«Ele e Ela», por Ramalho Ortigão.
«Ele e Ela»
Ele e Ela/ Ilustração de Alfred Gockel
883- «ELE E ELA»
[A Júlio César
Machado]
Meu velho amigo: -
Aqui tens a história que ontem me contou, ao separarmos-nos de ti depois de
jantarmos juntos, aquele sujeito que tu conheces.
* * *
Eu tinha chegado de
um porto de França em companhia de uma alemã, que entrevira em Paris, e com
quem me encontrei depois a bordo do paquete que tinha de nos trazer ao Tejo.
Era uma senhora de maneiras muito graves e de fisionomia perfeitamente
distinta, sincera e despresumida, como quase toda a gente dessa bela raça
germânica, que floresce em todos os climas como na sua pátria, e aceita toda a
convivência como a da sua família.
Desembarcámos no
Terreiro do Paço. Ela vinha tão abatida e alquebrada pelos efeitos de uma
viagem tempestuosa no grosso mar da Gasconha e da Mancha, que eu determinei-me,
contra os usos do país a que me recolhia, a oferecer-lhe o meu braço para
passearmos por um momento à réstia vivificadora do sol de Lisboa no mês de
Janeiro.
Soube então que a
minha simpática dama se encontrava só na capital, e tinha de partir para o
Porto, assim como eu, no dia imediato. Falámos por algum tempo, ela das suas
saudades, eu das minhas recordações, até que a acompanhei numa carruagem ao
hotel de Bragança, onde ficámos de reunir-nos na manhã seguinte, para seguir no
caminho de ferro para a cidade das camélias.
À hora aprazada fui
encontrar-me efectivamente com ela e achei-a pronta para partir, radiante de
saúde, vestida com um trajo de primavera, tendo um ramo de flores junto do rolo
do seu édredon, e mostrando-se maravilhada da suave brandura do clima e da
engenhosa convenção que levava os habitantes a usarem paletot, com o fim de
fazerem acreditar uns aos outros e a quem viesse de fora que também por cá se
tinha inverno.
Saímos a pé pelo
braço um do outro, e fomos almoçar a um café, fazendo horas para chegar a Santa
Apolónia a tempo de entrar no trem e partir.
Achámo-nos no vagão,
acompanhados unicamente de um respeitável ancião, o sr. S. M., que lia filosoficamente
um número do Diário de Notícias no canto do compartimento oposto àquele em que
nós ficámos um defronte do outro.
Estava com efeito
uma bela e donosa manhã sem calor nem frio, sem nuvens no céu, sem lama na
terra e sem pó no ar.
De um lado a frescura
das laranjeiras e o reluzente viço das hortas que bordam a estrada até o
Carregado, e do outro o límpido cristal do Tejo em plena majestade iam-nos
acompanhando como um sorriso e um afago da natureza em hora de bom humor.
A minha companheira
de viagem tinha remoçado cinco anos com este brando acolhimento do amorável
país do seu exílio. Estava buliçosa como um estudantinho, tinha desmolhado o
seu ramalhete à força de o respirar com frenesim, até deixar ver toda a alvura
dos seus pequeninos dentes com a infantil alegria de uma felicidade
inteiramente desanuviada, e era muito bonita, assim contente e alegre.
Pelas quatro horas
da tarde estávamos perto de Aveiro e principiava a desenrolar-se aos nossos
olhos a esplêndida paisagem do norte de Portugal. As campinas estavam virentes
e viçosas como em plena primavera, o sol inclinava-se para o ocaso entre uns
ténues vapores de opala e de ouro, respirava-se a brisa fragrante das ondas e
havia no ar como um fluido de melancolia e de saudade. Era a plácida morbidez de
uma tela de Correggio.
A jovem alemã, que
eu tinha defronte de mim, havia tirado o chapéu e recostado para trás a sua
bela cabeça, aureolada por uma espécie de vaga irradiação proveniente do azul
dos seus olhos e da expressão dos seus lábios arqueados num sorriso triste como
o dos sonhadores, dos namorados e dos poetas.
Eu atirei fora um
charuto que ela me permitira acender, e perguntei-lhe como lhe parecia a
paisagem que íamos vendo.
Ideal murmurou ela,
quase num suspiro.
Este laconismo
deixou-me entender que estava com uma verdadeira apreciadora do belo, uma
dessas criaturas privilegiadas em quem a contemplação dos grandes espectáculos
da natureza entumece o coração e suplica a palavra fazendo bailar as lágrimas
nos olhos. Entendi que não devia perturbar o seu pensamento, a sua ilusão
talvez, ou por ventura o seu êxtase, e pus-me a olhar silenciosamente para ela.
Ao cabo porém de
meia hora não pude resistir à tentação de lhe dizer:
Que horas estas para
dois entes que se amassem! - É verdade, confirmou ela.
Como deve ser bom,
nestes momentos em que a saudade vaga e indefinida nos inunda como um banho de
recordações, de esperanças e de afectos, ter junto de nós um honrado e leal
coração que nos entenda e nos ame, e poder a gente casar ternamente com o hino
do crepúsculo, o hino da sua alma! Dá-me licença que a ame...
Ela fitou-me com um
olhar penetrante. - ... por cinco minutos? terminei eu - ou por um quarto de
hora?... daqui até se pôr o sol? No fim desse prazo recebe cada um os protestos
que adiantou, retira as juras que fez, e fica senhor de si como dantes. É como
quem joga a tentos.
Assim, pode ser,
disse-me ela rindo, mas verá que se aborrece antes de chegar ao meio da
partida...
Porquê?
Porque não faz uma
vasa.
Quem sabe? Conforme
o lado para que ficarem os trunfos.
Demos então as
cartas.
Eu principio. Conto
trinta anos de idade, sou pobre e tenho o coração ocupado, mas deu-me Deus um
génio apaixonado. . . sincero! Entendo eu que uns dedos fininhos, cor-de-rosa,
elegantemente tratados e perfumados são feitos para receber de quando em quando
um beijo; que um olhar inteligente e suave deve descer ao fundo da nossa alma,
se nós temos uma alma pura, e desse dentar-se nela como uma pomba em um lago;
que a elegância, o espírito e a educação de uma mulher amável devem em todo o
tempo receber o culto da admiração e do reconhecimento de um homem de bem,
porque é certamente para os homens de bem que Deus permitiu a amabilidade às
mulheres honestas...
Mas é amizade o que
me está dizendo e o que eu mais prezo! E a única pessoa que conheço em
Portugal, e já ninguém poderá agora evitar que seja o meu primeiro amigo...
Vou-lhe fazer também as minhas confidências. Tenho contraído grandes encargos
de coração. Acredita que seja possível amar-se por cartas muito tempo?
O amor em cartas,
objectei-lhe eu, é como um jantar de que não nos oferecem senão a lista. Nada
obsta a que seja o mais sumptuoso, mas não é por certo o mais nutriente ... No
entanto como em tais banquetes dizem que é a imaginação quem prepara as
iguarias mais delicadas...
Eu creio que sou
amada...
Por alguém que está
longe! a quem escreveu esta manhã uma carta de consolação, de resignação e de
esperança... uma carta que dentro de oito dias o há-de fazer chorar, e que ele
há-de trazer por muito tempo junto do coração como uma santa relíquia... E em
troca desta carta há-de mandar-lhe outra escrita ardentemente com as lágrimas
do coração e com o sangue das veias, a qual, antes e depois de se saber de cor,
será lida e relida todos os dias entre a oração da manhã e o piedoso beijo
deposto no retrato de sua mãe. Veja que ideal ventura! o prazer de amar sem ter
do amor o que há nele mais impertinente e mais prosaico: as imperfeições que a
convivência descobre e multiplica! E, depois, dentro de um ou dois anos, o
prazer de tornarem a ver-se! Aparecer-lhe mais bela, porque a saudade e a
esperança poetizam, melancolizam, tresdobram a beleza; e encontrá-lo mais
velho, e portanto mais expressivamente homem e mais expressivamente simpático!
tê-lo finalmente ao seu lado...
(E, nisto, passei
para o lado dela, e sentei-me no mesmo sofá em que ela se achava.)
Ouvi-lo, continuei
eu, ouvi-lo falar-lhe da ausência e do futuro comum, pondo-lhe aos pés o seu
amor, o seu nome e a sua liberdade! Possa Deus reuni-los cedo e não o matar a
ele de felicidade na hora suprema em que a vir, sendo-lhe permitido, em paga do
seu amor constante, beijá-la na fronte longamente e inebriar-se com a certeza
de ser amado pela mulher mais adoravelmente meiga, mais terna e mais simpática!
Chegado a este
ponto, e falando-lhe já, insensivelmente, com muito mais veemência e afogo do
que se emprega para conversar, peguei-lhe nas pontas dos dedos, levantei a mão
que ela tinha caída no regaço e pousei os lábios no debrum da luva.
Ela então levantou o
cabazinho de viagem, que estava colocado entre nós ambos, segurou-o nos
joelhos, desafivelou a correia que lhe segurava a tampa, e dando-me uma laranja
que tirou de dentro, disse-me com a gravidade indulgente e bondosa de um
enfermeiro ou de um médico:
Prescrevo-lhe o
regime refrigerante.
Por Deus, me parece
que estava precisando da receita! tornei-lhe eu, pondo-me a rir.
E, voltando para o
lugar que primeiramente ocupava defronte dela, principiei a descascar a laranja
e a morder com apetite nesse fruto, que não era por certo o fruto proibido.
Sim, senhor… ia-me
dizendo no entanto a minha graciosa companheira, baralhou bem as cartas e
arranjou bom jogo!
Ah! então confessa .
. .
Confesso-lhe que
sim.
Posso oferecer-lhe
da minha dieta? preguntei eu, dando-lhe metade da laranja.
Ela separou um gomo.
Quando acabar,
podemos continuar.
Continuo
imediatamente, cortei eu logo, debruçando-me na portinhola para cuspir uma
pevide que tinha nos beiços.
Senão quando a
corrente do ar cortado pela locomotiva levou-me da cabeça o meu chapéu.
Preciso abrir para
este objecto perdido um parêntese, de cuja substância Deus me livre que se
soubesse! Tinha sido feito em Paris por - Pinaud & Amour - esse bonito chapéu
tão flexível, que se meteria dentro de um sobrescrito! Era de casimira azul
como a minha jaqueta de viagem, forrado de azul-claro com debrum pespontado de
seda preta. O próprio Amour me tinha dito ao vender-mo por vinte francos - Cela
vous coiffc à merveille - e eu tinha tido a criminosa fraqueza de o acreditar!
Aquele chapéu não era para mim somente um chapéu, era um elmo e um arnês. Não
me considerava simplesmente coberto quando o punha, considerava-me também
armado. Queres que te confesse a verdade? Eu não me teria nunca atrevido a
apertar os dedos da minha alemã, nem a beijar-lhe apaixonadamente a luva, se o
não trouxesse na cabeça, e era realmente muito mais com o talento dos srs.
Pinaud & Arnour, do que com o meu próprio, que eu contava para me fazer
passar junto dela por um homem de espírito !
Os cabelos
despenteados pelo vento tinham-me caído para cima dos olhos; compreendi que
estava ridículo, não podendo esconder este ar sumamente tolo de todo o homem a
quem de repente desaparece o chapéu na asa de um tufão.
Ela ria às
gargalhadas, as quais me caíam na cabeça... na cabeça não - pelas costas
abaixo! - como torrentes de água nevada.
O sr. S. M., de quem
confesso que me tinha completamente esquecido, e que continuava sempre a sua
viagem no nosso compartimento, apiedou-se de mim, e, lançando generosamente a
mão à rede da carruagem, baixou nos seus braços uma caixa de chapéu do tamanho
de um gasómetro, e disse-me assim:
Tenho aqui com que
lhe valer!...
Entendi que rabearia
um castor inteiro para fora daquela toca ambulante, e ia conter com um gesto a
benevolência do meu delicado companheiro, quando ele me observou, rebatendo o
meu susto com um sorriso:
Não é o que cuida!
Está cá dentro o objecto que lhe convém.
E dizendo isto,
sacou da chapeleira, suspenso por uma aparatosa borla de retrós preto, um
barrete de veludo ornado de amores-perfeitos bordados a matiz.
Hesitei por um
instante entre aceitar o barrete, o que era hediondo, e confessar-lhe medo, o
que era pueril. Revesti-me finalmente de todo o meu valor e estendi a dextra
para o inocente carapuço, que estava sendo na mão do sr. S. M. gládio da
suprema justiça, alfange exterminador da minha pecadora vaidade. Fechei em
seguida os olhos como quem vai lançar-se em um abismo, peguei no barrete com
ambas as mãos, levantei-o à altura do rosto, deixando-lhe a borla pendente,
entreabri os olhos e vi o monstro boquiaberto... Tornei logo a cerrar as
pálpebras, e meti a minha infeliz cabeça no seu novo invólucro!
Estava consumado.
A minha gentil
companheira deu-me o golpe de misericórdia inclinando-se para mim, pegando-me
em ambas as mãos e dizendo-me entre duas gargalhadas:
Valor! acredite...
que o amo.
Respondeu-lhe o
silêncio da morte. O barrete de veludo, circundado do matiz dos
amores-perfeitos, cuja borla me caía como o crepe funerário de uma lança ao
longo da orelha esquerda, era o túmulo e o epitáfio das minhas ilusões desse
formoso dia!
Ser amado, tendo na
cabeça um barretinho de veludo com sua borlazinha ao lado, pedindo para cima da
outra orelha a pena de pato ramalhuda e majestosa, insígnia burocrática do
guarda-mor pontual e do tabelião zeloso! Ser amado, e ouvi-lo assim dizer nessa
hora tremenda pela boca mais engraçadamente zombeteira a que Deus permitiu a
momice da provocação! Que havia de retorquir eu em tão horrorosa conjuntura?
Mover-me para fazer bambolear sobranceira ao meu coração aquela borla fatal
como o espanador dos meus afectos juvenis? ajoelhar-me aos pés dela e pôr-lhe
nojosamente no regaço aquela cabeça do feitio e da fazenda de uma afrontosa
almofada de costura, ou de uma ignóbil pregadeira de alfinetes?!…
Assim os perdi pois,
para todo sempre, a ambos: a ela e a ele; a mais encantadora alemã que meus
olhos têm visto e o mais bonito chapéu que em minha cabeça tenho posto!
* * *
Encerra esta pequena
história a imagem da felicidade e por isso ta dedico a ti, meu querido Júlio, a
quem a desejo mais completa e mais perfeita. O que é desgraçadamente a fortuna
senão esse chapéu que um pé-de-vento arrebata, e esse amor que a presença de um
barrete extingue?
Ramalho Ortigão