«O Homem de Cabul», por Rabindranath Tagore.
«O Homem de Cabul»
Conto de Rabindranath Tagore
855- «O HOMEM DE CABUL»
Mini, minha filha de cinco anos, não pode viver sem
tagarelar. Creio até que em toda a vida não passou um minuto em silêncio. Sua
mãe irrita-se frequentemente com isso, e gostaria de conter-lhe a garrulice,
porém eu sou de outra opinião. Para Mini, ficar sossegada é coisa contra a
natureza, e eu não lhe suporto o silêncio por muito tempo. Assim vivemos
mantendo uma conversa intensa.
Assim, certa manhã, quando eu me encontrava no meio do
décimo sétimo capítulo do meu novo romance, minha pequena Mini entrou no quarto
e, pondo sua mão na minha, disse-me:
– Papai, Ramdaial, o porteiro, chama um corvo um curvo. Ele
é muito bobo, você não acha?
Antes que lhe pudesse explicar as diferenças entre uma
língua e outra, ela já estava interessada noutro assunto:
– Papai, que é que você acha? Bhola diz que tem um elefante
nas nuvens e, quando chove, é porque ele sopra a tromba.
E enquanto eu, calado, tentava encontrar uma resposta a essa
pergunta, ela saiu-se com esta:
– Papai, que parente da mamãe é você?
Tentei dizer-lhe com cara séria:
– Vá brincar com Bhola, Mini. Papai está ocupado.
A janela do meu quarto olha para a estrada. A menina
acomodou-se a meus pés perto da mesa, e brincava batucando baixinho nos
joelhos. Eu estava mergulhando no meu décimo sétimo capítulo, em que o herói
PratapShing tomava Canchanlata, a heroína, em seus braços, e ia escapar com ela
do terceiro andar do castelo, quando de repente Mini abandonou a sua ocupação e
correu à janela gritando:
– Um cabulense, um cabulense!
E, de fato, na rua em baixo via-se um homem de Cabul andando
devagar. Vestia o traje frouxo e manchado de seu povo e um turbante grande, e
carregava um saco às costas e caixas de uvas nas mãos.
Não sei dizer o que minha filha sentiu ao avistar o homem;
em todo o caso, pôs-se a chamá-lo em altos brados.
– Ai! – pensei com os meus botões. – O homem vai entrar, e
nunca mais eu termino o meu capítulo 17.
Nesse mesmo instante, o homem de Cabul virou-se e olhou para
a menina, o que a deixou trêmula de medo. Ela desapareceu e foi procurar, correndo,
a proteção da mãe. Devia pensar que no saco grande que o homem carregava às
costas podia haver duas ou três crianças como ela. Entretanto o mascate entrou
pela porta e cumprimentou-me com um sorriso.
A situação de meu herói e da minha heroína estava tão
precária que preferi interromper o trabalho para comprar alguma coisa, visto
que Mini chamara o homem para nossa casa. Fiz algumas comprinhas e entramos a
falar de AbdurRahman, os russos, os ingleses e a política de fronteiras.
Antes de sair, perguntou-me:
– Onde está a menina?
Aí, julgando que Mini já se livrara do seu acesso de medo,
mandei-a chamar.
Ela ficou em pé junto à minha cadeira, olhando para o homem
de Cabul e o seu saco. Ele ofereceu-lhe uvas e nozes, porém ela não se deixava
tentar: foi apertar-se a mim, com todas as dúvidas confirmadas.
Foi esse o primeiro encontro dos dois.
Alguns dias depois, no entanto, ao sair de casa fiquei
surpreendido: avistei Mini sentada num banco perto do portão, dando grandes
risadas e batendo papo com o grande cabulense. Tinha-se a impressão de que em
toda a sua vida a minha filha não havia encontrado ouvinte tão paciente, a não
ser na pessoa do pai. E logo a aba de seu pequeno sári ficou cheia de amêndoas
e de uvas, presentes da visita.
– Por que deu tudo isso à menina? – perguntei,
oferecendo-lhe uma moeda de oito anás.
Ele aceitou o dinheiro sem hesitar, e o embolsou.
Porém ao regressar, uma hora depois, percebi que a
desgraçada moeda causara confusão duas vezes maior que todo o seu valor. Com
efeito, o cabulense deu-a a Mini, e a mãe desta, notando o brilhante objeto
redondo, caiu em cima da criança com estas palavras:
– Onde foi que você pegou moeda de oito anás?
– Foi o homem de Cabul quem me deu – respondeu Mini com
prazer.
– Foi o homem de Cabul quem te deu! – exclamou a mãe
escandalizada. – Oh, Mini! Como é que você pôde aceitá-la?
Entrei nesse momento e, salvando minha filha da catástrofe
iminente, fui proceder a um inquérito.
Achei que os dois não se tinham encontrado nem pela primeira
nem pela segunda vez. O cabulense vencera o primeiro medo da criança
subornando-a pela oferta oportuna de nozes e de amêndoas, e agora eles eram
grandes amigos.
Tinham umas brincadeiras estranhas, que os divertiam
sobremaneira. Mini sentava-se em frente do homem, esquadrinhava-o em todo o seu
tamanho do alto de sua minúscula dignidade e perguntava-lhe com o rosto
crispado pelo riso:
– Olá, cabulense, cabulense! Que é que você tem no saco?
Ao que ele respondia com acento nasalado da gente montanhesa:
– Um elefante!
Não havia nisso motivo nenhum para alegria, mas como os dois
apreciavam aquela brincadeira! Para mim, aquele bate-papo infantil com uma
pessoa adulta sempre tinha algo estranhamente aliciante.
Então o homem de Cabul, para não ficar atrás, perguntava,
por sua vez:
– E você, pequerrucha, quando vai à sua casa do seu sogro?
Toda meninazinha de Bengala já ouviu falar da casa do sogro;
mas nós éramos algo progressista e não falávamos dessas coisas diante dela, de
sorte que a pergunta devia deixá-la um tanto perplexa. Mas não o demonstrava e
perguntou com muito jeito:
– E você, tem ido lá?
Ora, entre pessoas da classe do cabulense é bem sabido que
“a casa do sogro” tem duplo sentido. Essas palavras designam, por eufemismo, a
prisão, lugar onde os outros cuidam de nós sem despendermos nada. O robusto
mascate entendia a pergunta de minha filha neste sentido.
– Ora – dizia ameaçando com o punho um guarda invisível –,
eu vou dar uma boa surra no meu sogro!
Ouvindo essas palavras e imaginando o pobre parente moído de
pancadas, Mini dava gargalhadas, no que era imitada pelo seu ilustre amigo.
Eram manhãs de outono, o período do ano em que os reis de
outrora saíam em busca de conquistas. Sem mexer-me do meu cantinho de Calcutá,
deixava o espírito vaguear pelo mundo. Ao ouvir o nome de outro país qualquer,
o meu coração ia visitá-lo, e ao avistar um forasteiro nas ruas eu tecia toda
uma série de sonhos sobre os montes, os vales e as florestas de sua pátria
distante, com sua casinha no meio, sua vida livre e independente, seus animais
em redor. Cenas de viagem surgiam diante de mim, e passavam e repassavam pela
minha imaginação muito mais vívida, talvez por eu levar vida tão semelhante à
de um vegetal; um convite para viajar teria caído sobre mim que nem um raio. Na
presença daquele homem de Cabul eu era imediatamente transportado a pé de suas
montanhas áridas, com pequenos desfiladeiros entre seus cumes altaneiros. Podia
ver a fila de camelos transportando mercadorias e o grupo de comerciantes de
turbante na cabeça, alguns carregando velhas armas de fogo e outras lanças,
enveredando rumo à planície. Mas em tais momentos a mãe de Mini intervinha e
implorava-me que “olhasse aquele homem”.
Infelizmente a mãe de Mini é muito impressionável. Basta-lhe
ouvir um barulho na rua ou ver pessoas dirigirem-se a nossa casa para chegar à
inevitável conclusão de que são ladrões ou bêbados, ou cobras, ou tigres, ou
malária ou baratas ou lagartas. Mesmo depois de tantos anos de experiência é
incapaz de dominar os seus temores. Assim, estava cheia de dúvidas a respeito
do homem de Cabul e costumava pedir-me que não deixasse de olhar para ele.
Quando eu, com um riso, tentava dissipar-lhe o medo, lançava
olhares solenes em volta e me perguntava em tom grave:
“- Não havia casos de sequestros de crianças?”
“- Não era verdade que em Cabul ainda havia escravidão?”
“- Era tão absurdo supor que um gigante daqueles podia
raptar uma criancinha?”
Eu respondia que, embora isso não fosse impossível, parecia
muito pouco provável. Essa objeção, porém, não vencia a sua apreensão. Como,
porém, estas fossem vagas demais, não achava justo proibir a entrada do homem e
a intimidade dos dois continuava no mesmo pé.
Uma vez por ano, em meados de janeiro, Rahman, o cabulense,
costumava voltar à sua terra, e, quando o momento se aproximava, tornava-se
muito atarefado, indo de casa em casa cobrando o que lhe deviam. Esse ano, no
entanto, sempre encontrou tempo para visitar Mini. Um estranho poderia pensar
que houvesse alguma conspiração entre os dois, pois, quando não podia vir de
manhã, vinha à tardinha.
Eu mesmo espantava-me, de vez em quando, de encontrar aquele
gigante de trajes folgados, carregado de embrulhos, num canto escuro do quarto;
porém, quando Mini entrava a correr, toda sorrisos, aos gritos de “Cabulense, ô
cabulense!”, e os dois amigos, tão afastados em idade, se entregavam às velhas
brincadeiras e às risadas de sempre, sossegava por completo.
Certa manhã, antes que ele tivesse decidido a partida, lá
estava eu corrigindo provas tipográficas no escritório. Os raios do Sol
chegavam-me aos pés através da janela, causando-me agradável sensação de calor.
Eram quase oito horas. Transeuntes voltavam para casa, de cabeça coberta. De
repente ouvi um rebuliço na rua e vi Rahman de mãos acorrentadas escoltado por
dois policiais, seguido por uma turma de meninos excitados. Havia manchas de
sangue em suas roupas, e um dos policiais segurava uma faca. Saí às pressas e,
detendo o grupo, indaguei o que aquilo queria dizer. Pelo que ouvi de uns e de
outros, um vizinho devia ao mascate o preço de um xale de Rampuri, mas
recusava-se a pagá-lo e no calor da discussão levara uma facada de Rahman.
Nesse momento o prisioneiro no auge da excitação, entrou a chamar seu inimigo
de nomes diversos, quando repentinamente na varanda da nossa casa apontou a
pequena Mini com sua exclamação habitual:
– Ô cabulense, cabulense!
O rosto de Rahman aclarou-se quando ele se virou para a
menina. Ele não estava carregando o saco de sempre, de modo que não podia falar
do elefante com ela. Assim, ela passou logo para a segunda questão:
– Você vai à casa de seu sogro?
Rahman respondeu rindo:
– É lá que estou indo mesmo, pequerrucha!
E, vendo que a resposta não fez rir a criança, levantou as
mãos acorrentadas.
– Ah! – disse – eu ia dar uma sova nesse velho, mas estou de
mãos atadas.
Acusado de tentativa de morte, Rahman foi condenado a vários
anos de prisão.
Passou-se algum tempo, e ele foi esquecido. Continuamos
vivendo como sempre, no lugar de sempre, e só raramente, ou nunca, pensamos no
montanhês outrora livre que estava purgando a sua pena na prisão. Até a minha
Mini, de coração despreocupado, esqueceu o velho amigo, lamento dizê-lo. Novos
companheiros vieram encher-lhe o tempo. À medida que ficava mais velha, passava
mais horas com outras meninas… A tal ponto que já não vinha, como outrora, para
o quarto do pai, e raramente eu tinha a oportunidade de falar com ela.
Passaram anos. Mas uma vez o outono tinha chegado e nós
estávamos fazendo preparativos para o casamento de nossa Mini, que ia
realizar-se. Como Durgas voltando a Kailas , a luz da nossa casa também ia
partir para a casa do esposo, deixando o pai na sombra.
A manhã estava radiosa. Depois das chuvas, o ar parecia
lavado num repente, e os raios do Sol eram como que de ouro puro. Estavam tão
brilhantes que faziam resplandecer mesmo as feias paredes de tijolo de nossas
ruelas. As flautas núpcias tocavam desde o amanhecer, e o coração batia mais
forte a cada explosão de som. Os queixumes da música bhairavi pareciam
intensificar a mágoa que eu sentia com a aproximação da nossa despedida. Mini
ia casar-se nessa noite.
Desde cedo a casa fora tomada de algazarra a azáfama. No
pátio, o baldaquim esperava para ser suspenso em estacas de bambu; candelabros
estavam sendo postos tinindo em cada quarto e na varanda. A presa e a excitação
não tinham fim. Eu me achava sentado no escritório verificando contas, quando
alguém entrou com uma saudação respeitosa e se postou á minha frente. Era
Rahman, o cabulense. Não o reconheci de pronto: estava sem o saco, tinha os
cabelos cortados rente, e já não demonstrava o antigo vigor. Mas reconheci-o
pelo seu sorriso.
– Quando foi que você chegou, Rahman? – perguntei-lhe.
– Ontem à noite – respondeu. – Fui solto da prisão.
Essas palavras soavam ásperas aos meus ouvidos. Nunca antes
havia conversado com alguém que tivesse ferido um semelhante, e senti o coração
encolher-se quando me dei conta disso; ocorreu-me, com efeito, que o dia teria
sido melhor se ele não houvesse reaparecido.
– Está havendo uma festa em casa – disse-lhe – e estou
ocupado. Será que você poderia voltar outro dia?
Ele virou-se imediatamente e se dirigiu para a saída; mas ao
chegar à porta perguntou com hesitação:
– Não poderia ver a meninazinha um instante, por favor?
Pensava que Mini continuava a mesma; imaginava que ela vinha
correndo saudá-lo como sempre fazia, aos gritos de “Ô cabulense! Cabulense!”
Imaginava também que iam conversar e soltar risadas juntos, como dantes. Com
efeito: como lembrança dos dias antigos, trouxe, cuidadosamente embrulhados num
papel, umas nozes e uns cachos de uvas que devia ter obtido de algum patrício,
porque o pouco dinheiro que possuía acabou-se.
Repeti:
– Está havendo uma festa em casa, e você não poderá ver
ninguém hoje.
Seu rosto manifestou decepção. Encarou-me sôfrego por um
momento.
– Até amanhã – disse, e foi-se.
Fiquei um pouco triste, e ia chamá-lo de volta, mas o vi
retornar espontaneamente. Aproximou-se de mim para oferecer seus presentes.
– Trouxe estas coisinhas, doutor, para a pequerrucha. Quer
entregá-las a ela?
Peguei-as, e ia pagá-las, mas o homem me deteve a mão:
– O senhor é bom demais. Não me ofereça dinheiro: quero que
ela guarde boa lembrança de mim. O senhor tem uma filhinha. Eu também tenho uma
como ela em casa. Estou pensando nela e trago estas frutinhas para a sua
menina; mas não para ganhar dinheiro.
Dizendo isto, meteu a mão na roupa frouxa e retirou de lá um
pedacinho de papel sujo. Desdobrando-o com muito cuidado, passou a alisá-lo com
as duas mãos sobre a mesa. O papel trazia a impressão de uma pequena mão. Não
uma fotografia, nem sequer um desenho; apenas a impressão de uma mão besuntada
de tinta e apoiada no papel. Esse toque da mão da filhinha, carregava-o sempre
perto do coração, quando de ano em ano voltava a Calcutá para vender sua
mercadoria nas ruas.
Lágrimas molharam-me os olhos. Esqueci que ele era um pobre
fruteiro de Cabul, enquanto eu… Mas não, que é que eu tinha a mais que ele? Ele
também era pai.
A impressão da mãozinha da sua pequena Parvati em suas
montanhas distantes me fez lembrar a minha pequena Mini.
De um dos quartos internos mandei chamá-la imediatamente.
Levantaram-se objeções, mas afastei-as todas. Metida em seu vestido nupcial de
seda vermelha com um ornato de sândalo na fronte e enfeitada como costumam ser
as jovens noivas, Mini veio e se deteve modesta na minha frente.
O homem de Cabul ficou espantado com a aparição. Não sabia
como reavivar a antiga amizade dos dois. Porém acabou sorrindo e perguntou:
– Menininha, está indo à casa do sogro?
Mas Mini, agora entendia o sentido da expressão e não pôde
responder como outrora. Ouvindo a pergunta, corou, e manteve-se cabisbaixa nos
seus trajes de noiva em frente do homem.
Lembrei-me do dia em que Mini e o cabulense se encontraram
pela primeira vez, e fiquei triste. Quando ela se foi, Rahman soltou um suspiro
profundo e fitou o assoalho. Deve lhe ter ocorrido de súbito que a própria
filha cresceu enquanto ele ficou tanto tempo ausente, e que teria de
reconquistar a amizade dela também. Seguramente não a ia encontrar como a tinha
deixado. De mais a mais, quanta coisa podia lhe ter acontecido durante aqueles
oito anos!
As flautas núpcias voltaram a tocar, e a luz do Sol caía
suave sobre nós. Rahman, porém, sentado na ruela de Calcutá, via ante si as
montanhas áridas do Afeganistão.
Saquei uma cédula da carteira e a ele a entreguei dizendo:
– Vá, volte à filha, Rahman, em sua terra, e que o nosso
feliz reencontro possa trazer boa sorte à minha menina.
Àquele presente obrigou-me a cortar alguns acessórios da
festa: não pude ter a iluminação eléctrica com que contava, nem a banda militar,
e as senhoras da casa ficaram desapontadas. Porém, para mim a festa só fez
ficar mais brilhante quando lembrava que um pai perdido desde muito tempo ia
reencontrar a única filha.
Rabindranath Tagore