«O Peru de Natal», por Alberto Moravia.
«O Peru de Natal»
Peru de Natal/ Carlos Orduña
1122- «O PERU DE NATAL»
No dia de Natal, quando o comerciante Policarpi-Curcio ouviu no telefone a
mulher pedindo-lhe que chegasse em casa pontualmente porque tinha peru,
alegrou-se muito, visto que, com o passar dos anos, não lhe restara outra
paixão a não ser a gula. Imensa porém foi sua surpresa quando, ao chegar em
casa por volta de meio-dia, encontrou o peru não na cozinha, enfiado no espeto
e girando lentamente sobre um fogo de carvão, mas na sala de visita. O peru,
vestido com elegância antiquada, com um paletó preto com debruns de seda,
calças em tecido xadrez preto e branco e colete cinza com botões de osso,
conversava com a filha de Curcio. A surpresa de Curcio ao encontrar o peru numa
atitude e num lugar tão insólitos foi tão grande que, após as apresentações,
aproveitando um momento de silêncio, ele não pôde deixar de inclinar-se para
frente e dizer com cortesia mas também com firmeza: "Com licença,
senhor... não sei se estou enganado... mas... mas me parece que o seu lugar não
deveria ser aqui... repito, não sei se estou enganado... mas... o seu lugar
deveria ser..." ia dizer "na panela", quando a mulher que, como
ela mesma dizia, conhecia o seu rebanho, pisou-lhe no pé; e Curcio, que sabia
por longa experiência o que significava aquele gesto, calou-se. A mulher,
então, fez-lhe um sinal e, arrastando-o para fora da sala, disse-lhe em voz
baixa e excitada que, pelo amor de Deus, não estragasse tudo. O peru era nobre,
rico e influente; enfim, um excelente partido; e já demonstrava um interesse
particular e evidentíssimo por Roseta; por acaso, com seus estúpidos
comentários, ele queria acabar com o casamento que estava quase para se
concretizar? Curcio desculpou-se com a mulher e jurou que não abriria mais a
boca. Quanto ao peru, a pergunta do anfitrião desavisado teve apenas o efeito
de fazê-lo pegar o monóculo e examinar o infeliz de cima a baixo. Logo depois
voltou a conversar com a filha de Curcio.
"Não adianta falar", pensava Curcio daí a pouco,
sentado à mesa, enquanto a mulher se desdobrava em cortesias com o peru,
"com um tipo como este, mais que dar-lhe a filha em casamento, a gente
gostaria de torcer-lhe o pescoço". Curcio estava irritado sobretudo com o
ar de superioridade e displicência que o peru assumia toda vez que lhe dirigia
a palavra. Curcio sabia muito bem que vinha, como se costuma dizer, do nada, e
que suas maneiras não eram tão elegantes como a mulher e a filha desejariam que
fossem. Mas ele trabalhara a vida toda e ganhara muito dinheiro, era essa a
razão pela qual não tinha tido tempo de cuidar da sua educação. O peru, ao
contrário, com toda aquela empáfia, não poderia dizer o mesmo. Belas maneiras,
sem dúvida, ares de grão-senhor, mas no final das contas, Curcio poderia jurar,
pouca substância. Outra coisa que irritava Curcio era a maneira com a qual o peru,
após ter dito alguma coisa espirituosa ou profunda, atirava a cabeça para trás,
enfiando o bico e os barbilhões na gravata preta de plastrão e estufando o
peito debaixo do colete. E finalmente o peru falava com a mulher de Curcio com
a mesma escolha cuidadosa de palavras e a mesma modulada preciosidade de acento
com que se dirigiria a uma duquesa. Mas Curcio enfurecia-se porque lhe parecia
perceber certa dose de ironia neste respeito excessivo. "Para a
panela", pensava, "para a panela...”
Contudo, essa antipatia de Curcio era mais do que compensada
pela enfatuação das duas mulheres, mãe e filha, pelo peru. A mulher de Curcio e
Roseta ficavam simplesmente suspensas aos lábios, ou melhor, aos barbilhões do
peru, que as fascinava com seus relatos incríveis de festas, divertimentos,
viagens, sucessos mundanos. A familiaridade respeitosa de um peru como aquele,
que tinha intimidade com a alta sociedade, envaidecia a mãe. Quanto a Roseta,
ela enrubescia, empalidecia, tremia e dirigia ao peru olhares ora suplicantes,
ora inflamados, ora lânguidos, ora assustados. Acontece que desde o início do
almoço o pé do peru, calçado numa antiquada mas elegante bota de camurça cinza
com botões de madrepérola, não parava um instante sequer de molestar a
sapatilha da moça.
Depois que o peru foi embora, houve uma discussão
violentíssima entre Curcio e a mulher. Curcio dizia que estava na hora de parar
com esses elegantões sofisticados e esnobes que, como todo mundo sabe, escondem
sob a arrogância um monte de trapaças. Ele tinha trabalhado a vida toda e não
se sentia inferior a nenhum peru deste mundo. A mulher respondia que este furor
era inútil; o peru nunca afirmou que era superior a ele; que bicho o tinha
mordido? Quanto a Roseta, tendo-se deitado como costumava fazer todo dia depois
do almoço, já estava sonhando com o peru. Via-o inclinado sobre ela que estava
deitada de costas, as asas em volta de seus ombros, o bico sobre seus lábios
entreabertos. 0 peru olha para ela carrancudo, e começa a estufar-se, a
estufar-se, enchendo o quarto com suas penas cinzentas; mas, embora seja imenso
ele parece leve ao colo de Roseta que suspira no sono e murmura: "Querido
peru".
Nos dias seguintes apesar da crescente e visível antipatia
de Curcio, o peru acabou se instalando na casa. Almoçava com eles; em seguida,
ia para a sala de visita com a filha e lá ficava até a hora do jantar. Os dois,
disse a mulher a Curcio, estavam praticamente noivos, embora o peru por motivos
de família não quisesse que fosse feito, por enquanto, o anúncio oficial.
"Belo genro", resmungava Curcio, “aceito um homem trabalhador,
simples, de bom coração, mas um peru..." Curcio, entrando em casa, podia
ver, através dos vidros da porta da sala, a graciosa cabeça da filha ao lado da
cabeça oca, feroz e estúpida do peru. Ele pensava que aquelas mãozinhas tão
brancas e miúdas podiam estar acariciando aqueles barbilhões vermelhos e
enrugados e sua antipatia aumentava.
Acontece que, mesmo continuando a cortejar Roseta, o peru
não se decidia a pedi-la em casamento. Até a mãe começava a ficar preocupada.
Se era um peru sério, disse ela um dia para a filha, devia apresentar-se aos
pais e pedi-la em casamento. Roseta, ao ouvir essas palavras, olhou assustada
para a mãe e não disse nada. Na realidade, o peru tinha conseguido desde os
primeiros dias obter da moça os extremos favores. E agora ela, não menos que a
mãe, estava ansiosa para que o peru regularizasse , por assim dizer, sua
situação.
Um dia Roseta recebeu o peru na sala com um rio de lágrimas.
Ela não podia viver daquela maneira, balbuciava entredentes, mentindo para si
mesma e para os pais O peru percorria a sala com largas passadas, as penas
desalinhadas fora do colete, o bico entreaberto e enfurecido, os olhos
injectados de sangue. Finalmente disse-lhe que ela podia tirar da cabeça a ideia
de casamento. Em vez de casar, se ela quisesse, podia fugir com ele para o
exterior. Naquela noite ou nunca mais. Após muitas hesitações, Roseta acabou
concordando.
Naquela noite, Curcio, que sofria de insónia, levantou-se
para ir tomar um pouco de ar na janela. Era uma noite de verão com a lua no
auge de seu esplendor. Os Curcio moravam num palacete. Olhando pela janela, sem
fazer barulho nem acender as luzes para não acordar a mulher, a primeira coisa
que viu foi a sombra gigantesca do peru, com a cabeça erguida e o pescoço
estufado, o bico verruguento virado para cima, reflectida nitidamente na parede
da casa inundada pela branca luz do luar. Ele baixou os olhos .e ainda teve
tempo de ver a filha pular de uma janela do primeiro andar entre os braços do
peru. Este, carregando-a nos braços como se fosse uma trouxa, com uma força de
que ninguém suspeitaria, rapidamente levava a moça em direcção ao portão. Curcio
acordou a mulher, correu a buscar uma velha espingarda. Mas quando desceu não
encontrou nenhum sinal dos fugitivos.
No dia seguinte, Curcio deu parte à policia do rapto. Mas
nas delegacias ninguém acreditou. Um peru, diziam, como é possível que um peru
tenha raptado sua filha. Os perus ficam nas gaiolas. Aliás a filha era maior de
idade e não havia nada a fazer.
Mas as trapaças do peru foram descobertas assim mesmo.
Descobriu-se que era casado, com filhos. Descobriu-se ainda que não era nem
nobre nem rico, mas apenas um simples garçon expulso de vários lugares por
furto. Curcio exultava, embora cheio de bílis. A mulher só chorava e chamava a
filha.
Tudo acabou com o costumeiro pedido de resgate; e Curcio
teve que desembolsar muitos daqueles "belos tostões" ganhos com tanto
sacrifício para ter de volta em casa a filha desonrada. Isso aconteceu em Dezembro. No dia de Natal, a mulher telefonou para Curcio pedindo que não
demorasse a voltar para casa já que havia peru; para eliminar qualquer
equívoco, acrescentou que se tratava de uma pessoa muito séria que demonstrava
uma visível inclinação por Roseta. Não era, enfim, um peru como aquele do ano
passado, quanto a isso podia confiar. "Eis como são as mulheres",
pensou Curcio. Mas desta vez ele jurou que abriria bem os olhos, e não se
deixaria enganar pelas falsas aparências e pelas palavras vazias de nenhum
peru, fosse ele aristocrático ou plebeu.
Alberto Moravia