quarta-feira, 29 de março de 2017

OUTROS CONTOS

«Último Natal Descrente», por João de Melo.

«Último Natal Descrente»
Ilustração: Afonso Cruz

1004- «ÚLTIMO NATAL DESCRENTE»

Os crentes e confessos de verdade são quase sempre pessoas sumamente perigosas. Acreditam em tudo e mais alguma coisa: nas estações do ano, no novo acordo ortográfico, na Europa unida e até no ministro Paulo Portas. Foram elas, sem margem para dúvidas, que mandaram colocar em todos os mupis de Lisboa um anúncio a uma revista mais ou menos pornográfica (de cujo nome não quero recordar-me) com uma frase irónica, escrita em letra maiúscula: «Eu acredito no Pai Natal». Tanto quanto me recordo, trata-se de um senhor de provecta idade, muito barbado de branco, um tanto barrigudo e com um saco cheio de cães e gatos a pender do ombro. Alegre, bonacheirão, um pouco apalermado -porque só pode ser de um palerma aturar tanta criançada, tanta neve, tanto trenó vindo da Lapónia e manter, ainda assim, toda aquela bonomia de santo presenteiro.

Não sei quem a disse, mas nunca mais esqueci uma frase justa e lapidar, que vai bem com esta moral de Dezembro e com o meu espírito natalício: "Os ricos têm todas as razões para acreditar em Deus. Os pobres limitam-se a crer no papa". Certamente um filósofo. Alemão ou holandês: têm sempre nomes muito difíceis de fixar.

Tudo em nós sobe da infância para a idade, numa ascensão do sonho para o desencanto da verdade e da vida. Lembro-me da primeira prenda de Natal que me deram: um pacotinho de alfarrobas vindas de fora (não existiam nos Açores). Umas vagens quase doces, de uma cor quaresmal imprópria para a época. Não gostei dessa partida do Menino Jesus, e nunca mais voltei a pôr o sapato na chaminé.
Deixei de crer, cortei relações com ele. Mas isso não obstou a que, muitos e muitos anos mais tarde, eu lhe tivesse dedicado um breve conto autobiográfio, Ouro, Incenso e Mirra, escrito a pedido.

Foi lido na televisão e comoveu os olhos da minha mulher até às lágrimas. Um texto pungente de poesia e dos seus contrários; desprovido da fé e dos dogmas da catequese, mas tocado pela espiritualidade do maravilhoso cristão, tal qual o concebemos no Ocidente.

O problema é que, não sendo eu nem pobre nem rico, aquela frase acerca de Deus e do papa não me assenta bem nem com inteira justeza literária. E agora o tempo, o folgado e rijo e impiedoso tempo, corre contra mim. Estou para ser avô de uma menina a quem, um dia, espero vir a contar histórias de Natal que enformem em si o universo do mundo familiar. Esse é desde já um sarilho ou um desafio para mim, e não pequeno, porque é suposto um avô transmitir crenças e histórias com final feliz a uma netinha imanentemente amada que virá em breve ao mundo para me salvar da dor e dos amargores do cepticismo.

Este é, por conseguinte, o último Natal em que não creio (ou não creio nele em sintonia com muitas outras pessoas). No ano que vem, sim, conto estar de regresso e reconvertido ao presépio, à consoada e à obra de caridade dos presentes (mesmo sem subsídio de Natal, graças ao Sr. Gaspar -não o rei Mago, mas aquele lambido das Finanças). Dito o que, venho pedir licença de passagem para o meu último soneto de ateu -à conta das tais alfarrobas, de Deus e de todos os papas e doutores da Igreja.

Prometo desde já ter mais juízo e ser decente para o ano que vem -não vá pensar-se que serei um avô degenerado ou que a minha futura netinha não foi suficientemente desejada também pela fé da família!

João de Melo

terça-feira, 28 de março de 2017

OUTROS CONTOS

«O Bispo Negro», por Alexandre Herculano.

«O Bispo Negro»
Conto de Alexandre Herculano

1003- «O BISPO NEGRO»

I
Houve tempo em que a velha catedral conimbricense, hoje abandonada de seus bispos, era formosa; houve tempo em que essas pedras, ora tisnadas pelos anos, eram ainda pálidas, como as margens areentas do Mondego. Então, o luar, batendo nos lanços dos seus muros, dava um reflexo de luz suavíssima, mais rica de saudade que os próprios raios daquele planeta guardador dos segredos de tantas almas, que crêem existir nele, e só nele, uma inteligência que as perceba.

Então aquelas ameias e torres não haviam sido tocadas das mãos de homens, desde que os seus edificadores as tinham colocado sobre as alturas; e, todavia, já então ninguém sabia se esses edificadores eram da nobre raça goda, se da dos nobres conquistadores árabes.

Mas, quer filha dos valentes do Norte, quer dos pugnacíssimos sarracenos, ela era formosa, na sua singela grandeza, entre as outras sés das Espanhas. Aí sucedeu o que ora ouvireis contar.

II
Aproximava-se o meado do duodécimo século. O príncipe de Portugal Afonso Henriques, depois de uma revolução feliz, tinha arrancado o poder das mãos de sua mãe. Se a história se contenta com o triste espectáculo de um filho condenado ao exílio aquela que o gerou, a tradição carrega as tintas do quadro, pintando-nos a desditosa viúva do conde Henrique a arrastar grilhões no fundo de um calabouço. A história conta-nos o facto; a tradição verosímil; e o verosímil é o que importa ao que busca as lendas da pátria.

Em uma das torres do velho alcácer de Coimbra, assentado entre duas ameias, a horas em que o sol fugia do horizonte, o príncipe conversava com Lourenço Viegas, o Espadeiro, e com ele dispunha meios e apurava traças para guerrear a mourisma.


E lançou casualmente os olhos para o caminho que guiava ao alcácer e viu o bispo D. Bernardo, que, montado em sua nédia mula, cavalgava apressado pela encosta acima.

- Vedes vós – disse ele ao Espadeiro – o nosso leal Dom Bernardo, que para cá se encaminha? Negócio grave, por certo, o faz sair a tais desoras da crasta da sua sé. Desçamos à sala de armas e vejamos o que ele quer. – E desceram.

Grandes lampadários ardiam já na sala de armas do alcácer de Coimbra, pendurados de cadeiras de ferro chumbadas nos fechos dos arcos de volta de ferradura que sustentavam os tectos de grossa cantaria. Pelos feixes de colunas delgadas, entre si separadas, mas ligadas sob os fustes por base comum, pendiam corpos de armas, que reverberavam a luz das lâmpadas e pareciam cavaleiros armados, que em silêncio guardavam aquele amplo aposento. Alguns homens de mesnada faziam retumbar as abóbadas, passeando de um para outro lado.

Uma portinha, que ficava em um ângulo da quadra, abriu-se, e dela saíram o príncipe e Lourenço Viegas, que desciam da torre. Quase ao mesmo tempo assomou no grande portal de entre o vulto venerável e solene do bispo D. Bernardo.

- Guardai-vos Deus, dom bispo! Que mui urgente negócio vos traz aqui esta noute? - disse o príncipe a D. Bernardo.

- Más novas, senhor. Trazem-me aqui a mim letras do papa, que ora recebi.

- E que quer de vós o papa?

- Que de sua parte vos ordene solteis vossa mãe...

- Nem pelo papa, nem por ninguém o farei.

- E manda-me que vos declare excomungado, se não quiserdes cumprir seu mandado.

- E vós que intentais fazer?

- Obedecer ao sucessor de São Pedro.

- Quê? Dom Bernardo amaldiçoaria aquele a quem deve o bago pontifical; aquele que o alevantou do nada? Vós, bispo de Coimbra, excomungaríeis o vosso príncipe, porque ele não quer pôr a risco a liberdade desta terra remida das opressões do senhor de Trava e do jugo do rei de Leão; desta terra que é só minha e dos cavaleiros portugueses?

- Tudo vos devo, senhor - atalhou o bispo - salvo a minha alma, que pertence a Deus, a minha fé, que devo a Cristo, e a minha obediência, que guardarei ao papa.

- Dom Bernardo! Dom Bernardo! - disse o príncipe, sufocado de cólera -, lembrai-vos de que afronta que se me fizesse nunca ficou sem paga!

- Quereis, senhor infante, soltar vossa mãe?

- Não! Mil vezes não!

- Guardai-vos!

E o bispo saiu, sem dizer mais palavras. Afonso Henriques ficou pensativo por algum tempo; depois, falou em voz baixa com Lourenço Viegas, o Espadeiro, e encaminhou-se para a sua câmara. Daí a pouco o alcácer de Coimbra jazia, como o resto da cidade, no mais profundo silêncio.   

III 
Pela alvorada, muito antes de romper o sol no dia seguinte, Lourenço Viegas passeava com o príncipe na sala de armas do paço mourisco. 

- Se eu próprio o vi, montado na sua nédia mula, ir lá muito ao longe, caminho da terra de Santa Maria. Na porta da Sé estava pregado um pergaminho com larga escritura, que, segundo me afirmou um clérigo velho que aí chegara quando eu olhava para aquela carta, era o que eles chamam o interdito... - Isto dizia o Espadeiro, olhando para todos os lados, como quem receava que alguém o ouvisse. 

- Que receias, Lourenço Viegas? Dei a Coimbra um bispo que me excomunga, porque assim o quis o papa: dar-lhe-ei outro que me absolva, porque assim o quero eu. Vem comigo à Sé. Bispo Dom Bernardo, quando te arrependeres da tua ousadia já será tarde. 

Dali a pouco as portas da Sé estavam abertas, porque o sol era nado, e o príncipe, acompanhado de Lourenço Viegas e de dois pajens, atravessava a igreja e dirigia-se à crasta, onde, ao som de campa tangida, tinha mandado ajuntar o cabido, com pena de morte para o que aí faltasse. 

IV
Solene era o espectáculo que apresentava a crasta da Sé de Coimbra. O sol dava, com todo o brilho de manhã puríssimo, por entre os pilares que sustinham as abóbadas dos cobertos que cercavam o pátio interior. Ao longo desses cobertos caminhavam os cónegos com passos lentos, e as largas roupas ondeavam-lhes ao bago suave do vento matutino. No topo da crasta estava o príncipe em pé, encostado ao punho da espada, e, um pouco atrás dele, Lourenço Viegas e os dois pajens. Os cónegos iam chegando e formavam um semicírculo a pouco distância de el-rei, em cuja cervilheira de malha de ferro ferviam buliçosos os raios do sol.

Toda a clerezia da Sé estava ali apinhada, e o príncipe, sem dar palavra e com os olhos fitos no chão, parecia envolto em fundo pensar. O silêncio era completo.

Por fim Afonso Henriques ergue o rosto carrancudo e ameaçador e disse:

- Cónegos da Sé de Coimbra, sabeis a que vem aqui o infante de Portugal?

Ninguém respondeu palavra.

- Se não sabeis, dir-vo-lo-ei eu - prosseguiu o príncipe -: vem assistir à eleição do bispo de Coimbra.

- Senhor, bispo havemos. Não cabe aí nova eleição - disse o mais e velho e autorizado dos cónegos que estavam presentes e que era o adaião.

- Ámen - responderam os outros.

Esse que vós dizeis - bradou o infante cheio de cólera -, esse jamais o será. Tirar-me quis ele o nome de filho de Deus; eu lhe tirarei o nome do seu vigário. Juro que nunca em meus dias porá Dom Bernardo pés em Coimbra: nunca mais da cadeira episcopal ensinará um rebelde a fé das santas escrituras! Elegei outro: eu aprovarei vossa escolha.

- Senhor, bispo havemos. Não cabe aí nova eleição - repetiu o adaião.

- Ámen - responderam os mais.

O furor de Afonso Henriques subiu de ponto com esta resistência.

- Pois bem! - disse ele, com a voz presa na garganta, depois de olhar terrível que lançou pela assembleia, e de alguns momentos de silêncio. - Pois bem! Saí daqui, gente orgulhosa e má! Saí, vos digo eu! Alguém por vós elegerá um bispo...

Os cónegos, fazendo profundas reverências, encaminharam-se para as suas celas, ao longo das arcarias da crasta.

Entre os que ali se achavam, um negro, vestido de hábitos clericais, tinha estado encostado a um dos pilares, observando aquela cena; os seus cabelos revoltos contrastavam pela alvura com a pretidão da tez. Quando o príncipe falava, ele sorria-se e meneava a cabeça, como quem aprovava o dito. Os cónegos começavam a retirar-se, e o negro ia após eles. Afonso Henriques fez-lhe um sinal com a mão. O negro voltou para trás.

- Como hás nome? - perguntou-lhe o príncipe.

- Senhor, hei nome Çoleima.

- És bom clérigo?

- Na companhia não há dois que sejam melhores.

- Bispo serás, Dom Çoleima. Vai tomar teus guisamentos, que hoje me cantarás missa.

O clérigo recuou: naquela face tisnada viu-se uma contracção de susto.

- Missa não vos cantarei eu, senhor - respondeu o negro com voz trémula -, que para tal auto não tenho as ordens requeridas.

- Dom Çoleima, repara bem no que te digo! Sou eu que te mando vás vestir as vestiduras de missa. Escolhe: ou hoje tu subirás os degraus do altar-mor da Sé de Coimbra, ou a cabeça te descerá de cima dos ombros e rolará pelas lájeas deste pavimento.

O clérigo curvou a fronte.

- Kirie-eleyson... Kirie-eleyson... Kirie-eleysom! - garganteava daí a pouco Dom Çoleima, revestido dos hábitos episcopais, junto ao altar da capela-mor. O infante Afonso Henriques, o Espadeiro e os dois pajens, de joelhos, ouviam missa com profunda devoção.

V
Era noite. Em uma das salas mouriscas dos nobres paços de Coimbra havia grande sarau. Donas e donzelas, assentadas ao redor do aposento, ouviam os trovadores repetindo ao som da viola e em tom monótono suas magoadas endechas, ou folgavam e riam com os arremedilhos satíricos dos truões e farsistas. Os cavaleiros, em pé, ou falavam de aventuras amorosas, de justas e de bofordos, ou de fossados e lides por terras de mouros fronteiros. Para um dos lados, porém, entre um labirinto de colunas, que dava saída para uma galeria exterior, quatro personagens pareciam entretidas em negócio mais grave do que os prazeres de noite de folguedo o permitiam. Eram estas personagens Afonso Henriques, Gonçalo Mendes da Maia, Lourenço Viegas e Gonçalo de Sousa, o Bom. Os gestos dos quatro cavaleiros davam mostras de que eles estavam vivamente agitados.

- É o que afirma, senhor, o mensageiro - dizia Gonçalo de Sousa - que me enviou o abade do mosteiro de Tibães, onde o cardeal dormiu uma noite para não entrar em Braga. Dizem que o papa o envia a vós, porque vos supõe herege. Em todas as partes por onde o legado passou, em França e em Espanha, vinham a lhe beijar a mão reis, príncipes e senhores: a eleição de Dom Çoleima não pode, por certo, ir avante...

- Irá, irá - respondeu o príncipe em voz tão alta que as palavras reboaram pelas abóbadas do vasto aposento. - Que o legado tenha tento em si! Não sei eu se haveria aí cardeal ou apostólico que me estendesse a mão para eu lha beijar, que pelo cotovelo lha não cortasse fora a minha boa espada. Que me importam a mim vilezas dos outros reis e senhores? Vilezas, não as farei eu!

Isto foi o que se ouviu daquela conversação: os três cavaleiros falaram com o príncipe ainda por muito tempo; mas em voz tão baixa, que ninguém percebeu mais nada.

VI
Dois dias depois, o legado do papa chegava a Coimbra: mas o bom do cardeal tremia em cima da sua nédia mula, como se maleitas o houvessem tomado. As palavras do infante tinham sido ouvidas por muitos, e alguém as havia repetido ao legado.

Todavia, apenas passou a porta da cidade, revestindo-se de ânimo, encaminhou-se direto ao alcáter real.

O príncipe saiu a recebê-lo acompanhado de senhores e cavaleiros. Com modos corteses, guiou-o à sala do seu conselho, e aí se passou o que ora ouvireis contar.

O infante estava assentado em uma cadeira de espaldas: diante dele o legado, em um assento raso, posto em cima de um estrado mais elevado: os senhores e cavaleiros cercavam o filho do conde Henrique.

- Dom cardeal - começou o príncipe -, que viestes vós fazer a minha terra? Posto que de Roma só mal me tenha vindo, creio me trazeis agora algum ouro, que de seus grandes haveres me manda o senhor papa para estas hostes que faço e com que guerreio, noite e dia, os infiéis da fronteira. Se isto trazeis, aceitar-vos-ei: depois, desembaraçadamente podeis seguir vossa viagem.

No ânimo do legado a cólera sobrepujou o temor, quando ouviu as palavras do príncipe, que eram de amargo escárnio.

- Não a trazer-vos riquezas - atalhou ele -, mas a ensinar-vos a fé vim eu; que dela parece vos esquecestes, tratando violentamente o bispo Dom Bernardo e pondo em seu lugar um bispo sagrado com vossas manoplas, vitoriado só por vós com palavras blasfemas e malditas...

- Calai-vos, dom cardeal - gritou Afonso Henriques - que mentis pela gorja! Ensinar-me a fé? Tão bem em Portugal como em Roma sabemos que Cristo nasceu da Virgem; tão certo, como vós outros romãos, cremos na Santa Trindade. Se a outra cousa vindes, amanhã vos ouvirei: hoje ir-vos podeis a vossa pousada.

E ergueu-se: os olhos chamejavam-lhe de furror. Toda a ousadia do legado desapareceu como fumo; e, sem atinar com resposta, saiu do alcácer.

VII
O galo tinha cantado três vezes: pelo arrebol da manhã, o cardeal partia aforradamente de Coimbra, cujos habitantes dormiam ainda repousadamente.

O príncipe foi um dos que despertaram mais cedo. Os sinos harmoniosos da Sé costumavam acordá-lo tocando as ave-marias: mas naquele dia ficaram mudos; e, quando ele se ergueu, havia mais de uma hora que o Sol subia para o alto dos céus da banda do Oriente.

- Misericórdia!, misericórdia! - gritavam devotamente homens e mulheres à porta do alcácer, com alarido infernal. O príncipe ouviu aquele ruído.

- Que vozes são estas que soam? - perguntou ele a um pajem.

O pajem respondeu-lhe chorando:

- Senhor, o cardeal excomungou esta noite a cidade e partiu: as igrejas estão fechadas; os sinos já não há quem os toque; os clérigos fecham-se em suas pousadas. A maldição do santo padre de Roma caiu sobre nossas cabeças.

Outra voz soou à porta do alcácer:

- Misericórdia!, misericórdia!

- Que enfreiem e selem o meu cavalo de batalha. Pajem, que enfreiem e selem o meu melhor corredor.

Isto dizia o príncipe encaminhando-se para a sala de armas. Aí envergou à pressa um saio de malha e pegou em um montante que dois portugueses dos de hoje apenas valeriam a alevantar do chão. O pajem tinha saído, e dali a pouco o melhor cavalo de batalha que havia em Coimbra tropeava e rinchava à porta do alcácer.

VIII
Um clérigo velho, montado em uma alentada mula branca, vindo de Coimbra seguia o caminho da Vimieira e, de instante a instante, espicaçava os ilhais da cavalgadura com seus acicates de prata. Em outras duas mulas iam ao lado dele dois mancebos com caras e meneios de beatos, vestidos de opas e tonsurados, mostrando em seu porte e idade que aprendiam ainda as pueris ou ouviam as gramaticais. Eram o cardeal, que se ia a Roma, e dois sobrinhos seus, que o haviam acompanhado.

Entretanto o príncipe partida de Coimbra sozinho. Quando pela manhã Gonçalo de Sousa e Lourenço Viegas o procuraram em seus paços, souberam que era partido após o legado. Temendo o carácter violento de Afonso Henriques, os dois cavaleiros seguiram-lhe a pista à rédea solta, e iam já muito longe quando viram o pó que ele alevantava, correndo ao longo da estrada, e o cintilar do sol, batendo-lhe de chapa na cervilheira, semelhante ao dorso de um crocodilho.

Os dois fidalgos esporearam com mais força os ginetes, e breve alcançaram o infante.

- Senhor, senhor; aonde ides sem vossos leais cavaleiros, tão cedo e açodadamente?

- Vou pedir ao legado do papa que se amerceie de mim...

A estas palavras, os cavaleiros transpunham uma assomada que encobria o caminho: pela encosta abaixo ia o cardeal com os dois mancebos das opas e cabelos tonsurados.

- Oh! ... - disse o príncipe. Esta única interjeição lhe fugiu da boca; mas que discurso houvera aí que a igualasse? Era o rugido de prazer do tigre, no momento em que salta do fojo sobre a preia descuidada.

- Memento mei, Domine, secundum magnam misericordiam tuam! - rezou o cardeal em voz baixa e trémula, quando, ouvindo o tropear dos cavalos, voltou os olhos e conheceu Afonso Henriques.

Em um instante este o havia alcançado. Ao perpassar por ele, travou-lhe do cabeção do vestido e, de relance, ergueu o monante: felizmente os dois cavaleiros arrancaram as espadas e cruzaram-nas debaixo do golpe, que já descia sobre a cabeça do legado. Os três ferros feriram fogo; mas a pancada deu em vão, aliás i crânio do pobre clérico teria ido fazer mais de quadro redemoinhos nos ares.

- Senhor, que vos perdeis e nos perdeis, ferindo o ungido de Deus - gritaram os dois fidalgos, com vozes aflitas.

- Príncipe - disse o velho, chorando -, não me faças mal; que estou à tua mercê! - Os dois mancebos também choravam.

Afonso Henriques deixou descair o montante, e ficou em silêncio alguns momentos.

- Estás à minha mercê? - disse ele por fim. - Pois bem! Viverás, se desfizeres o mal que causaste. Que seja alevantada a excomunhão lançada sobre Coimbra, e jura-me, em nome do apostólico, que nunca mais em meus dias será posto interdito nesta terra portuguesa, conquistada aos Mouros por preço de tanto sangue. Em reféns deste pacto ficarão teus sobrinhos. Se, no fim de quatro meses, de Roma não vierem letras de bênção, tem tu por certo que as cabeças lhes voarão de cima dos ombros. Apraz-te este contrato?

- Sim, sim! - respondeu o legado com voz sumida.

- Juras?

- Juro.

- Mancebos, acompanhai-me.

Dizendo isto, o infante fez um aceno aos sobrinhos do legado, que, com muitas lágrimas, se despediu deles, e sozinho seguiu o caminho da terra de Santa Maria.

Daí a quatro meses, D. Çoleima dizia missa pontifical na capela-mor da Sé de Coimbra, e os sinos da cidade repicavam alegremente. Tinham chegado letras de bênção de Roma; e os sobrinhos do cardeal, montados em boas mulas, iam cantando devotamente pelo caminho  da Vimieira o salmo que começa:

In exitu Israel de AEgypto.

Conta-se, todavia, que o papa levara a mal, no princípio, o pacto feito pelo legado; mas que, por fim, tivera dó do pobre velho, que muitas vezes lhe dizia:

- Se tu, santo padre, viras sobre ti um cavaleiro tão bravo ter-te pelo cabeção, e a espada nua para te cortar a cabeça, e seu cavalo, tão feroz, arranhar a terra, que já te fazia a cova para ter enterrar, não sòmente deras as letras, mas também o papado e a cadeira apostolical.

Nota: 
A lenda precedente é tirada das crónicas de Acenheiro, rol de mentiras e disparates publicado pela nossa Academia, que teria procedido mais judiciosamente em deixá-las no pó das bibliotecas, onde haviam jazido em paz por quase três séculos. A mesma lenda tinha sido inserida pouco anteriormente na crónica de Afonso Henriques por Duarte Galvão, formando a substância de quatro capítulos, que foram suprimidos na edição deste autor, e que mereceram da parte do académico D. Francisco de S. Luís uma grave refutação. Toda a narrativa das circunstâncias que se deram no facto, aliás verdadeiro, da prisão de D. Teresa, das tentativas oposicionistas do bispo de Coimbra, da eleição do bispo negro, da vinda do cardeal, e da sua fuga contrastam a história daquela época. A tradição é falsa a todas as luzes; mas também é certo que ela se originou de alguma acto de violência praticado nesse reinado contra algum cardeal legado. Um historiador coevo e, posto que estrangeiro, bem informado geralmente acerca dos sucessos do nosso país, o inglês Rogério de Hoveden, narra um facto, acontecido em Portugal, que, pela analogia que tem com o conto do bispo negro, mostra a origem da fábula. A narrativa do cronista está indicando que o acontecimento fizera certo ruído na Europa, e a própria confusão de datas e de indivíduos que aparece no texto de Hoveden mostra que o sucesso era anterior e andava já alterado na tradição. O que é certo é que o achar-se esta conservada fora de Portugal desde o século duodécimo por um escritor que Ruy de Pina e Acenheiro não leram (porque foi publicado no século décimo sétimo) prova que ela remonta entre nós, por maioria de razão, também ao século duodécimo, embora alterada, como já a vemos no cronista inglês. Eis a notável passagem a que aludimos, e que se lê a página 640 da edição de Hoveden, por Savile:

“No mesmo ano (1187) o cardeal Jacinto, então legado em toda a Espanha, depôs muitos prelados (abbates), ou por culpas deles ou por ímpeto próprio, e como quisesse depor o bispo de Coimbra, o rei Afonso (Henrique) não consentiu que ele fosse deposto e mandou ao dito cardeal que saísse da sua terra, quando não cortar-lhe-ia um pé.

Alexandre Herculano

domingo, 26 de março de 2017

SÁTIRA...

O Rastilho
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Sátira...

«O RASTILHO»

Farto-me d’assoprar
Pra apagar o rastilho…
Um grande sarilho,
A Caixa pode estoirar!
Decidi recapitalizar…
Espero não arrebente,
Tratamento ao doente
Com mais uma injeção…
Ocasião faz o ladrão,
O povo que se aguente!

POETA

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

ELTON JOHN - «Funeral for a Friend»

Poet'anarquista

FUNERAL PARA UM AMIGO 

As rosas na janela
Se inclinaram para um lado,
Tudo nesta casa
Nasceu para crescer e morrer

Não parece que faz um ano
No dia de hoje
Você disse, desculpe-me querido,
Se eu não mudar o ritmo
Eu não poderei enfrentar outro dia.

E o amor sangra nas minhas mãos,
Mata-me pensar em você com outro homem.
Eu tocava rock'n'roll e você era apenas uma fã,
Mas minha guitarra não poderia prendê-la
Então eu dividi a banda.
O amor sangra nas minhas mãos.

Eu me pergunto se essas mudanças
Deixaram uma cicatriz em você,
Como todos os aros de fogo
Pelos quais você e eu passamos.

Você é um pássaro azul numa linha telegráfica
Espero que você esteja feliz agora,
Bem, se o vento da mudança cruzar seu caminho,
Menina.

Elton John
Músico Britânico

MEU PAI, POR MANEL D' SOUSA

Meu Pai
Pescando/ Pintura de Almeida Júnior
 
MEU PAI
 
Meu pai sempre me dizia:
- Filho, a vida é uma passagem…
Envelhece a nossa imagem,
Para trás fica outro dia.
 
E ainda outra vez lhe ouvia
Repetir igual mensagem:
- O tempo não faz paragem,
Vai e vem, como a ventania! 
 
 Meu velhote ainda insistia:
- O passar desta carruagem,
Vai chegar à outra margem.
 
Homem de muita sabedoria,
A vida em verso descrevia
Com rebuscada linguagem!
 
 Manel d’ Sousa
 


sábado, 25 de março de 2017

OUTROS CONTOS

«Antes que seja Tarde», conto poético por Manuel da Fonseca.

«Antes que seja Tarde»
Poema de Manuel da Fonseca

1002- «ANTES QUE SEJA TARDE»

Amigo,
tu que choras uma angústia qualquer
e falas de coisas mansas como o luar
e paradas
como as águas de um lago adormecido,
acorda!
Deixa de vez
as margens do regato solitário
onde te miras
como se fosses a tua namorada.
Abandona o jardim sem flores
desse país inventado
onde tu és o único habitante.
Deixa os desejos sem rumo
de barco ao deus-dará
e esse ar de renúncia
às coisas do mundo.
Acorda, amigo,
liberta-te dessa paz podre de milagre
que existe
apenas na tua imaginação.
Abre os olhos e olha,
abre os braços e luta!
Amigo,
antes da morte vir
nasce de vez para a vida.

Manuel da Fonseca
 

SÁTIRA...

Gajas & Copos
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Sátira...

«GAJAS & COPOS»

Gajas boas a granel
E copos pra animar,
Uma bunda a dar a dar
Aqui neste rico bordel!
Esta é boa como o mel
Nota alta deve valer,
Ela vem logo a correr
Quando lhe vejo a fuça…
Nem com carapuça
Comigo irás coser!

POETA

sexta-feira, 24 de março de 2017

SÁTIRA...

O Crente
Sátira...

«O CRENTE»

Beleza Letal Fedelho
Tem condição boa
Para ganhar Lisboa,
Seguindo este conselho:
Revirar os olhos ao espelho
E colocar-se de borco,
Irá ver passar um porco
A andar de bicicleta…
A vitória é quase certa,
Senão, juro me enforco!

POETA

quarta-feira, 22 de março de 2017

SÁTIRA...

Ego Ferido
Sátira...

«EGO FERIDO»

Ouve cá, bronco Dijssel,
Ou lá como te chamas tu…
Mete o Eurogrupo no cu,
E vai cagar pró teu bordel!
A tua boca cheira a fel
Já empesta todo o sul,
Lava a língua no paul
Com a merda que fizeres…
Sobre copos e mulheres,
Queixa-te ao teu cônsul!!

POETA

terça-feira, 21 de março de 2017

OUTROS CONTOS

«Décima de Primavera», por Manel d' Sousa.

«Décima de Primavera»
Flor de Alecrim e Alfazema

1001- «DÉCIMA DE PRIMAVERA»

Era uma vez um poema
Que vivia num jardim,
Por companhia o alecrim
E a flor de alfazema.
Habitava lá na estrema
Um poeta que sorria,
A quem passava pedia
Palavras do verbo amar…
Primavera a chegar
Com cheirinho a poesia!

Manel d’ Sousa

OUTROS CONTOS

«Recado de Primavera», por Rubem Braga.

(Mil contos no Poet'anarquista com este «Recado de Primavera»... e que recado!)

«Recado de Primavera»
Flor de Azaleia e Manacá

1000- «RECADO DE PRIMAVERA»

Meu caro Vinicius de Moraes:

Escrevo-lhe aqui de Ipanema para lhe dar uma notícia grave: A Primavera chegou. Você partiu antes. É a primeira Primavera, de 1913 para cá, sem a sua participação. Seu nome virou placa de rua; e nessa rua, que tem seu nome na placa, vi ontem três garotas de Ipanema que usavam mini-saias. Parece que a moda voltou nesta Primavera — acho que você aprovaria. O mar anda virado; houve uma Lestada muito forte, depois veio um Sudoeste com chuva e frio. E daqui de minha casa vejo uma vaga de espuma galgar o costão sul da Ilha das Palmas. São violências primaveris.

O sinal mais humilde da chegada da Primavera vi aqui junto de minha varanda. Um tico-tico com uma folhinha seca de capim no bico. Ele está fazendo ninho numa touceira de samambaia, debaixo da pitangueira. Pouco depois vi que se aproximava, muito matreiro, um pássaro-preto, desses que chamam de chopim. Não trazia nada no bico; vinha apenas fiscalizar, saber se o outro já havia arrumado o ninho para ele pôr seus ovos.

Isto é uma história tão antiga que parece que só podia acontecer lá no fundo da roça, talvez no tempo do Império. Pois está acontecendo aqui em Ipanema, em minha casa, poeta. Acontecendo como a Primavera. Estive em Blumenau, onde há moitas de azaleias e manacás em flor; e em cada mocinha loira, uma esperança de Vera Fischer.

Agora vou ao Maranhão, reino de Ferreira Gullar, cuja poesia você tanto amava, e que fez 50 anos. O tempo vai passando, poeta. Chega a Primavera nesta Ipanema, toda cheia de sua música e de seus versos. Eu ainda vou ficando um pouco por aqui — a vigiar, em seu nome, as ondas, os tico-ticos e as moças em flor. Adeus.

Rubem Braga

segunda-feira, 20 de março de 2017

SÁTIRA...

A Melhor Solução
Sátira...

«A MELHOR SOLUÇÃO»

- Zé, cortei o mal pla raiz…
Fiz sair Santana Flopes,
Baralhei os envelopes,
E zás!... solução do país! (?)
- Nessa troca pouco feliz
Entrou o tal engenheiro,
Com queda pró dinheiro
De aspecto meio-sinistro…
- Chega então a ministro,
Aprovado como primeiro!

POETA

domingo, 19 de março de 2017

OUTROS CONTOS

«O Disco», por Jorge Luís Borges.

«O Disco»
Caricatura de Borges

999- «O  DISCO»

Sou lenhador. O nome não importa. A choça em que nasci e na qual logo hei de morrer fica à beira do bosque. Do bosque dizem que se estende até o mar que rodeia toda a terra e que nele existem casas de madeira iguais à minha. Tampouco vi o outro lado do bosque. Meu irmão mais velho, quando éramos pequenos, me fez jurar que nós dois derrubaríamos todo o bosque até não restar uma única árvore. Meu irmão morreu e agora procuro e continuarei procurando outra coisa. No rumo do poente corre um riacho em que sei pescar com a mão. No bosque há lobos, mas os lobos não me amedrontam e meu machado nunca me foi infiel. Não fiz o cálculo de meus anos. Sei que são muitos. Meus olhos já não vêm. Na aldeia, aonde já não vou porque me perderia, tenho fama de avaro, mas que pode ter amealhado um lenhador do bosque?

Fecho a porta de minha casa com uma pedra para que a neve não entre. Uma tarde ouvi passos trabalhosos e depois uma batida. Abri e entrou um desconhecido. Era um homem alto e velho, envolto numa manta puída. Uma cicatriz atravessava seu rosto. Os anos pareciam haver dado a ele mais autoridade que fraqueza, mas notei que lhe custava andar sem o apoio do bastão. Trocamos umas palavras que não lembro. Disse afinal:

– Não tenho casa e durmo onde posso. Percorri toda a Saxónia.

Aquelas palavras convinham à velhice dele. Meu pai sempre falava da Saxónia; agora as pessoas dizem Inglaterra.

Eu tinha pão e peixe. Não falamos durante o jantar. Começou a chover. Com uns couros armei uma cama para ele no chão de terra, onde meu irmão morreu. Ao chegar a noite, dormimos.

O dia clareava quando saímos de casa. A chuva cessara e a terra estava coberta de neve recente. Deixou cair o bastão e ordenou-me que o erguesse.

– Por que devo te obedecer? - disse-lhe.

– Porque sou um rei – respondeu.

Julguei-o um louco. Apanhei o bastão e lhe dei.

Falou uma voz diferente.

– Sou o rei dos Secgens. Muitas vezes, levei-os à vitória na dura batalha, mas na hora marcada pelo destino perdi meu reino. Meu nome é Isern e sou da estirpe de Odin.

– Não venero Odin – respondi. - Venero Cristo.

Como se não me ouvisse, continuou:

– Ando pelos caminhos do desterro, mas ainda sou rei porque tenho o disco. Queres vê-lo?

Abriu a palma da mão, que era ossuda. Não havia nada na mão. Foi então que percebi que sempre a mantinha fechada.

Olhando-me fixamente, disse:

– Podes tocá-lo.

Já com algum receio pus a ponta dos dedos sobre a palma. Senti uma coisa fria e vi um brilho. A mão fechou-se bruscamente. Eu não disse nada. O outro continuou com paciência, como se falasse com um menino:

– É o disco de Odin. Tem um único lado. Na terra não existe outra coisa que tenha um só lado. Enquanto estiver em minha mão, serei rei.

– É de ouro? - disse a ele.

– Não sei. É o disco de Odin e tem um só lado.

Então senti a cobiça de possuir o disco. Se fosse meu, poderia vendê-lo por uma barra de ouro e seria um rei.

Disse ao vagabundo que ainda odeio:

– Na choça tenho um cofre de moedas escondido. São de ouro e brilham como o machado. Se me deres o disco de Odin, eu te darei o cofre.

Disse teimosamente:

– Não quero.

– Então – disse eu – podes prosseguir teu caminho.

Deu-me as costas. Uma machadada na nuca bastou e sobrou para que vacilasse e caísse, mas, no cair, abriu a mão e vi o brilho no ar. Marquei bem o lugar com o machado e arrastei o morto até o riacho, que estava muito cheio. Atirei-o lá.

Ao voltar para casa, procurei o disco. Não o encontrei. Faz anos que continuo à sua procura.

Jorge Luís Borges

sábado, 18 de março de 2017

SÁTIRA...

Duas Boas Razões
Sátira...

«DUAS BOAS RAZÕES»

- Pedro, que notícia boa!...
Fico eternamente grata
Por ser eu a candidata,
À Câmara de Lisboa.
Pergunto se foi à toa
Que fizeste as nomeações…
- Houve duas boas razões:
Ambos somos Coelho,
O nome do meio espelho
Das minhas pretensões!

POETA

OUTROS CONTOS

«Devia Morrer-se de Outra Maneira», por José Gomes Ferreira.

«Devia Morrer-se de Outra Maneira»
Metamorfoses/ Vladimir Kush

998- «DEVIA MORRER-SE DE OUTRA MANEIRA»

Devia morrer-se de outra maneira.
Transformando-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.

Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão de convite para o ritual do Grande Desfazer: “Fulano de tal comunica ao mundo que vai transformar-se em nuvem hoje, às 9 horas. Traje de passeio.”

E, então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos escuros, olhos de lua de cerimónia, viríamos todos assistir à despedida. Apertos de mãos quentes, ternura de calafrio. “Adeus!  Adeus!” E pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento, numa lassidão de arrancar raízes... (primeiro, os olhos… em seguida, os lábios... depois o cabelo...) a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se em fumo... tão leve... tão subtil.... tão pólen... como aquela nuvem além (vêm?) - nesta tarde de Outono ainda tocada por um vento de lábios azuis...

José Gomes Ferreira

quinta-feira, 16 de março de 2017

OUTROS CONTOS

«O Combate», por Josué Montello.

«O Combate»
Conto de Josué Montello
997- «O COMBATE»

Na véspera do combate, quando a lua despontou por cima dos contrafortes da serra do Medeiro, já encontrou as tropas do Capitão Nelson de Melo a poucos quilómetros do lugar escolhido para o duplo movimento - de vanguarda e retaguarda - contra as forças governistas. O batalhão marchava em silêncio, cobrindo a picada no passo certo da marcha, de baterias prontas para a ofensiva, enquanto a cavalaria se alongava em fila indiana, com os animais de orelhas fitas, rédeas soltas, batendo cadenciadamente os cascos nas pedras do chão. Adiante, nas carretas vagarosas, seguiam dois canhões, ladeados por quatro artilheiros.

Por volta das dez e meia, o batalhão parou para acampar. Dali se podia ver, banhada pela claridade do luar, a silhueta compacta das montanhas fechando o cenário da luta. Ocultos pela vegetação das encostas, já os canhões inimigos espreitariam, alongando o pescoço comprido, prontos para atirar.

João Maurício, que dispensara a barraca de campanha, preferira ficar ao relento, na companhia de seus soldados, sentindo à sua volta a noite imensa e clara. Jamais tinha visto outra assim. Afeito a galgar escarpas e desfiladeiros, vivia agora uma emoção diferente, com aquela luz húmida, aquele silêncio espaçoso, aquelas cumeadas, aquelas árvores que a brisa balouçava. Por terra, junto aos fuzis e às mochilas, jaziam os companheiros adormecidos, agasalhados nas mantas e nos capotes, sem que se lhes ouvisse o ressonar sobressaltado. Parecia a João Maurício que, afora as sentinelas, que se mantinham alerta nos postos avançados, somente ele permanecia vigilante, àquela hora tardia, sentado no chão, com as mãos frias escorando o corpo, que se reclinava para trás. Apesar da marcha longa, não sentia sono nem cansaço. Aquela vigília não seria um aviso de que seu fim se aproximava? Entregava-se às mãos de Deus, convicto de que tomara o partido da boa causa. E alongava para os alcantis a vista insone. A noite, olhada daquela iminência, com as montanhas empinadas sob a luz alvacenta, tinha a imponência inaugural do mundo primitivo, como se Deus houvesse acabado de fazer tudo aquilo. Aqui, além, esguios pinheiros imóveis, perfilados no sopé das encostas, abriam-se no alto, como em gesto de oferenda. Com o passar das horas, a luz adquiria gradações novas. A própria lua, suspensa sobre a crista da serra, dava a impressão de buscar alguma coisa na claridade fosca, com um ar de notívaga assustada.

Nisto João Maurício percebeu que um vulto se movia ao seu lado, firmando as mãos no solo para erguer a cabeça, e logo reconheceu o Cabo Ruas, que por fim se sentou, esticando os braços curtos:

— Não quis dormir, Tenente? Eu passei pelo sono. Em noites assim, durmo e acordo, durmo e acordo. Tomara que esta briga acabe depressa. Já estou sentindo a falta de casa. Vou brigar ainda um mês ou dois, depois pego licença: já está em tempo de ver minhas crianças. Agora mesmo sonhei com a patroa. Ela fazia um festão com a minha chegada.

E após um silêncio longo, olhando a noite erma:

— Isto aqui mete medo. Aquela montanha ali, muito escura, muito alta, parece que está de dedo empinado, ralhando com a gente. E olhe o vento assobiando. Deus não pode ter inventado a guerra, Tenente. Isto é coisa do Diabo. Eu, aqui, com o meu fuzil, e o senhor, aí, com a sua pistola, só estamos pensando em matar para não ser morto. Deus disse: "Não matarás." E nós, aqui, não fazemos outra coisa. Acho que foi esse pensamento que me tirou o sono. Estou dizendo besteira, Tenente? João Maurício bateu-lhe no ombro: 

— Não. Mas trata de dormir. Precisas estar descansado, e eu também. Fica quieto.

E alongou-se ao comprido do chão, com o rosto voltado para o céu, como em busca das estrelas, enquanto o Cabo Ruas se deitava de borco com a cabeça no braço dobrado. Mas, mesmo quieto, João Maurício não dormiu. Para os lados de Belarmino, voltavam a retumbar tiros isolados, que as montanhas repetiam.

— Boa-noite, Tenente.

— Boa-noite, Ruas.

E João Maurício, com as mãos sob a nuca, ia vendo farrapos de nuvens que o vento levava. Quando a luz da aurora se espalhasse por aquelas alturas, haveria sangue no horizonte, por cima das árvores, e sangue na terra, com os primeiros mortos e feridos. Os cavalos se precipitariam sobre o verde dos desfiladeiros, e muitos deles relinchariam, ouvindo o toque das cornetas, por entre o rugir dos canhões, o sibilar das balas, e o estrugir nervoso da metralha. E tanto de um lado quanto de outro, os corpos iriam tombando, à proporção que o dia fosse crescendo.

Sem perceber a transição da vigília para o sono, João Maurício deixou cair pesadamente as pálpebras, e só voltou a si com o Ruas a lhe sacudir o braço:

— Depressa, Tenente: o ataque está começando.

De um salto, ele ficou de pé, ouvindo em redor o alvoroço dos companheiros que se apresentavam para o combate. Na manhã ainda clareando, estrondavam as primeiras cargas cerradas do bombardeio inimigo. Soavam longe os clarins e as cornetas. Alguns cavalos galopavam, outros relinchavam com o repuxo das rédeas e o toque das esporas. E as granadas não tardaram a explodir ali no alto, arrancando touceiras de mato e salpicos de terra revolvida. De vez em quando, um grito. E os canhões rugiam dos dois lados, escancarando na luz atônita o clarão instantâneo das balas detonadas.

Após a desordem assustada dos momentos iniciais de luta, uma ordem natural ia-se impondo — com os soldados nas posições de combate, a resposta rápida dos tiros, o corpo-a-corpo que lá adiante se travava, a arremetida dos cavalarianos, os grupos que se infiltravam pelos capões de mato e pelo aclive das ribanceiras. A cada instante, uma nova ordem da corneta. Novas cargas cerradas. As granadas de mão que se amiudavam, e já um ou outro soldado inimigo tentava infiltrar-se nas linhas rebeldes, enquanto a luz da manhã crescia e se alastrava.

Josué Montello

quarta-feira, 15 de março de 2017

SÁTIRA...

O Ubíquo
Sátira...

«O UBÍQUO»

- Senhor Presidente,
Peço-lhe com delicadeza:
Faz-me a gentileza
De sair da minha frente?
- É já num repente!…
Embora eu não mereça,
Não se aborreça
Que vou sair dali…
Então, fico bem aqui?
- Senhor Presidente… desapareça!

POETA

terça-feira, 14 de março de 2017

SÁTIRA...

O Crânio
Sátira...

«O CRÂNIO»

- Arrasei, não arrasei?
O meu crânio é certeiro!
- Boa, senhor engenheiro…
Como sempre, adorei!
- Na caveira me inspirei
Achada em Portugal,
400 mil anos é normal
Que chegue a essa idade…
Vai durar uma eternidade
Este processo judicial!

POETA

segunda-feira, 13 de março de 2017

SÁTIRA...

O Interrogatório
Sátira...
 
«O INTERROGATÓRIO»

 - Que temos hoje na agenda?
- Trócas-te em interrogatório!
- Já dei pra esse peditório…
Saiu-me a fava de prenda!
Mande entrar a encomenda…
- Estreia nova peça de teatro
Na sala quarenta e quatro…
Mando preparar os aposentos?
- Primeiro ouço argumentos,
Depois segue pró anfiteatro!
 
POETA
 


domingo, 12 de março de 2017

SÁTIRA...

Dia Perdido
Sátira...

«DIA PERDIDO»

Maria, o dia está perdido...
Manda a corda, não demores,
Neste mar não há offshores,
Só vi um tubarão fodido!
Antes que seja comido
Termina lá esse croché,
Não te esqueças do teu Zé
Neste mar de tubarões…
Por aqui passam milhões,
E a mim falta-me o pé!!

POETA 

sábado, 11 de março de 2017

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

NINA HAGEN 
«Sometimes I Ring Up Heaven»

Poet'anarquista

Nina Hagen
Cantora Germânica

OUTROS CONTOS

«O Largo», por Manuel da Fonseca.

«O Largo»
Ilustração de Adão Cruz
996- «O LARGO»

Antigamente, o Largo era o centro do mundo. Hoje, é apenas um cruzamento de estradas, com casas em volta e uma rua que sobe para a Vila. O vento dá nas faias e a ramaria farfalha num suave gemido, o pó redemoinha e cai sobre o chão deserto. Ninguém. A vida mudou-se para o outro lado da Vila.

O comboio matou o Largo. Sob o rumor do rodado de ferro morreram homens que eu supunha eternos. O senhor Palma Branco, alto, seco, rodeado de respeito. Os três irmãos Montenegro, espadaúdos e graves. Badina fraco e repontão. O Estroina, bêbado, trocando as pernas, de navalha em punho. O Má Raça, rangendo os den­tes, sempre enraivecido contra tudo e todos. O lavra­dor de Alba Grande, plantado ao meio do Largo com a sua serena valentia. Mestre Sobral. Ui Cotovio, rufião, de caracol sobre a testa. O Acácio, o bebedola do Acácio, tirando retratos, curvado debaixo do grande pano preto. E, lá ao cimo da rua, esgalgado, um homem que eu nunca soube quem era e que aparecia subitamente à esquina, olhando cheio de espanto para o Largo.

Nesse tempo, as faias agitavam-se, viçosas. Ace­navam rudemente os braços e eram parte de todos os grandes acontecimentos. À sua sombra, os palhaços faziam habilidades e dançavam ursos selvagens. À sua sombra, batiam-se os valentes; junto do tronco de uma faia caiu morto António Valmorim, temido pelos ho­mens e amado pelas mulheres.

Era o centro da Vila. Os viajantes apeavam-se da diligência e contavam novidades. Era através do Largo que o povo comunicava com o mundo. Também, à fal­ta de notícias, era aí que se inventava alguma coisa que se parecesse com a verdade. O tempo passava, e essa qualquer coisa inventada vinha a ser a verdade. Nada a destruía: tinha vindo do Largo. Assim, o Largo era o centro do mundo.

Quem lá dominasse, dominava toda a Vila. Os mais inteligentes e sabedores desciam ao Largo e daí instruíam a Vila. Os valentes erguiam-se no meio do Largo e desafiavam a Vila, dobravam-na à sua vonta­de. Os bêbados riam-se da Vila, cambaleando, esta­vam-se nas tintas para todo o mundo, quem quisesse que se ralasse, queriam lá saber — cambaleavam e caíam de borco. Caíam ansiados de tristeza no pó branco do Largo. Era o lugar onde os homens se sentiam grandes em tudo que a vida dava, quer fosse a valentia, ou a inteligência, ou a tristeza.

Os senhores da Vila desciam ao Largo e falavam de igual para igual com os mestres alvanéis, os mestres-ferreiros. E até com os donos do comércio, com os camponeses, com os empregados da Câmara. Até, de igual para igual, com os malteses, os misteriosos e ar­rogantes vagabundos. Era aí o lugar dos homens, sem distinção de classes. Desses homens antigos que nunca se descobriam diante de ninguém e apenas tiravam o chapéu para deitar-se.

Também era lá a melhor escola das crianças. Aí aprendiam as artes ouvindo os mestres artífices, olhan­do os seus gestos graves. Ou aprendiam a ser valentes, ou bêbados, ou vagabundos. Aprendiam qualquer coisa e tudo era vida. O Largo estava cheio de vida, de valentias, de tragédias. Estava cheio de grandes rasgos de inteligência. E era certo que a criança que apren­desse tudo isto vinha a ser poeta e entristecia por não ficar sempre criança a aprender a vida — a grande e misteriosa vida do Largo.

A casa era para as mulheres.

No fundo das casas, escondidas da rua, elas pen­teavam as tranças, compridas como caudas de cavalos. Trabalhavam na sombra dos quintais, sob as parreiras. Faziam a comida e as camas — viviam apenas para os homens. E esperavam-nos, submissas.

Não podiam sair sozinhas à rua porque eram mu­lheres. Um homem da família acompanhava-as sem­pre. Iam visitar as amigas, e os homens deixavam-nas à porta e entravam numa loja que ficasse perto, à espe­ra que saíssem para as levarem para casa. Iam à missa, e os homens não passavam do adro. Eles não entravam em casas onde fossem obrigados a tirar o chapéu. Eram homens que, de qualquer modo, dominavam no Largo.

Veio o comboio e mudou a Vila. As lojas enche­ram-se de utensílios que, antes, apenas se vendiam nos ferreiros e nos carpinteiros. O comércio desenvol­veu-se, construiu-se uma fábrica. As oficinas faliram, os mestres-ferreiros desceram a operários, os alvanéis passaram a chamar-se pedreiros e também se transfor­maram em operários. Apareceu a Guarda, substituiu os pachorrentos cabos de paz, e prendeu os valentes. As mulheres cortaram os cabelos, pintaram a boca e saem sozinhas. Os senhores tiram agora os chapéus uns aos outros, fazem grandes vénias e apertam-se as mãos a toda a hora. Vão à missa com as mulheres, passam as tardes no Clube, e já não descem ao Largo. Apenas os bêbados e os malteses se demoram por lá nas tardes de domingo.

Hoje, as notícias chegam no mesmo dia, vindas de todas as partes do mundo. Ouvem-se em todas as vendas e nos numerosos cafés que abriram na Vila. As telefonias gritam tudo que acontece à superfície da terra e das águas, no ar, no fundo das minas e dos oceanos. O mun­do está em toda a parte, tornou-se pequeno e íntimo para todos. Alguma coisa que aconteça em qualquer região todos a sabem imediatamente, e pensam sobre ela e to­mam partido. Ninguém já desconhece o que vai pelo mundo. E alguma coisa está acontecendo na terra, algu­ma coisa terrível e desejada está acontecendo em toda a parte. Ninguém fica de fora, todos estão interessados.

A Vila dividiu-se. Cada café tem a sua clientela própria, segundo a condição de vida. O Largo que era de todos, e onde apenas se sabia aquilo que a alguns interessava que se soubesse, morreu. Os homens sepa­raram-se de acordo com os interesses e as necessida­des. Ouvem as telefonias, lêem os jornais e discutem. E, cada dia mais, sentem que alguma coisa está acon­tecendo.

Também as crianças se dividiram: brincam em comum apenas as da mesma condição; param às portas dos cafés que os pais ou irmãos mais velhos frequen­tam. O Largo, agora, é todo o vasto mundo. É lá que estão os homens, as mulheres e as crianças. No outro Largo, só os bêbados e os madraços dos malteses — e aqueles que não querem acreditar que tudo mudou. O certo é que ninguém já liga importância a esta gente e a este Largo.

As grandes faias ainda marginam o Largo como antigamente e, à sua sombra, João Gadunha ainda tei­ma em continuar a tradição. Mas nada é já como era. Todos o troçam e se afastam.

João Gadunha, o bêbado, fala de Lisboa, onde nunca foi. Tudo nele, os gestos e o modo solene de falar, é uma imitação mal pronta dos homens que ouviu quando novo.

— Grande cidade, Lisboa! — diz ele. — Aquilo é gente e mais gente, ruas cheias de pessoal, como numa feira!

Gadunha supõe que em Lisboa ainda há largos e homens como ele conheceu, ali, naquele Largo margi­nado pelas velhas faias. A sua voz ressoa, animada:

—   Querem vocês saber? Uma tarde, estava eu no Largo do Rossio...

—   No Largo do Rossio?

—   Sim, rapaz! — afirma Gadunha erguendo a ca­beça, cheio de importância. — Estava eu no Largo do Rossio a ver o movimento. Vá de passar o pessoal para baixo, famílias para cima, um mundo de gente, e eu a ver. Nisto, dou com um tipo a olhar-me de esguelha. Cá está um larápio, pensei eu. Ora se era!... Veio-se chegando, assim como quem não quer a coisa, e me­teu-me a mão por baixo da jaqueta. Mas eu já estava à espera!... Salto para o lado e, zás, atiro-lhe uma pu­nhada nos queixos: o tipo foi de gangão, bateu com a cabeça num eucalipto e caiu sem sentidos!

Uma gargalhada acolhe as últimas palavras do Gadunha.

— Um eucalipto?

Apenas por um pormenor, estragou uma tão bela história. Fosse antigamente, todos ouviriam calados. Agora, sabem tudo e riem-se. Mas Gadunha teima. Diz que sim, que já esteve no Largo do Rossio, lá em Lisboa.

— Vocês já viram um largo sem eucaliptos, ou faias, ou outra árvore qualquer? — pergunta ele, des­norteado.

Todos se afastam, rindo.

João Gadunha fica sozinho e triste. Os olhos arra­sam-se-lhe de água, a bebedeira dá-lhe para chorar. Agarra-se às faias, abraça-as, e fala-lhes carinhosa­mente. Aperta-as contra o peito, como se tentasse abarcar o passado. E as suas lágrimas molham o tronco carunchoso das faias.

Vai morrendo assim o Largo. Aos domingos, é ainda maior a dor do Largo moribundo. Vão todos para os cafés, para o cinema ou para o campo. O Largo fica deserto sob a ramaria das faias silenciosas.

É nesses dias, pelo fim da tarde, que o velho Ranito sai da venda rangendo os dentes. Outrora, foi mestre-artífice; era importante e respeitado. Hoje, é tão pobre e sem préstimo que nem sabe ao certo o número dos filhos. Apenas sabe embebedar-se. Pequeno e fraco, o vinho transforma-o. Entesa-se, ergue o cacete e, sem dobrar os joelhos, apenas com um golpe de pés, pula para o ar e dá três cacetadas no pó do Largo antes de tocar de novo com os pés no chão. Ergue a cabeça e grita, estonteado:

— Se há aí algum valente, que salte para aqui!

Mas já não há nenhum valente no Largo, já não há ninguém no Largo. Ranito olha em volta com o olha espantado.

A vista turva-se-lhe, range os dentes:

— Ah vida, vida!...

Volteia o cacete sobre a cabeça. Vai de roda, fe­roz, pelo Largo ermo de vida, atirando cacetadas con­tra o chão. Vai, de cinta solta rojando, ágil e ridículo, a desafiar homens que já morreram.

Até que se cansa naquela luta desigual. O cacete despega-se-lhe das mãos e ele fica lasso, desequilibra­do. Aos tropeções, pende para a frente e cai, tem que cair, o Largo já morreu, ele não quer, mas tem de cair. Pesado de bebedeira e de desgraça, cai vencido.

Uma nuvem de poeira ergue-se; depois, tomba vagarosa e triste. Tomba sobre o Ranito esfarrapado e tapa-o.

Ele já não pode ver que o Largo é o mundo fora daquele círculo de faias ressequidas. Esse vasto mundo onde qualquer coisa, terrível e desejada, está aconte­cendo.

Manuel da Fonseca