pela cicuta uns quantos lampejos de sono fraco, riscados fugazmente por visões de tipo rudimentar: inaproveitáveis. Quis voltar a reunir o colégio e mal articulou umas breves palavras de exortação, logo este se deformou e se desfez. Na sua quase perpétua vigília, lágrimas de cólera queimavam-lhe os velhíssimos olhos.

Compreendeu que a tarefa de modelar a matéria incoerente e vertiginosa de que se compõem os sonhos é a mais árdua a que se pode entregar um homem, embora penetre todos os enigmas da ordem superior e da inferior: muito mais árdua que tecer uma corda de areia ou que cunhar o vento sem cara. Compreendeu que era inevitável um fracasso inicial. Jurou esquecer a enorme alucinação que o desencaminhara ao princípio e procurou outro método de trabalho. Antes de experimentá-lo, consagrou um mês a recuperar as forças que lhe gastara o delírio. Abandonou toda a premeditação de sonhar, e quase a seguir foi capaz de dormir um razoável bocado do dia. As raras vezes que sonhou durante esse período, não ligou aos sonhos. Para retomar a tarefa, esperou que o disco da Lua ficasse perfeito. Depois, à tarde purificou-se nas águas do rio, adorou os deuses planetários, pronunciou as sílabas lícitas de um nome poderoso e adormeceu. Quase imediatamente, sonhou com um coração a bater.

Sonhou-o activo, quente, secreto, do tamanho de um punho, de cor escarlate na penumbra de um corpo humano ainda sem cara nem sexo, com minucioso amor sonhou-o durante catorze lúcidas noites. Noite a noite, percebia-o com uma evidência cada vez maior. Não o tocava: limitava-se a testemunhá-lo, a observá-lo, talvez, e corrigi-lo com o olhar. Percebia-o, vivia-o, de muitas distâncias e de muitos ângulos. Na décima quarta noite roçou a artéria pulmonar com o dedo indicador e a seguir o coração todo, por fora e por dentro. O exame deixou-o satisfeito. Deliberadamente não sonhou durante uma noite; depois, tornou a pegar no coração, invocou o nome de um planeta e empreendeu a visão de outro dos órgãos principais. Em menos de um ano chegou ao esqueleto, às pálpebras. O inumerável cabelo foi talvez a tarefa mais difícil. Sonhou um homem inteiro, um mancebo, mas este não se levantava nem falava nem podia abrir os olhos. Noite após noite o homem sonhava-o adormecido.

Nas cosmogonias gnósticas, os demiurgos amassam um encarnado Adão que não consegue pôr-se de pé; tão inábil, tosco e elementar como esse Adão de pó era o Adão de sonho que as noites do mago tinham fabricado.

Uma tarde, o homem destruiu quase toda a sua obra, mas arrependeu-se, (Mais lhe valeria que a tivesse destruído.) Depois de ter esgotado os votos aos nomes da terra e do rio, caiu de joelhos aos pés da imagem que talvez fosse um tigre e talvez um potro, e implorou o seu desconhecido socorro. Nesse crepúsculo, sonhou com a estátua. Sonhou-a viva, trémula: não era um atroz bastardo de tigre e potro, mas ao mesmo tempo essas duas criaturas veementes e também um touro, uma rosa, uma tempestade. Este múltiplo deus revelou-lhe que o seu nome terrestre era Fogo, que nesse templo circular (e noutros iguais) lhe tinham prestado sacrifícios e culto e que ele magicamente animaria o fantasma sonhado, de modo que todas as criaturas, salvo o próprio Fogo e o sonhador, o pensaram um homem de carne e osso. Ordenou-lhe que, depois de instruído nos ritos, o enviasse para outro templo desmantelado cujas pirâmides persistem a jusante do rio, para que alguma voz o glorificasse naquele edifício deserto. No sonho do homem que sonhava, o sonhado acordou. 

O mago executou as ordens. Consagrou um prazo (que no fim durou dois anos) para lhe descobrir os arcanos do universo e do culto do fogo. Intimamente, custava-lhe separa-se dele. A pretexto da necessidade pedagógica, dilatava dia após dia as horas dedicadas ao sonho. Também refez o ombro direito, porventura deficiente. Às vezes inquietava-o uma impressão de que tudo aquilo já tinha acontecido… Em geral, os seus dias eram felizes; ao fechar os olhos pensava: Agora vou estar com o meu filho. Ou então, mais raramente: O filho que gerei espera por mim e não existirá se eu não for ter com ele. 

Gradualmente, lá o foi habituando à realidade. Uma vez mandou-o colocar uma bandeira num píncaro distante. No outro dia, flutuava a bandeira no cume. Tentou outras experiências análogas, cada vez mais audaciosas. Compreendeu com um certa amargura que o seu filho estava pronto para nascer – e talvez até impaciente. Nessa noite beijou-o pela primeira vez e enviou-o para o outro templo cujos despojos branqueavam rio abaixo, a muitas léguas da inextricável floresta e de pântanos. Mas antes (para que ele nunca soubesse que era um fantasma, para que se julgasse um homem como os outros) infundiu-lhe o esquecimento total dos seus anos de aprendizagem.

A sua vitória e a sua paz ficaram turvados pelo desgosto. Nos crepúsculos da noite e da madrugada, prostrava-se diante da figura de pedra, talvez imaginando que o seu filho irreal executava rito idênticos, noutras ruínas circulares, rio abaixo; de noite não sonhava, ou sonhava como o fazem todos os homens. Apercebia-se com certa palidez dos sons e formas do universo: o filho ausente alimentava-se dessas diminuições da sua alma. O desígnio da sua vida fora preenchido; o homem persistiu numa espécie de êxtase. Ao fim de um tempo que certos narradores da sua história preferem calcular em anos e outros em lustros, à meia-noite acordaram-no dois remadores: não conseguiu ver as caras deles, mas falaram-lhe de um homem mágico num templo do Norte, capaz de andar sobre o fogo sem se queimar. O mago lembrou-se de repente das palavras do deus. Lembrou-se de que, de todas as criaturas que compõem o globo, o fogo era a única que sabia que o seu filho era um fantasma. Esta recordação, que o descansou ao princípio, acabou por atormentá-lo. Receou que o seu filho meditasse nesse privilégio anormal e descobrisse de qualquer modo a sua condição de mero simulacro. Não ser um homem, ser a projecção do sonho de outro homem, que humilhação incomparável, que vertigem! Qualquer pai se interessa pelos filhos que procriou (que permitiu) numa simples confusão ou na felicidade; é natural que o mago temesse pelo futuro daquele filho, pensando entranha a entranha e feição a feição, em mil e uma noites secretas.

O fim das suas reflexões foi brusco, mas anunciaram-no alguns sinais. Primeiro (ao cabo de uma longa seca) uma remota nuvem numa colina, leve como um pássaro; a seguir, para os lados do Sul, o céu com a cor rosada das gengivas dos leopardos; depois as fumaradas que enferrujaram o metal das noites; depois a fuga pânica dos bichos. Porque se repetiu o que acontecera há muitos séculos. As ruínas do santuário do deus do fogo foram destruídas pelo fogo. Numa madrugada sem pássaros, o mago viu abater-se sobre as paredes o incêndio concêntrico. Por um instante, pensou refugiar-se nas águas, mas logo compreendeu que a morte vinha coroar a sua velhice e absolvê-lo dos seus trabalhos.

Caminhou ao encontro dos círculos de fogo. Estes não morderam a sua carne, acariciaram-no e inundaram-no sem calor e sem combustão. Com alívio, com humilhação, com terror, e compreendeu que ele próprio também era uma aparência, que outro estava sonhá-lo.

Jorge Luís Borges

domingo, 23 de agosto de 2015

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(Finalmente resolvido o problema de cópia das músicas Deezer)

DAVID BOWIE - «Ashes to Ashes»

Poet'anarquista

DAS CINZAS ÀS CINZAS

Você se lembra de um cara que esteve
Numa canção bastante antiga
Eu ouvi um rumor do Controle Supremo
Oh não, não diga que é verdade

Eles têm uma mensagem do homem que faz a ação
"eu estou feliz e espero que você também esteja
Eu amei tudo o que podia"
Detalhes sórdidos a seguir

Os gritos para o nada o matam
Apenas figuras de garotas japonesas em síntese e eu
Não tenho dinheiro e não tenho cabelo
Mas eu estou esperando para dar o chute... mas o planeta está evoluindo

Das cinzas à cinzas, é engraçado e divertido
Nós sabemos que o Major Tom é um viciado
Estendido no alto do paraíso
Atingindo a maior decadência da história

Novamente eu digo para mim mesmo
Eu vou ficar sóbrio esta noite
Mas as pequenas rodas verdes estão me perseguindo
oh não, não de novo
Eu estou preso aqui com um amigo valioso
"eu estou feliz e espero que você também esteja"
Com uma lanterna mas nenhuma pistola

Eu nunca fiz coisas boas
Eu nunca fiz coisas más
Eu nunca fiz nada de supetão. woh-o-oh
Quero um machado para quebrar o gelo
Quero descer agora mesmo

Minha mãe disse para fazer coisas do jeito certo
É melhor não brincar com o Major Tom

David Bowie
Músico, Cantor e Compositor Britânico

OUTROS CONTOS

«A Mulher das Bofetadas», por Nelson Rodrigues.

«A Mulher das Bofetadas»
Conto de Nelson Rodrigues

598- «A MULHER DAS BOFETADAS»

Chegou atrasado no emprego. Tirava o paletó, quando o Carvalhinho veio avisar:

— Olha, telefonaram pra ti.

— Homem ou mulher?

— Mulher.

— Deixou recado?

— Não. Disse que telefonava depois. Arregaçando as mangas, bufou:

— Ok! Ok!

Uns dez minutos depois, estava pondo em ordem uns papéis, quando o telefone bate novamente. O contínuo, que atendeu, berrou:

— Aristides!

Larga o serviço e apanha o telefone. Era uma voz feminina que, a princípio, não identificou. A pessoa perguntava: — “Não me conheces mais?”. Aristides, já impaciente, foi quase grosseiro:

— Quer dizer quem fala? Estou ocupadíssimo e não posso perder tempo.


Há uma pausa e, finalmente, a voz responde:

— Sou Dorinha.

Aristides quase cai para trás, duro.

Dorinha era o seu amor jamais esquecido ou, melhor, a sua dor-decotovelo confessa e imortal. Que idade teria ela, no momento? Uns vinte e cinco anos. Tinham se namorado na adolescência. Por um motivo bobo, haviam brigado. E quando Aristides, devorado pela nostalgia, quis voltar, ela já estava apaixonada por um outro, o Gouveia. Durante uns seis meses, Aristides andou pensando, dia após dia, em meter uma bala na cabeça. Acabou renunciando ao suicídio, mas ficou-lhe, para sempre, o sofrimento surdo. Dorinha casara-se com o Gouveia, tinha dois filhos de Gouveia. E sempre que a via, acidentalmente, na rua, Aristides precisava tomar um pileque dantesco. E, súbito, ela telefona, a inesquecível, a insubstituível Dorinha! Ao impacto da surpresa, gagueja:

— Ah, como vai você?

— Bem. E você?

— Navegando.

E, então, Dorinha diz-lhe:

— Preciso muito falar contigo.

— Comigo? E quando?

— Já.

— Pois não. Estou às tuas ordens. — E, na sua ternura sofrida, pergunta: — Tu sabes que mandas em mim, não sabes?

Combinaram o encontro, para daí a vinte minutos, numa sorveteria da rua da Carioca.
Aristides largou o serviço, que estava atrasadíssimo, e correu para o elevador. Daí a dez minutos, estava no local. Encontrou-a mais linda, mais fresca do que nunca. Diante da mulher que nunca deixara de amar, não se conteve. Com o coração disparando, começou:

— Sou todo teu. Nunca deixei de te amar.

Tomando refresco, com canudinho, Dorinha vai falando:

— Eu preciso de um favor teu. Mas quero que prometas que não pensarás mal de mim.

O espanto do rapaz foi uma coisa sincera e profunda:

— Você acha que eu posso fazer má idéia de ti? Oh, Dorinha!

Então, sem desfitá-lo, Dorinha disse:

— Meu marido partiu hoje, ao meio-dia, para São Paulo. De hoje para amanhã, eu sou uma espécie de solteira ou, então, de viúva. De qualquer maneira, uma mulher livre. Pensei em você, que merece toda a minha confiança e… Está compreendendo?

Numa confusão total, balbuciou:

— Mais ou menos.

E ela:

— Para falar português claro: — estou oferecendo a minha tarde.
Leva-me!

Deslumbrado, exclama:

— Oh, Dorinha!

Ele pagou, trémulo, a despesa.

Saem e, lá fora, Dorinha observa:

— Mas não devo me expor. Arranja um interior, sim?
Acontece que Aristides mantinha, de sociedade com um amigo, um apartamento em Botafogo. Cheio de escrúpulos, baixa a voz: — “Eu tenho um lugar, assim, assim, discretíssimo”. 

Dorinha interrompe: 

— “Óptimo!”.

Tomam um táxi, que ia passando. A caminho de Botafogo, a pequena começa:

— Você, naturalmente, está espantado e querendo uma explicação.

Protesta, veemente:

— Explicação nenhuma! Basta o fato em si! Você está aqui, comigo, a meu lado, e não interessam os motivos, argumentos, nada!

Quando entraram, uns quinze minutos depois, no apartamento, Aristides não sabia o que dizer. Ainda uma vez, Dorinha toma a iniciativa:

— Você não me beija?

Ofereceu-lhe a boca. Aristides experimentou uma espécie de vertigem. O primeiro beijo, depois de tanto tempo, foi uma dessas coisas que marcam para sempre. Em seguida, ele a carrega no colo, como uma noiva de fita de cinema. Uma hora e pouco depois, já a noite entrara no apartamento e Dorinha estava diante do espelho, refazendo a pintura.

Aristides veio, por trás, beijar-lhe os ombros nus; e suspira:

— Eu não sabia que gostavas tanto de mim!

Dorinha vira-se, com divertida surpresa:

— Mas eu não gosto de ti.

Atónito, pergunta:

— E isso que aconteceu entre nós? Não conta?

A pequena está de pé:

— Era a explicação que eu queria te dar e que tu recusaste. O meu marido, ontem, discutiu comigo e me deu uma bofetada. Estou aqui por causa da bofetada. Mas amo o meu marido e só meu marido.

Ele insiste, desesperado:

— Quer dizer que não vamos continuar?

Responde:

— Depende. Se meu marido me bater outra vez, já sabe: — eu telefono pra ti.

Sem uma palavra, na maior humilhação de sua vida, deixou-a partir.

Mas quando a porta fechou-se atrás da pequena, ele caiu, de joelhos, no meio do quarto, mergulhou o rosto nas mãos e soluçou como uma criança.

Durante uma semana, ele foi o ser mais humilhado e mais ofendido da Terra. Dizia de si para si: — “A cínica! A cínica!”. E pior é que era incapaz de sentir atracção por qualquer outra mulher. Uns quinze dias depois, ele atende o telefone: — era ela. Perguntava, alegremente:

— Vamos lá, outra vez?

Foram. E, no apartamento, ela suspira:

— Imagina, deu-me outra bofetada.

Encontraram-se outras vezes, sempre em função de novas bofetadas. Até que, uma tarde, entre um beijo e outro, ela exclama:

— Os homens são muito burros!

— Por quê?

E Dorinha:

— Tu não percebeste que não houve bofetada nenhuma? Que meu marido não me esbofeteou nunca? E que eu te amo, te amo e te amo?

Nelson Rodrigues