«O Espelho de Lida Sal», por Miguel Angel Asturias.
«O Espelho de Lida Sal»
O Sentido da Visão/ Juan Dò
1112- «O ESPELHO DE LIDA SAL»
I
Quando o inverno declina os rios vão ficando sem fôlego. Ao
brando deslizar das correntes sucede o silêncio seco, o silêncio da sede, o
silêncio das secas, o silêncio das lâminas de água imobilizada entre os bancos
de areia, o silêncio das árvores que o calor e o vento tostado do verão quente
fazem suar folhas, o silêncio dos campos onde os rústicos se amodorram nus e
sem sono. Nem moscas. Atmosfera irrespirável. O sol cortante, a terra como um
forno de olaria aceso. Os gados extenuados espantam o calor com o rabo enquanto
buscam a sombra dos abacateiros. Através da erva seca e escassa, coelhos
sedentos, serpentes surdas a procura de água e aves que mal erguem o voo.
Inútil dizer quanto os olhos se matam diante de tanta terra
rasa. Para as quatro bandas da distância a vista perde-se no horizonte. Só
olhando muito bem se divisam pequenos grupos de árvores, campos de terras
revolvidas e caminhos desses que se formam de tanto e tanto trilhados de passos
e que vão por ali adiante, até ranchos onde o homem encontra o contento do
lume, a mulher, os filhos, currais onde a vida procura o alimento, como galinha
insaciável, o prazer dos dias.
Por uma dessas desesperadas horas de calor e sufocação, D.
Petronila voltou para casa. D. Petronila Ângela, a quem alguns nomeavam assim,
ao passo que outros lhe chamavam Petrángela, mulher de D. Filipe Alvizures, mãe
dum rapaz e grávida de há meses. D. Petronila Ângela finge que não faz nada,
para que seu marido não a repreenda por fazer coisas no estado em que está, e
com esse ar de nada fazer mantém a casa em ordem, tudo como deve ser: roupa
limpa nas camas, asseio nos quartos, pátios e corredores, olho na cozinha, mãos
na costura e ao forno, idas e vindas aqui e ali: ao galinheiro, à quadra onde
se mói o milho ou o cacau, a arrecadação das coisas velhas, ao curral, à horta,
à rouparia, à despensa, à toda a parte.
Seu senhor marido ralha quando a vê ocupada; quer que esteja
sentada ou deitada sempre sem mexer uma palha; mas isso é mau, pois os filhos
saem preguiçosos. Seu senhor marido, Filipe Alvizures, é um homem interiormente
imenso — o que o torna lento de movimentos —, e por fora sempre metido em
espaçosas roupas de cetim. Ignora a aritmética, mas sabe somar rapidamente
servindo-se de grãos de milho, e ainda sabe menos de letras, mas e inútil saber
ler, como bem sabem todos esses que nunca lêem. De resto, se D. Petronila diz
que ele é imenso por dentro é porque lhe custa juntar duas palavras. Dir-se-ia
que as vai buscar uma a um ponto a outro muito mais além. Dentro e fora de si,
o senhor Filipe tem onde se mover muito à sua vontade, sem ter que fazer nada
de afogadilho, reflectindo com toda calma. E quando chegue a sua hora —
«Queira Deus que daqui a muitos e bons!», diz lá consigo Petrángela—, se a
morte lhe não colhe o passo não poderá levá-lo.
A força do sol reparte-se pela casa toda. Um sol com fome,
que sabe que são horas de almoço. Mas sob os tectos de telha de barro está mais
fresco. Contra seu costume, Filipinho, o filho mais velho, chegou primeiro que
seu pai, saltou a cavalo por cima do portão de trancas —só duas estavam
atravessadas: as mais altas, as mais perigosas — e, entre o alvoroço das
galinhas, o latir dos cães e o esvoaçar dos pombos, depois dum ir e vir a
velocidade de relâmpago, imobilizou o cavalo, cujas ferraduras arrancavam
faíscas à calçada do pátio, e soltou uma gargalhada.
— Que coisa sem graça nenhuma, Filipinho... já sabia que
eras tu!
À mãe não agradavam nada semelhantes Áfricas. Os olhos do
cavalo brilhavam, espumava-lhe a boca. Filipinho desmontou e foi abraçar e
acarinhar D. Petronila.
Daí a pouco chegava o pai, montado no Samaritano, um
macho negro assim chamado devido a sua mansidão. Arreou-se da montada com mil e
um vagares, para afastar as trancas do portal que Filipinho vencera de salto,
pô-las de novo e entrou sem fazer bulha que não a do toque-toque dos cascos do Samaritano no
empedrado fronteiro ao apeadeiro.
Almoçaram de boca calada, vendo-se como se não se vissem. O
senhor Filipe via sua mulher, esta seu filho, e o filho seus pais, que devoravam
tortilhas rasgavam a carne duma perna de frango com os dentes afiados, bebiam
água a grandes sorvos, para que lhes passasse da garganta a massa duma saborosa
papa de mandioca vermelha.
– Deus lhe pague, senhor pai...
O almoço findou, como sempre, sem muitas palavras, entre o
silêncio de todos e as olhadelas de Petrángela à cara e ao movimento
das mãos de seu marido, para saber quando ele terminara um prato e pedir a
criada que trouxesse o seguinte.
Filipinho, depois de dar graças a seu pai, aproximou-se da
mãe, os braços cruzados sobre o peito, a cabeça baixa, e repetiu:
— Deus lhe pague, senhora mãe...
E tudo terminou na forma do costume: D. Filipe na sua rede,
a mulher numa cadeira de balanço, Filipinho escarranchado num banco, como se
continuasse a cavalo. Cada qual com seus pensamentos. O senhor Filipe fuma.
Filipinho não se atreve a fumar diante de seu pai, mas vão-se-lhe os olhos
atrás do fumo, enquanto Petrángela se balança apoiando-se agora e logo no chão
com um e outro dos seus pés pequeninos.
II
Lida Sal, uma mulata mais torneada que um pião, era toda
ouvidos, não para o que estava fazendo, mas para a conversa do cego Benito
Jojón com um tal Falutério, mordomo da festa de Nossa Senhora do Carmo. O cego
e Falutério tinham acabado de comer e estavam para abalar. Isto ajudava a que
Lida Sal pudesse escutar o que diziam. Os lavadouros de pratos e outros
utensílios sujos ficavam quase ao pé da porta que a casa de pasto tinha sobre a
rua.
– Os Perfectantes — dizia o cego, ensaiando gestos
como se arrancasse das rugas do rosto incomodas teias de aranha— são os
mágicos... Então, como explicar que não se encontrem candidatas, tanto mais que
agora os homens andam tão ariscos? Sim, amigo Falutério, há poucas bodas e
muitos baptismos, o que não está bem. Muito solteirão com cria, muito solteirão
com cria...
– Que quer você? Desculpe-me a franqueza... mas se peço a
sua opinião é para estar seguro, quando falar com os outros membros da
Confraria da Santíssima Virgem. A festa não tarda, e se não há mulheres que se
encarreguem das fardas dos Perfectantes então vai ser como o ano passado:
sem mágicos...
– Falar não custa, Falutério, fazer é que dá trabalho. Se me
fazem a caridade de deixar que eu me ocupe de vestir os Perfectantes, bem
pode ser que eu encontre candidatas. Há por ai muita mulher casadoira,
Falutério, e mulher em idade de arranjar marido.
– É difícil, Benito, é difícil. Ideias de outros tempos.
Hoje em dia, com o que se sabe, quem vai lá acreditar em semelhantes bobagens?!
Da minha parte, e da parte todos os da comissão dos festejos da padroeira,
creio não haver nenhum inconveniente em lhe dar, já que é necessitado e não
pode trabalhar por ser cego, o encargo de enfeitar os Perfectantes.
– Sim, sim, deixem-me fazê-lo e assim não se acabarão as
coisas de outros tempos.
– Vou-me embora, deixo-o agora. E tenha como certo o
oferecido.
– Tomo-lhe a palavra, sim senhor, tomo-lhe a palavra... E cá
me vou também, a tratar disso, com a ajuda de Deus
A mão fria e ensaboada de Lida Sal abandonou o prato que
estava lavando e pousou no braço do cego, na manga do seu casaco, que de tão
remendado era todo ele um remendo. Benito Jojón cedeu ao gesto afectuoso, deteve
o passo, pois se dirigia para sua casa, ou seja para a praça do povoado, e
perguntou quem o retinha.
– Sou eu, Lida Sal, a rapariga que lava os pratos aqui na
casa de pasto.
– Sim, filha. Mas que queres de mim ?
– Que me dê um conselho novo...
– Ah!, ah! És então das que acreditam que ha conselhos
velhos...
– E é mesmo por isso que o quero novo. Um conselho que
invente só para mim, que não tenha dado a nenhuma outra, que nem sequer o tenha
pensado. Novo...
– Vejamos, vejamos se posso...
– Trata-se, como vossemecê já sabe...
– Não, não sei nada...
– É que eu estou. como devo dizer ?, que eu estou,.. um
bocado embeiçada por um homem, e ele nem sequer olha para mim...
– É solteiro?
– Sim, solteiro, bem jeitoso, rico... —suspirou Lida Sal. —
Mas como é que vai reparar em mim, que apenas lavo louça, se ele é uma grande
coisa?...
– Não digas mais nada. Sei o que queres, mas como me
disseste que não passas duma criada que lava louça, não vejo como te arranjarás
para pagar a esmola duma das fardas dos Perfectantes. São coisas muito
caras...
– Por ai não se aflija. Tenho algum dinheirinho, se não é
assim muitíssimo o que se tem que dar de esmola. O que eu quero saber e se
vossemecê se compromete a dar-me uma dessas vestes mágicas e a ir ter com
aquele ingrato, para que ele a use no dia da padroeira. Que ele se vista
de Perfectante com o traje que eu lhe mande é o principal. O resto corre
por conta da magia.
– Mas, filha, s além de não ver não sei onde encontrar esse
tal senhor a quem tu queres e por quem te derretes? Quanto a este teu caso, sou
duas vezes cego...
Lida Sal inclinou-se até uma das grandes orelhas rugosas.
peludas e emporcalhadas do cego e disse-lhe:
– Em casa dos Alvizures.
– Ah!... Ah!...
– Filipinho Alvizures...
– Entendo, entendo... queres fazer um bom casamento...
– Não, por Deus! Lembre-se de que é cego e não pode ver
claro, se o que vê no meu amor e apenas o interesse!
– Então, se não é por interesse é porque o corpo te pede...
– Não seja bruto! Me pede a alma, porque se me pedisse o
corpo eu suaria quando o vejo, mas não suo, pelo contrario, fico como se não
fosse eu, a suspirar,
– Esta bem! Quantos anos tens?
– Vou fazer dezenove, mas não sei bem, talvez vinte. Eh!,
tire a mão dai... Cego, e mesmo assim, a botar a pata!
– É para me certificar, filhinha, para me certificar de como
estas de carnes...
– Vai a casa dos Alvizures?... Isso é o que me interessa!
– Hoje mesmo... Mas que é isto que me enfiaste no dedo? É um
anel?
– Um anel de ouro. Vale o que pesa...
– Que bom... que bom...
– Dou adiantado pelo do que tiver de pagar de esmola pela
farda de Perfectante.
– És pratica, menina. Mas olha que não posso, ir a casa dos
Alvizures sem saber sequer como te chamas...
– Lida Sal...
– Bonito nome, mas não é cristão. Vou lá onde me manda o teu
coração. Experimentaremos a magia. Como a estas horas as carroças do senhor
Filipe estão no mercado carregando e descarregando lenha, meto-me numa delas,
como já tenho feito outras vezes, e lá me terão de visita a em busca do Filipinho
III
O cego quis beijar a mão a D. Petronila Ângela, mas esta
retirou a tempo e o estalido dos lábios perdeu-se no vazio. Não era de
beijoquices, pela mesma razão que detestava os cães.
– A boca se fez para comer, para falar, para rezar, Jojón, e
não para lamber as pessoas. Veio à procura dos homens? Estão por ai, estendidos
nas redes. Me dê sua mão, que eu o levo, cuidado para não tropeçar. Mas que é
que o traz tão apressado? Felizmente, bem sabe, as carroças estão à sua
disposição e esta casa sempre aberta para você.
– Sim, Deus lhe pague, minha senhora, e se vem sem antes
avisar é porque o tempo corre e temos de nos adiantar para preparar bem a festa
de Nossa Senhora.
– Tem razão, já estamos quase em vésperas do grande dia...
Mas quem diria que a outra festa foi já há um ano.
– E agora estão fazendo preparativos que deixam a perder de
vista os do ano passado. A Senhora vai ver...
O senhor Filipe numa rede e Filipinho noutra, embalavam-se
enquanto o Sol ia declinando. O senhor Filipe fumava um tabaco que cheirava a
figos, e Filipinho, por respeito, resignava-se a ver formarem-se e
desfazerem-se as nuvens do fumo perfumado no ar tépido.
Petrángela aproximou-se deles conduzido Jojón pela mão e, já
quase ao pé das redes, anunciou-lhes que tinham visita.
– Não é uma visita —corrigiu o cego—, e um maçador...
– Os amigos nunca maçam — adiantou-se a dizer o senhor
Filipe enquanto botava fora da rede uma das pernas, curtas, para se sentar.
– Veio com os carreiros, Jojón? — perguntou Filipinho.
– Sim, menino, sim. Mas agora, se arranjei modo de vir, como
hei de ir e que não sei.
– Selo um cavalo e vou levá-lo — respondeu Filipinho, — Por
isso não esteja em cuidados...
– Senão, fica connosco...
– Ai, minha senhora, se eu fosse uma simples coisa ficava,
mas tenho boca, já sabe que uma boca a mais é sempre um incómodo!
O senhor Filipe entretanto apertou a mão do cego, tão cheia
de sombras duvidosas, e conduziu-o a uma cadeira que Filipinho trouxera.
– Vou lhe por um charuto na boca — disse o senhor Filipe.
– Não me peça licença, senhor; para dar um gosto não se pede
licença...
E já fumando a plenos pulmões Jojón continuou:
– Dizia-lhes eu que isto não era uma visita, mas uma maçada.
Assim mesmo, pura maçada. Venho com o encargo de saber se Filipinho quer ser
este ano o chefe dos Perfectantes.
– Isso é lá com ele— disse o senhor Filipe Alvizures,
fazendo sinais a Petrángela que se aproximasse, e, chegando-se ela, prendeu-a
pela cintura inabarcável só com um braço, para estarem juntos, atentos ao falar
do cego.
– Isso traz agua no bico... — reagiu Filipinho, expelindo um
jato de saliva que ficou a brilhar no chão.
Sempre que ficava nervoso cuspia assim.
– Não lhe ponho a faca aos peitos —aduziu Jojón. — Há tempo
para pensar bem no caso e resolver sem precipitação, desde que não demore
muitos dias, porque a festa esta à porta. E note, menino, que no caso de
aceitar tem de experimentar o traje, a ver se lhe cai bem e para que se lhe
cosam nas mangas os galões de Príncipe dos Perfectantes.
– Não me parece que ele tenha de estar com grandes
pensamentos — decidiu a executiva Petrángela. — Filipinho e afilhado de Nossa
Senhora do Carmo, e não vejo melhor maneira de lhe mostrar a sua devoção do que
participar na sua santa festa.
– Isso sim... — articulou Filipe filho.
– Então —interveio o pai procurando as palavras—, não tem
muito que pensar nem mais que falar. — E sempre sem encontrar como dizer as
coisas: — Viu que não deu passos em vão, senhor Benito ? E se agora, como
disseste, o vais levar a cavalo, na aldeia poderás experimentar os trajes,
a ver qual te fica melhor, se são precisos alguns arranjos.
– Agora trataremos dos galões de Príncipe — disse Jojón.
—Quanto ao traje, trago-o eu cá depois para que o prove, porque não o tenho
ainda.
– Seja...— aceitou Filipinho. —Para não perdermos tempo vou
ver se escolho um macho manso, antes que caia a noite.
– Espere ai, senhor apressado! —deteve-o a mãe.— Primeiro
que tudo, Jojón tem de tomar o seu chocolatezinho...
– Sim, sim, mãe, já sei, mas enquanto ele toma o seu chocolate
eu escolho o macho e aparelho-o. Faz-se tarde... — e foi saindo na direção dos
currais. — Faz-se tarde e escurece, se bem que para um cego seja o mesmo andar
de dia ou de noite... — continuou ele de si para consigo.
IV
A casa de pasto estava sem luz e silenciosa. À noite os
clientes eram escassos. A grande animação era ao meio-dia. Havia pois espaço e
desafogo mais que suficientes para que o cego, muito agarrado ao braço de
Filipinho Alvizures, entrasse e fosse sentar-se a uma das mesas, enquanto um par
de olhos fixava no moço as suas pupilas negras, cheias. duma luz de esperança.
– Tomam alguma coisa? — perguntou Lida Sal aproximando-se,
enquanto passava um pano sobre a velha mesa de madeira, gasta dos anos e das
intempéries.
– Duas cervejas — respondeu Filipinho — e, se há, dois pães
com carne.
A mulata sentia momentaneamente que o chão, única coisa
estável sob os seus pés, a não segurava. A custo dissimulava a sufocação. Cada
vez que lhe era possível roçava os braços nus e os seios firmes, trementes sob
a blusa, pelos ombros de Filipe. Pretextos para se aproximar não lhe faltavam:
os copos, a espuma que extravasava do copo do cego, os pratos com os pães com
carne.
E vossemecê — perguntou Alvizures ao cego —, onde dorme?
Tenho de ir embora e queria deixá-lo lá...
– Por aqui. Aqui mesmo na casa de pasto dão-me as vezes
pousada, não é, Lida Sal?
– Sim, sim... — foi tudo o que esta pôde dizer, e mais
custoso lhe foi ainda articular o preço das cervejas e dos sanduiches.
No oco da sua mão em concha, em que sentia o seu coração,
apertou as moedinhas quentes que lhe entregou Alvizures, quentes de terem
estado na algibeira dele, em contacto com a sua pessoa, e sem poder resistir
mais levou-as aos lábios e beijou-as. Depois de as beijar passou-as pelo rosto
e deixou-as cair por entre os seios.
Pela escuridão sem olhos, uma dessas escuridões das noites
que começam e acabam negras, cor de ardósia, trotava o cavalo de Filipinho
Alvizures, que se afastava seguido do macho, mais molengo no passo, em que
viera montado o cego.
Ah!, como era difícil falar em meio de tantas coisas tão
caladas!
– Quieto, ó cego —murmurou Lida Sal, de maneira nenhuma
zangada, tal a festa que lhe ia na alma. — Aí não se mexe...
– A mão quer apertar-te, cabeça oca, para que sintas o anel
que hoje me deste, aqui no meu dedo, já como coisa minha, que bastante trabalho
me custou a ganhá-lo: trabalho e manhã. Amanhã terás cá a farda de Perfectante que
o Filipinho usará na festa.
– E que vou eu fazer?...
– Tu, filha, tens de dormir com ela vestida bastantes
noites, para que a deixes impregnada da tua magia. Durante o sono tornamo-nos
mágicos. Assim, logo que ele a vista, para tomar parte na festa, há-de sentir o
encantamento e procurar-te, já não poderá viver sem te ver.
Lida Sal sentiu-se vacilar. A cabeça andava-lhe a roda. Com
uma mão firmou-se as costas duma cadeira, com a outra apoiou-se a mesa, e um
soluço teimoso de soltar-se chegou-lhe aos lábios.
– Choras?
– Não! Não!... Sim! Sim!
– Choras ou não choras?
– Sim, de felicidade...
– Mas, és mesmo muito feliz?...
– Quieto, ó cego, quieto!
A teta quente da mulata saltou de sob a blusa ao tactear do
velho, enquanto ela sentia que as moedas com que lhe pagara Filipinho Alvizures
escorregavam dos seios para o ventre, tal como se o seu coração estivesse já a
soltar pedaços de metal fundido de que seriam feitas as moedas com que pagar a
Jojón o restante da esmola da farda mágica.
V
Não havia fantasia mais vistosa que o do Perfectante. Calção
de guarda suíço, couraça de arcanjo, jaqueta toureira. Botas, galões, franjas,
tudo dourado, abotoaduras e cordões de ouro, cores vivas e furta-cores,
lantejoulas, avelórios, penduricalhos de cristal com fulgores de pedras
preciosas. Os Perfectantes brilhavam como sois entre a mascarada que
acompanhava a Senhora do Carmo, durante a procissão que percorria todas as ruas
da povoação, as principais e as humildes, pois ninguém admitiria que a Grande
Senhora não passasse à sua porta.
O senhor Filipe moveu a cabeça dum lado ao outro. Pensando
bem, não lhe agradava por aí além que seu filho vestisse aqueles ouropéis,
porém como opor-se teria sido ferir os sentimentos religiosos de Petrángela,
mais espevitados agora que estava grávida, dissimulou o desagrado com uma piada
que a consorte achou de mau gosto.
– Tao embeiçado estava eu pela tua senhora mãe quando nos
casamos, Filipinho, que diziam por ai que ela tinha dormido sete noites
seguidas com o traje o fato que eu sai de Perfectante, haverá isso uns vinte e
sete, trinta anos talvez...
- Teu pai nunca saiu de Perfectante, filho, não o
acredites!... -contradisse-o ela, temerosa e contristada.
– Pois , se é assim, não te serviu de nada dormires
com o traje...
Alvizures pôs-se a rir, ele que era homem de poucos risos,
não porque não gostasse de rir, mas porque desde que e casou dizia: “O riso
deve ficar à porta da igreja, onde um homem se casa, onde começa o seu
calvário..”
– Essa das artes de magia para. que te casasses comigo é
pura invenção tua... Se saíste de Perfectante foi por causa de
qualquer outra...
– Outra?... Nem em vinte léguas de roda... – e riu, riu
muito bem disposto, convidou Filipinho a rir também: -" Ria, filho, ria,
que ainda és solteiro. O riso é um privilégio dos solteiros. Quando te casares,
quando uma rapariga dormir com a farda de Perfectante que te caiba usar na
festa, adeus riso para sempre! Nós, os casados, não rimos, fazemos que rimos, o
que não é o mesmo... O riso é atributo dos solteiros... dos solteiros novos,
porque os solteirões mais velhos, também não riem, arreganham os
dentes...
– Teu pai confunde tudo, filho... -reagiu Petrángela. – O
riso é dos novos, sejam casados ou solteiros, e não dos velhos. Mas ele está
velho, que queres?, a velhice entrou com ele...
Petrángela não pregou olho nessa noite. Assomavam-lhe
à consciência aquelas noites em que na verdade dormiu com traje de
Perfectante que o senhor Filipe Alvizures vestiu na festa de trinta anos atrás.
Tivera que contradizê-lo diante do filho, porque há segredos que nem aos filhos
se revelam. Não segredos: intimidades, pequenas intimidades. Não amanhecia.
Sentiu frio. Aconchegou os pés. Fechou as pálpebras. Impossível tornar a
adormecer. O sono andava ausente dos seus olhos, temia que àquela hora, em
vésperas da festa de Nossa Senhora do Carmo, alguma moça estivesse a dormir com
o traje de Perfectante destinado a Filipinho, para, o impregnar do seu
suor mágico e de tal arte o seduzir.
– Ai, Senhora do Céu, Virgem Santíssima!... -balbuciava. -
Perdoai os meus temores, as minhas superstições, sei que é uma tolice... que
tudo isto são crendices, crendices sem fundamento... mas é meu filho... meu
filho!
O certo seria evitar que ele saísse de Perfectante. Mas
como evitá-lo, se tinha aceitado e ia figurar de príncipe dos Perfectantes?
Seria desarranjar tudo, e depois não tinha sido ela, diante do marido, quem
dispusera que Filipinho aceitasse?
Não amanhecia. Não cantavam os galos. Tinha a boca seca. A
cabeleira, de tanto buscar o sono às voltas no travesseiro, emaranhara-se-lhe
sobre o rosto.
– Que mulher, Deus meu!, que mulher estará a dormir com o
traje de Perfectante que levaria o meu Filipinho?
VI
Lida Sal, mais pómulos que olhos de dia, mas de noite mais
olhos que pómulos, divagava as pupilas dum lado ao outro do quarto em que
dormia, e ao afirmar-se de que estava só, que só a grande escuridão era sua
companheira, a porta bem trancada, a porta e um janelo que dava para a dispensa
ainda mais em cegueira, desnudava-se toda, passava as mãos ásperas da esfrega
ao longo do corpo esbelto e, seca a garganta peia angústia, húmidos os olhos,
as coxas trementes, enfiava o traje de Perfectante e deitava-se. Mas,
mais que o sono, era uma sonolência que lhe ia paralisando o corpo, sonolência
e cansaço que a não impediam de em voz baixa, meio adormecida, conversar com o
tecido, confidenciando a cada um dos fios coloridos, das lantejoulas, aos
avelórios, aos ouros, os seus sentimentos amorosos.
Uma noite, porém, não o vestiu. Deixou-o enrodilhado debaixo
do travesseiro, triste porque não tinha um espelho de corpo inteiro onde se ver
com ele vestido. Não era porque lhe importasse saber como lhe ficava, se curto,
se comprido, largo ou apertado, mas porque era um dos primeiros rituais mágicos
vesti-lo e vê-lo vestido diante dum grande espelho. Pouco a pouco foi-o tirando
de sob o travesseiro, mangas, pernas, costas, peito, para o acariciar contra o
rosto, pousar-lhe em cima a fronte com seus pensamentos, cobri-lo de miúdos
beijos...
Manhãzinha cedo chegou Jojón em cata do seu desjejum. Desde
que andava em conluios com ela comia quanto lhe apetecia, sempre as escondidas
da patroa, que nesses dias pouco parava na casa de pasto, pois a azafamavam os
preparativos para poder dar despacho à clientela habitual e à gente de fora
durante os dias da festa.
– Coitado de quem é pobre! – queixou-se a mulata' – Não
tenho um espelho grande em que me veja...
– E isso é de toda a urgência - respondeu o cego – porque
por ai pode falhar-te a magia...
– Mas que fazer? Só se eu me for meter, como uma ladra, numa
casa rica, à meia-noite, vestida de Perfectante. Estou desesperada.
Desde ontem à noite estou que não sei que hei de fazer. Aconselhe-me...
– É o que não sei... A magia tem as suas consistências...
– Não entendo o que quer dizer...
– Sim, porque a magia consiste nisto ou consiste naquilo,
mas sempre consiste em alguma coisa, e, neste caso, consiste em que uma mulher
se deve vestir de Perfectante e ver-se a um espelho de corpo inteiro.
– Mas vossemecê, sendo cego, como sabe de espelhos?...
– Não sou cego de nascença, pequena. Já tinha os meus anos
quando perdi a vista, por causa dum mal purulento que primeiro me comeu as
pálpebras e depois se me meteu nos olhos.
– Sim nas casas grandes... como a dos Alvizures... há
espelhos desses...
– Diz-se que há um muito bom lá em casa deles e até se
conta... Não, não é brincadeira... Bem, talvez com isto te possa dar uma
esperança. Então vou te contar a coisa, não por mexeriquice. Sirva-me isto de
desculpa para quando fores sua nora... Conta-se que como a mãe do Filipinho, D.
Petrángela, não teve espelho onde se visse quando enfeitiçou o marido, no dia
em que se casou levava o traje de Perfectante por baixo do vestido de
noiva e que, ao dizer- lhe o senhor Filipe que se despisse, tirou o vestido
branco e, em vez de aparecer nua, mostrou-se em traje de Perfectante, só para
cumprir o ritual, para dar satisfação à magia...
– Os casados põem-se assim nus?
– Sim pequena...
– Então vossemecê foi casado?
– Sim, e como o mal ainda não me tinha dado cabo dos olhos
pude ver minha mulher...
– Vestida de Perfectante...
– Não, filhinha: como Eva, em couro...
Lida Sal retirava a tigela em que o cego acabara de tomar
café com leite e sacudia as migalhas de pão de cima da mesa. Não aparecesse por
ali a patroa.
– Não sei onde, mas tens de encontrar um espelho para te
veres da cabeça aos pés vestida de Perfectante... – foram as últimas palavras
do cego.
E desta vez esqueceu-se de a prevenir que o prazo para
devolver o fato se ia aproximando; a festa estava à porta e ele tinha de o
levar a casa dos Alvizures.
VII
Estrelas quase afogadas na claridade da Lua, árvores dum
verde sombrio, currais cheirosos a leite e orvalho, montões de feno em medas
pelos campos, que à lua-cheia mais amarelos pareciam. A tarde tardara em dar
lugar à noite. Fora-se afilando até não ser senão um reflexo cortante no ponto
onde o céu já se pintava de estrelas. E nesse fio cortante azulado,
avermelhado, rosa, verde e violeta da tarde fixava Lida Sal os
olhos, pensando que era chegado o prazo para devolver a farda.
– Amanhã é o último dia que te deixo – preveniu-a Jojón – Se
não a entrego à tempo está tudo estragado...
– Sim, sim, não fique preocupado, amanhã a entrego é que
hoje vou ver-me ao espelho...
– Ao espelho dos teus sonhos, pequena, porque não vejo
onde...
O fio luminoso da tarde ficou nas pupilas de Lida Sal como a
frincha dum impossível, como urna frincha por onde pudesse abarcar o céu.
– Sevandija maldita:... -berrou ao seu alheamento a dona da
locanda. - Não tens vergonha, com uma data de louça por lavar! Desde há dias
que me andas para aqui e para ali como uma doida, e o trabalho por fazer.
A mulata deixou que lhe arrepelasse a grenha e beliscasse os
braços, sem responder. Passado um instante, como por encanto, a tormenta amainou.
Mas era pior. Porque ao palavrório dos insultos seguiram-se as mil e uma
lamentações e recomendações do costume.
– Temos a festa à porta e a menina nem sequer me pediu que
lhe mandasse fazer roupa nova. Do que tenho de teu devias comprar um vestido,
uns sapatos, umas meias. Não vais atrever-te a aparecer na igreja e na
procissão como uma maria-ninguém. É uma vergonha! Que vão pensar de mim, tua
patroa? Que te mato à fome ou que fico com o teu ordenado!
– Pois, se lhe parece, amanhã dá-me dinheiro e eu vou
comprar qualquer coisa.
– Está visto, menina, temos de agradar uns aos outros' Tu
agradas-me fazendo as coisas como deve ser, eu agrado-te comprando-te o que te
faz falta. E ainda mais que és nova e não és feia. Quem te diz que entre os que
vêm vender gado à feira não te aparece um bom partido?
Lida Sal ouvia-a, mas não entendia nada. Esfregava os
trastes, pensando, matutando, no que imaginara ante a última réstia da tarde. O
que mais custava era esfregar as frigideiras e os tachos. Que maçada! Tinha de raspá-los
à força de pedra-pomes, até lhes safar as gorduras do fundo, e em seguida, por
fora, era outra pura guerra com a fuligem também gordurosa.
O esplendor da Lua não permitia pensar que era de noite.
Dir-se-ia que somente o dia esfriara, mas que continuava na mesma.
– Não fica longe - disse para si mesmo, dando forma verbal
ao que pensava – e é um bocadão de água, quase uma lagoazinha.
Não demorou muito no quarto. Tinha de estar de volta ao
amanhecer e entregar o traje de Perfectante ao cego, para que o
levasse a casa dos Alvizures... Ah!, mas antes tinha de o ver ela no seu corpo,
a um grande espelho, pois a magia tem as suas consistências...
Ao princípio, o encontrar-se em pleno campo intimidou-a. Mas
logo foi familiarizando os olhos com os arvoredos, as pedras, as sombras. Via
tudo tão claramente por onde ia que lhe pareceu caminhar à luz dum dia
submerso. Ninguém a encontrou com aquele estranho traje, caso contrário, quem
quer que fosse, teria largado a correr, como ante uma visão diabólica. Teve medo,
medo de ser uma visão de fogo, uma tocha de lantejoulas em chamas, um rasto de
avelórios, de chispas de água cristalizadas numa só pedra preciosa com forma
humana, quando chegou à beira do lago para se debruçar sobre ele vestida com a
farda que Filipinho Alvizures usaria na festa.
Da beira boscosa dum barranco que cheirava a desabamentos
por entre raízes desenterradas e pedras removidas contemplou o vasto espelho
verde, azul e fundo, com seu rendilhado de nuvens baixas, raios de Lua e
sonhadoras obscuridades. Pareceu-lhe outra. Seria mesmo ela? Era Lida Sal ? A
mulata que esfregava os tachos na casa de pasto seria a rapariga que descia por
aquele caminho naquela noite, àquele luar, com aqueles trajes de lume e
orvalho?
De um e de outro lado roçavam-lhe os ombros as pestanas dos
pinheiros, flores sonâmbulas de perfume adormecido molhavam lhe o cabelo e o
rosto com doces beijos húmidos.
– Deixem-me passar! Deixem-me passar! ... – dizia avançando
por entre moitas de gengibres, perfumados, enlouquecedores.
– Deixem-me passar! Deixem-me passar !... - repetia ao
deixar atrás rochas e pedras gigantescas tombadas do céu, se aerólitos eram, ou
da boca dum vulcão num recente cataclismo, se da terra eram.
– Deixem-me passar! Deixem-me passar!... -dizia à
cascatas...
– Afastem-se, deixem passar a formosura! -dizia aos regatos
e arroios que também iam como ela ver-se ao grande espelho...
– Ah! Ah! Ele bebe-vos –dizia lhes-, mas a mim não me
beberá, só me vai ver, vai ver-me vestida de Perfectante, para que se
cumpram todas as consistências da magia.
Não corria vento. Luar e água. Lida Sal arrimou-se a uma
árvore que dormia chorando, mas logo se afastou horrorizada, que talvez fosse
de mau agoiro debruçar-se para o espelho juntamente com uma árvore que chorava
adormecida.
Duma ponta a outra da margem foi procurando sítio onde
pudesse ver-se em corpo inteiro. Não conseguia a sua imagem completa. Em corpo
inteiro. Só se subisse a uma das altas pedras da outra margem.
– Se o cego me visse.. . - mas, que tolice !, como poderia
vê-la um cego...
Sim, tinha dito uma tolice, quem tinha de ver-se ao espelho
era ela, ver-se dos pés à cabeça.
Trepou. Estava agora em cima dum rochedo de basalto
contemplando-se na água.
Onde encontrar um espelho melhor?
Avançou um pé para a extremidade do pedregulho, a admirar o
seu belo traje - lantejoulas, avelórios, pedras luminosas, galões, franjas e
cordões de ouro -, e em seguida o outro pé, para se ver ainda melhor; e já não
pôde deter-se, o seu corpo baqueou contra a própria imagem, um choque de que
n5o ficou nem a imagem nem o corpo.
Mas voltou à superfície. Procurava salvar-se... as mãos...
as bolhas... o afogamento... voltara a ser a mulata que lutava pelo
inalcançável... a margem... agora o inalcançável era a margem...
Duas imensas angústias...
E foi
o que fechou por último, as imensas angústias dos seus olhos a verem cada vez
mais longe a margem do pequeno lago, desde então chamado o “Espelho de Lida Sal”.
Quando chove e há luar, o seu cadáver flutua. Viram-no as
rochas. Viram-no os salgueiros que choram folhas e reflexos. Os veados e os
coelhos viram-no. As toupeiras telegrafam a noticia de que a viram, com a
palpitação dos seus coraçõezinhos de terra, antes de volverem às suas
escuridões.
Redes de chuva de prata pestanejante arrancam a sua imagem
do espelho e passeiam-na vestido de Perfectante pela superfície da
água, que a sonha, luminosa e ausente.
Miguel Angel Asturias