«Os Reis Magos», por Vitorino Nemésio.
«Os Reis Magos»
Conto de Natal/ Vitorino Nemésio
938- «OS REIS MAGOS»
"[...] Pois se comeres as sopas, conto-te... Foi o que
disse a Avó. E, porque as comi todas, até chorar por mais, e não deixei nada na
tigela, e fui muito bonito para ser ainda mais gordo, sempre contou.
Contou que, noutros tempos (ainda os burros falavam!), lá por uma estrada fora
iam andando três senhores.
Cada qual o de mais teres, logo os vereis! — não eram pimpões nem soberbões.
Trajavam de imperadores, com grandes mantos de pelúcia, cheios de anéis de
pedras finas e de coroas à cabeça. Tinha cada um seu ceptro com que espertava a
mula (pois iam escanchados), e na ponta de cada um daqueles pauzinhos de prata
uma pomba poisava o pé leve, cortado no puro oiro.
Só te digo que em riqueza ninguém lhes passava a perna —
pois só visto aquele asseio e tenteado ao pé pelo Sr. Matos (que é um ourives
dos primeiros) se podia dizer quanto valiam. Mas nem por terem tantos cabedais
e aquelas honras todas (o seu dá-se a seu dono) aqueles grandes figuros eram
toleirões. Não! Eles, que tanto podiam, e tinham baraço e cutelo, e às portas
de palácio árvores de galho rijo para enforcar os salteadores; eles, que eram
abaixo de Deus, e, assim, podiam matar e ferir sem apelação nem agravo, e
intimarem os pobres a porem para ali o seu dinheiro, a novidade e a honra das
virgens (hein?!...), pelo contrário, eram mansos, e tinham falas de mansos.
Nas noites frias de gelo em que os telhados voavam, se
punham pingando as borralheiras e um vento forte sacudia as arcas do pão sem migalha,
desciam os três Reis de seus tronos, talhados na pedra-mármore, e lá iam de
rota batida... A lama enlameava os seus saiotes guarnecidos. A chuva, basta e
impertinente, dava-lhes bofetadas na cara. Atrás, pingando, iam os serventes
carregados. E então, parando às portas dos ceguinhos, dos rotos, dos que
tiravam uma esmola, e dos cavadores que tinham a enxada e o alvião
desencavados, faziam as reais mesuras dando boa-noite a todos:
— Deus esteja e Deus venha!
— Deus esteja nesta casa!
Um dia, um aleijado atrevido, uma espécie de Tintaleis,
respondeu com uma graçola:
— ... E o Diabo em casa dos frades! (pois já nesse tempo havia frades).
Então os criados, que marchavam à cernelha das mulas,
aliviavam-se dos presentes e enxugavam o suor debaixo dos barretes. Tiravam as
colchas de seda de riba dos cestos e a verdura dos alguidares. E, por suas
próprias mãos, os Reis davam bodo de brindeiras e repartiam cobertores à
pobreza.
Isto enchia a casa ao prove como um pegão de vento enche o portal da Matriz. E era
um regalo! Era como se, duma caixa fechada, muitas pombas juntas levantassem
voo à uma e ficassem poisadas nos tirantes... Até parecia que os céus também
gostavam daquilo! Ao longe fugiam as nuvens como latas de água às costas duma
fiada de papões, e a armação do céu punha o seu toldo azul, todo pregado de
estrelinhas.
Era debaixo deste pálio que os Reis tornavam a palácio,
cansados da caminhada. Cada passada real atirava um respingo ao real manto. E
em grande estadão, com uma procissão de velhinhas atrás, entravam por aqueles
portões de ouro, que se abriam de par em par enquanto um criado ia acordar o
sineiro da capela para repicar dobrado.
Estas coisas sucediam em Oriente, que era o reino dos Reis.
Ora um dia (por tal sinal, uma noite em que chovia a potes), os três Reis
encontraram-se num grande salão com paredes que nem muralhas. De roda havia
tamboretes de coiro e de pregaria amarela, como o cadeirão carunchoso em que o
mestre Francisco da Cadeia bate sola e põe tacões. Somente os do palácio real eram
tão lindos, tão lindos, que pareciam pregados para os assentos celestes das
Potestades e dos Anjos!
Nestes bancos se assentavam os Reis e a corte de seus
senhores. Os Reis tinham artes e mandingas, por isso lhes chamavam Magos.
Senhoras lindas como o sol bordavam-lhes os xairéis das muares. Tocadores de
muita fama repenicavam-lhes nas violas. Cantadores, de garganta tratada a gema
de ovo, cantavam-lhes trovas ao despique. E uns afilhados que eles tinham,
filhos de gente pobre mas vestidos de «infantes suavíssimos», brincavam com
piões de marfim, atados com fieiras de seda. (Podiam jogar à vontade, que o
chão era de pedra: não lhe faziam furos).
A parede-mestra da sala tinha uma parte em falso, defumada
das cozeduras, onde os clarões das labaredas dançavam a chamarrita acompanhados
de estalinhos. Aquilo dava ali um santo sabor, minado de cepos e de achas
cobertos de flocos de resina como tetas de cabra ordenhada. Todos gostavam
muito daquele borralho brando e estavam para ali quietinhos, a esfregar as mãos
de contentes.
Eis senão quando, começam a repenicar as toeiras das violas
e um dos reis põe-se a pé e vai espairecer à janela. Era um janelão cortado na
parede, funda de um metro e meio, com duas copeiras enfeitadas de rosmaninho e
de alfazema. Um grande alegra-campos arregalava o olho vermelho como besugo. E
o Rei, arredando os cortinados e abrindo uma gretinha, meteu a cabeça coroada
da sua coroa de bicos como a de São Luís, Rei de França. Era o próprio
Melchior. Outro chamava-se Gaspar, dono duma ladeira... O outro, negrenho de
todo, assinava-se — Baltasar.
Então, abrindo muito os olhos, vivos e azuis como o céu,
parando um pouco, depois recuando um bocado como se achasse uma prenda ou visse,
chinchinho, um brinquedo, El-Rei Melchior pôs as mãos, abriu-as devagar e ficou
como o padre a meio da missa, com os olhos muito abertos.
Lá dentro, as violas repicavam. Cá fora, estiara um poucochinho.
Da tapada, toda coberta de arvoredo, começaram a sair e a cantarolar os
tentilhões namoradeiros, os canarinhos afitados, mais «o ladrão do melro preto
onde foi fazer o ninho»... Um quarto de lua, doce, como uma foice de roçar,
estava estampado a primor na página azul do firmamento. E, no sobredito, a
tremer, a luzir e a arrefiar como um olho, uma estrela pingava, qual brinco
numa orelha de menina.
El-Rei Melchior ficou o que se chama palrísto! Pois que
logo, estendendo de lá seu braço de oiro, a estrela escreveu, mesmo sem pauta,
as seis palavras seguintes nos vidros suados da janela:
Eu sou a estrela de Deus.
Melchior curvou a cabeça e entendeu o resto, que era simples:
Segue-me como um cão!
Gaspar acompanhou-o, e o outro também. Partiram os três em três mulas, levando
três cofres e três pajens, direitinhos por aí fora. E então, até que chegassem
a um sítio chamado Jerusalém, apanharam, coitados, a geada e o frio todo deste
mundo!
A pé e calados, os pajens carregavam com os cofres onde iam
as prendas de valia. Como naquele tempo não havia estradas — nem sequer para
reis! — os caminhos eram regos abertos e acalcados entre as terras. A beira
deles debruçavam-se as árvores chocalheiras. Como as canadas de Santo António,
os atalhos tinham relheiras onde as mulinhas entalavam as suas fracas
ferraduras. Mas, mesmo assim, no meio de tantos tormentos e trabalhos, Suas
Majestades caridosas escorregavam dos albardões para escancharem caminhantes.
Uns eram velhos sem poderem; outros, capengas, como o Francisco Cambadinho. Uma
tia torta, outra cambada, outra cega, sem orelhas, abalaram a trote,
repimpadas, nem que fossem rainhas!
Até que Jerusalém, lá longe, se avistou. Aí, os Reis
disseram a Herodes — que era da igualha deles, Rei de Espadas e de Oiros! —
queriam saber onde estava o Rei dos judeus que era nascido. E, como Herodes não
sabia de nada, chamou a si os escreventes do seu povo e os príncipes dos seus
sacerdotes. Esta gente usava a barba toda (uns mais rala, outros mais basta), e
guardavam, em arcas encoiradas, medas e medas de livros cheios de traça e de
sabença. Molhando o dedinho, os escribas iam virando aquelas folhas amareladas
— quando um deles, lá do canto, muito invernizadinho e de óculos quadrados,
levantou o dedo ao ar, feito bicho saltão. Parecia mesmo empregado na
Conservatória! Um pândego!
Enfim, tinha achado! Ele cá estava! Um profeta escrevera a
folhas tantas, verso, do Livro da Nova e do Destino, que em Belém de Judá viria
ao mundo o Cristo Nosso Senhor. Ora, isto foi tal qual como deitar o bando para
se achar um tesoiro... Os Reis Magos então disseram adeus a Herodes, que lhes
pediu que mandassem a direcção do Deus Menino. E, nas três mulas, que já suavam
em bica amarradas às argolas e estraçoando farelada e luzerna, alçaram as
pernas e partiram.
Então a estrela dependurou-se-lhes na dianteira como um
pobre lampião, e guiou-os. Pôs-se a chover outra vez. Seguiam por valados e por
hortas, encharcados até às virilhas. De vez em quando encontravam peregrinos
enregelados que diziam mal da vida; e Gaspar, que era velhote e gebo, gemia do
alto do albardão para Baltasar ou o outro:
— Faltará muito, seu Melchior?!...
El-Rei Melchior olhava, coitado, para a estrela, que luzia
sempre e ia baixando pouco a pouco, como o ponteiro dum relógio todo cravejado
a safiras. Mas vinha um dos pajens, forte moço, com um alento de gigante, e
dava uma arroxadinha nas ancas da mula de Gaspar com o seu pingalim de
espadana. Eles, tontos de sono, despertavam. E assim calados, tuca, tuca, foram
indo...
Mas já as bocas do céu ao pé da terra, a que alguns chamam
horizontes, se iam abrindo devagar para engolir a noite e se tornavam
cor-de-rosa. Devagar, sobre silvados em flor, passarinhos sem medo daqueles
piques punham seus pés mimosos. As poças de chuva espalhadas, que tinham
espelhado as estrelas, agora clareavam, clareavam como quem vai acender-se.
Urzes, giestas e roseiras esgalhavam os seus ramos cheios de flores pelas
pontas. Rompia a madrugada.
O pajem de Melchior (que ou eu estou enganada ou era o da
naveta de incenso) ia a fumar o seu cigarro quando empeçou numa cancela de
pinho, ao pé dum molho de palha. A tampa da naveta abriu-se, caiu-lhe uma brasa
dentro, e foi preciso borrifar o incenso com água, senão ardia tudo. (Como vês,
meu menino, iam todos seis cheirosos). Depois, com o subir da manhã, começaram
a topar muita gente.
— Gaspar! Vês aquilo acolá, aqueles pontinhos, ali? — A
Gaspar pareciam mexer. Melchior tornava:
— Será gente que ali vai, Gaspar?
O velho encolhia os ombros, fartinho de cavalgar. Mas era.
Foram-se aproximando e viram que era verdade. Eram pastores com cordeiros
escarranchados ao pescoço; velhas, como a Jaleca, com cestas de ovos grossos,
de pata marreca e de galinha; raparigas frescas mociças com rosquilhas enfiadas
nos braços. Um homem calvo e negrinho, que nem o Manuel de Borba, tocava um
guexo lavrado que revirava o focinho e berrava como quem se despede deste
mundo. Tinham-no tirado da tetinha da mãe, coitadinho! Agora, em lugar de
leite, tinha que mamar num molho de erva da casta que o velho levava de
braçado!
Mais adiante, um pescador, que parecia o Manuel Vesgante, ia
todo prezado com duas ricas bocas-negras enfiadinhas num junco. E, numa bandeja
forrada de rendas e de mimo-de-estudante, um pequeno que nem o da Segunda
levava um serviço de alfenim, todo de pombas de açúcar com olhos de grão de
ervilhaca.
Todo aquele povaredo ia saltando de contente pelos caminhos
fora. E, topando-os, a passo, El-Rei Melchior, mais traseiro que os outros,
perguntou a um cabreiro:
— Sempre quero que me digais aonde ides com essa pressa e
com tanta recolaria...
— A Belém! A Belém de Judá! Ver o Infante!
— Eia pois, que é nascido?
— Entre as bestas, vós o dizeis! — respondeu o criador do
bezerro.
E gritaram em coro:
— A Belém! Ao Deus Menino!
Então um cego como o Pacheco tirou a rabeca do sovaco; Jé
António enroscou o clarinete; Jé Cardoso Patinho escorreu o cuspo dos pistons,
e, levando o bocal do cornetim ao bigode, armaram ali logo um Pezinho que nem o
do bodo das Tronqueiras. Uma rapariga, que levava um açafate de pão alvo e
tinha uma garganta de prata, botou a sua cantiga:
— Ó meu Menino Jesus,
Que é da vossa camisinha?
— Ficou-me lá em Belém
No colo duma freirinha.
Melchior, Gaspar e o outro rei puxaram das suas patronas e atiraram punhados de
dinheirama em prata e em cobre ao povo. Os pastores bradaram, à uma:
— Vivam Suas Majestades! A Belém! A Belém!
Estavam já todos no presépio. Ali parou a estrela e
derreteu-se no céu azul, azul que eu sei cá!... Da banda de fora do portão as
três mulas roíam erva, com os estribos encruzados nos albardões, dando ao rabo.
Quando, muito contentinhos, os Reis começaram a bailar como quem se despede
deste mundo. Já tinham dado os presentes: o oiro, o incenso e a mirra. Os
pastores já tinham entregado as suas ofertas. E todos, de joelhos, tinham
adorado o Menino com tanto fervor, tão de dentro, cheios de tanta alegria, que
a vaca e a burrinha em Tabernáculo largaram-se a berrar e a zurrar de puro
contentamento.
Os velhos Reis dançavam, dançavam!... Era um bater de sapatilhas
— taquetã! taquetã — que... ai! ricas solas da minha alma! iam-se os pontos e
as palmilhas... Os mantos régios caíam para trás das costas, rasgados. As
coroas ficaram de banda; e mesmo uma delas, a do velho Gaspar da Ladeira, rolou
para o pé da bezerra, que a enfiou nos galhinhos, a inocente!
Desempenados e altos, de trunfas nas traves do tecto, os Reis manobravam de
ceptro com toda a delicadeza.
(Eu: — E depois? E depois?!
A Avó: — Espera, homem! Lá vamos...)
Tangia cada um no seu tacho (coisa, talvez, da
vizinhança...) com um rebate de gozo que zoava muito longe e se sumia como o
eco que tu tiras a gritar à porta da cisterna. E assim estiveram os três reis
dançando e fazendo matinada, sem maldade nem sacrilégio, que nem os foliões da
Serra em dia de coroação.
Nisto, o homem que levava a cambada de peixe ao Menino, e
que parecia ali o nosso Vesgante, vai, atreve-se e diz:
— Saberão Vossas Reais Majestades que uma coisa assim, nunca
eu vi! Em panelas velhas tocarem os Reis!... O quê...!?
Melchior, Baltasar e o nosso Gaspar da Ladeira fizeram-se
muito vermelhos, todos de pé no ar. Então, por milagre de Jesus Infante, cada
tatarino daqueles se tornou numa campainha de oiro, a badalar, a badalar... E
os Reis voltaram de rota batida a suas terras e palácios, furtando a volta a
Herodes Antipas, o grandessíssimo carrasco, que queria degolar o Menino Jesus para
nos não salvar!
Quando a Avó se calou, fiquei escoroçoado:
— E o resto, Avó? E o resto?...
— Acabou-se o que era doce e o que era mel derramou-se... —
disse ela apanhando a tigela das sopas vazia. Saltei-lhe do colo e fui para a
rua. Os meus amigalhaços jogavam o eixo-rebaldeixo. Iam nas cinco» («— Na rua
da Palha perdi um brinco»}.
— Ala às seis! — gritou Tiàzé saltando o costado a... Ala Branco.
Aproveitei a deixa e lá me estanhei também, glosando:
— Panelas velhas não tocam os Reis![...]"
Vitorino Nemésio