«A Visita», por Zélia Gattai.
«A Visita»
Conto de Zélia Gattai
1023- «A VISITA»
Graças a uma das visitas de Vinicius à nossa casa, salvou-se
a série de canções para crianças, de sua autoria:
À beira da piscina, o inseparável copo de uísque ao lado,
violão em punho, Vinicius cantava.
Faço um parênteses para me desculpar. Na afobação de querer
contar logo a história que me veio à memória — como já devem ter percebido, não
tenho anotações, tiro tudo da cachola à medida que as lembranças chegam —
esqueci-me de pedir licença para, ainda uma vez, avançar no tempo. Peço agora,
pois devo explicar como foi que as músicas infantis de Vinicius de Moraes se
salvaram. Avanço tanto, tanto, que falo até de meus netos, os três que existiam
na época: Mariana, Bruno e Maria João.
Nessa ocasião, o amor de Vinicius, sua mulher, era uma
baiana, Gessy Gesse, a quem devemos a vinda do poeta à Bahia, onde até uma casa
ele construiu, disposto a ancorar entre o mar e os coqueiros de Itapuã.
Estávamos à beira da piscina e Vinicius cantava — como foi
dito — quando chegaram meus três netos.
Eu agora vou cantar umas musiquinhas para vocês, disse
Vinicius às crianças, e começou: Era uma casa muito engraçada, não tinha teto,
não tinha nada… Espera aí, interrompi, vou buscar um gravador. Assim dizendo
saí ligeiro. Voltei em seguida, gravadorzinho ligado e ele recomeçou: Lá vem o
pato, pato aqui, pato acolá… Cantou todas as canções, intercalando entre elas
uma chama, da: Esta é para Marianinha!… Esta é para Bruninho!… Esta é para
Maria João!… Encantadas, as crianças ouviam as músicas pela primeira vez, pois
elas ainda não haviam sido gravadas naquela ocasião. Ao saber que não restara
nenhuma gravação delas após a morte de Vinicius, entreguei meu cassete à Gilda
Queiroz Matoso, última e amada companheira do poeta até seus derradeiros
momentos. Gravação precária, porém a única que restou e é a que se ouve até
hoje.
Vinicius tornou-se íntimo de Calasans Neto e Auta Rosa,
adorava o casal, alugou casa em Itapuã antes de construir a própria, queria
ficar perto deles.
A rua da Amoreira, onde moravam — e moram até hoje —
Calasans e Auta Rosa, era um horror: lama, buraqueira e, como se isso não
bastasse, havia esgoto a céu aberto.
Frequentador assíduo da casa, inconformado com a situação
dessa rua, Vinicius não teve dúvida, redigiu uma petição em versos ao prefeito
de Salvador. No poema, verdadeiro primor, pedia-lhe atenção e carinho para a
rua.
Combinou com Jorge, que conseguiu a publicação do
poema-petição na primeira página do jornal A Tarde.
Prefeito Clériston Andrade
A quem ainda não conheço:
Quero tomar a liberdade
Que eu nem sequer sei se mereço
De vir pedir, lhe, em causa justa
Um obséquio que, sem favor
Muito honraria (e pouco custa!)
Ao Prefeito de Salvador.
Existe ali no Principado
Livre e Autónomo de Itapuã
Uma ruazinha que, sem embargo
Pertence à sua jurisdição
Uma rua não sem poesia
E cujo título é dar teto
A uma das glórias da Bahia:
O gravador Calasans Neto.
Dizer do estado dessa ruela
(Da Amoreira) eu não arrisco
Porque sem esgotos, correm nela
Rios de … — Valha-me o asterisco!
E isso é uma pena, Senhor Prefeito
Pois Calasans e sua gravura
Têm cada dia mais procura
De fato como de direito:
O que constrange os visitantes
Com boa margem de estrangeiros
A, entre gravuras fascinantes
Ver quadros nada lisonjeiros.
Calce essa rua, Senhor Alcaide
E eu lhe garanto que algum dia
Pro domo sua, esta Cidade
O há de lembrar com mais valia.
Na expectativa de que acorde
Um novo “Cumpra, se” , sem mais
Aqui se assina, muito ex-corde
O seu, Vinicius de Moraes.
Tiro e queda, a resposta do prefeito foi imediata, em pouco
tempo a rua de Auta e Calá foi consertada e asfaltada e, diga-se de passagem,
ela foi, por algum tempo, a única rua asfaltada das imediações.
Naqueles tempos, a decantada beleza de Itapuã se resumia no
mar, nas praias, nos coqueirais e nas canções de Dorival Caymmi.
Para festejar o acontecimento, Jenner Augusto e Luísa
ofereceram um almoço ao qual Vinicius compareceu vestido de gari da limpeza
pública, levando para Calá e Auta a petição, enquadrada.
Zélia Gattai