quinta-feira, 30 de junho de 2011

quarta-feira, 29 de junho de 2011

LITERATURA - ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY

Antoine-Jean-Baptiste-Marie-Roger Foscolombe de Saint-Exupéry, ou simplesmente Saint-Exupéry, nasceu em Lyion, na França, a 29 de Junho de 1900. Escritor, ilustrador e piloto durante a Segunda Guerra Mundial, tornou-se famoso no mundo da literatura com o livro «O Principezinho». Saint-Exupéry faleceu a 31 de Julho de 1944, no Mar Mediterrâneo.
Poet'anarquista
Antoine Saint-Exupéry
Escritor Francês
BREVE BIOGRAFIA

Antoine Marie Roger, conde de Saint-Exupéry, escreveu um dos mais famosos best-sellers do pós guerra, O Pequeno Príncipe (1943), uma parábola em forma de conto que coloca em xeque o ponto de vista racional dos adultos. 

«O Principezinho»
Saint-Exupéry

Os seus romances, diários e ensaios transmitem uma filosofia de vida que pretende melhorar as relações entre as pessoas, mediante a utilização ética da técnica, além de exaltar a amizade e a fraternidade, que conduzirão até ao auto-sacrifício, se necessário. 

Os seus temas têm por base as suas experiências como piloto. Depois de cumprir o serviço militar na Força Aérea francesa, trabalhou para linhas aéreas privadas da Europa e da América. 

Na primeira fase da Segunda Guerra Mundial, foi piloto de ensaios e de combate. Em 1940, juntou-se à Força Aérea dos Estados Unidos e realizou vôos de reconhecimento para os aliados. Empreendeu então uma viagem à Córsega, da qual nunca regressou. 

Outras obras importantes que escreveu são «Correio do Sul» (1929), « Vôo Nocturno» (1931), «Terra de Homens» (1939) e «Piloto de Guerra» (1942).
Fonte: NetSaber
«Cada Um Que Passa...»
Saint-Exupéry

CARTOON versus QUADRAS

«World Naked Bike Ride Lisboa» 
HenriCartoon

«WORD NAKED BIKE RIDE LISBOA» 

Gajas boas nas bicicletas
Sempre prontas a pedalar;
Nuas… nas ruas desertas,
E sem gajos a roncar!

Vivam as mulheres boas
Nuas nas manifestações,
Descascadas como meloas…
Abaixo os homens machões!

POETA

terça-feira, 28 de junho de 2011

segunda-feira, 27 de junho de 2011

domingo, 26 de junho de 2011

2ª EDIÇÃO - «POR TERRAS DO ENDOVÉLICO»

Intervenção do Presidente da Câmara Municipal de Alandroal na Sessão de Abertura da 2ª Edição do Evento «Por Terras do Endovélico».
Poet'anarquista
João Maria Grilo
Presidente da Câmara Municipal de Alandroal

Discurso de Abertura da 2ª Edição «Por Terras do Endovélico»

Abrimos hoje a segunda edição do “Por Terras do Endovélico”: Nove Dias à Descoberta do Concelho de Alandroal. Em relação à primeira, realizada há um ano atrás, o evento cresceu – sem esquecer a sustentabilidade – amadureceu e apresenta-se hoje mais próximo dos objectivos com que foi criado.

Nesta segunda edição este evento afirma-se já como o principal momento de promoção do concelho tanto para dentro como para o exterior. Apresentamos hoje um evento multifacetado em que o legado histórico e cultural de Endovélico abre as portas à ciência, à cultura, à música, à gastronomia e às actividades económicas.

Mais do que um momento de festa e de afirmação do concelho – o que também é importante – este é mais um momento de dinamização da economia local com o envolvimento dos restaurantes, dos alojamentos e de outros agentes locais com um fim comum, na linha do que tem sido a nossa actuação global ao criarmos eventos “virados para fora” mas com um profundo envolvimento da comunidade local.

Este ano, o evento surge com uma atenção especial à nossa agricultura e ao nosso tecido produtivo. Num momento em que vão sendo muitas as vozes que se levantam em defesa da interioridade e de um “regresso à terra” como importantes contributos para ultrapassarmos a crise em que mergulhámos – argumentos estes com os quais não poderia estar mais de acordo – apresentamos uma Feira de Actividades Económicas no fim de semana de 01 a 03 de Julho e dois Mercados de Produtos Regionais nos dois Sábados do evento.Tenho a certeza que aqueles que nos visitam e muitos dos nossos munícipes vão ficar surpreendidos com o muito que se faz neste concelho a este nível.

Mas o muito que se faz é o melhor sinal do muito mais que se pode vir a fazer. A agricultura e as agro-industrias têm ainda um enorme potencial de crescimento neste concelho, e esta autarquia vai estar sempre ao lado dos investidores que queiram fazer esta aposta. 
Entendemos ainda que a preservação do mundo rural e da sua cultura e tradições é também um factor crucial para a consolidação do Alandroal como destino turístico, no contexto de Alqueva e do Alentejo. Sem esta aposta não teremos nada de diferenciador para oferecer a quem nos visita.

Ao nível da gastronomia apostamos este ano na simplicidade e riqueza do que a nossa terra dá de melhor – o pão, o azeite, a azeitona, o tomate... – e apresentamos, durante os nove dias nos restaurantes aderentes, a “Mostra Gastronómica do Gaspacho”. Na essência, talvez o mais simples dos pratos alentejanos, mas com uma riqueza e diversidade de acompanhamentos que por certo surpreende.

À ciência, em particular à Arqueologia, está também reservado um papel de destaque. Nas palestras de Sábado, dia 02 de Julho, vamos contactar com as últimas investigações ligadas ao deus Endovélico, assim como com outros trabalhos de Arqueologia em desenvolvimento no concelho neste momento, em particular no que diz respeito à revisão da Carta Arqueológica do Concelho, iniciada por nossa iniciativa neste mandato.

Sejamos claros, os objectivos do município ao evocar a figura de Endovélico como cartão de visita da região e “mestre de cerimónias” deste evento são puramente culturais, históricos, educacionais e promocionais. O culto a Endovélico, onde e nas formas em que exista, é algo que respeitamos e que deixamos ao cuidado dos directamente envolvidos.

No passado dia 18 de Maio foi apresentado, no Museu Nacional de Arqueologia, um novo conjunto escultórico romano encontrado no Santuário a Endovélico, em S. Miguel da Mota. Recomendo vivamente a todos uma visita a esta exposição. Este novo conjunto, associado ao que já vinha sendo adicionado às colecções do museu desde os trabalhos de Leite de Vasconcelos, e que corresponde a cerca de 90 peças, são a prova da importância impar deste legado a nível nacional. Às vozes que defendem o regresso destas peças ao Alandroal, deixem-me que vos diga com toda a franqueza, dada a sua importância, nunca o Museu Nacional de Arqueologia o permitiria. Contudo, é possível encontrar soluções de partilha do espólio, e é nisso que temos estado a trabalhar. Posso anunciar que já convidei os investigadores que têm desenvolvido trabalho ligado a Endovélico, professores Carlos Fabião, Thomas Schatnner e Amílcar Guerra para, em conjunto com o Doutor Luís Raposo, Director do Museu Nacional de Arqueologia, constituírem a comissão científica do projecto do “Centro Interpretativo do Endovélico”, que contamos ter concluído antes do final do mandato.

Por fim, quero salientar que não esquecemos que apresentamos este certame num cenário de crise e de grandes dificuldades para as famílias. Este é um evento pensado e desenvolvido com grande contenção orçamental. Os fundos comunitários obtidos no âmbito da “Rede Terras do Sol” permitem fazer face às despesas com os espectáculos e outras despesas associadas ao evento até cerca de 50% do investimento total. E o total de investimento é, seguramente 10 vezes menos – repito, 10 vezes menos – do que foi gasto em equivalente evento promocional realizado no mandato anterior e que ainda hoje estamos a pagar. Só com muito trabalho e muita imaginação é possível oferecer um evento equilibrado como este, sem comprometer os esforços de canalização de recursos para onde estão as principais necessidades: a acção social, a educação, o apoio às famílias.

Por isso quero agradecer a todos os que estão a dar o seu contributo para a realização deste evento, às unidades de turismo, aos restaurantes, aos expositores... sem a vossa colaboração nada disto seria possível. Quero agradecer também o extraordinário trabalho de equipa, de entrega e de envolvimento de um grupo de pessoas que sendo autarcas, funcionários ou colaboradores da autarquia tem em comum o amor a esta terra e a vontade de a ver crescer e afirmar-se. Quando a entrega é total, os resultados aparecem, e não se pode pedir mais.

A todos muito obrigado!
Fonte: MUDA

HINO À POESIA

Já por mais que uma vez fiz referência no Poet'anarquista a Guilherme de Almeida. Por se tratar de um poeta brasileiro que muito aprecio, e pela coincidência (ou não) de ter sido um ilustre poeta alandroalense quem, pela primeira vez me deu a conhecer a sua poesia, faço agora publicação com dedicatória a José Camões Galhardas que solicitou a busca na web do poema «Esta Vida».
Poet'anarquista
Guilherme de Almeida
Poeta Brasileiro

«ESTA VIDA»


Um sábio me dizia: esta existência,
não vale a angústia de viver. A ciência,
se fôssemos eternos, num transporte
de desespero inventaria a morte.
Uma célula orgânica aparece
no infinito do tempo. E vibra e cresce
e se desdobra e estala num segundo.
Homem, eis o que somos neste mundo.


Assim falou-me o sábio e eu comecei a ver
dentro da própria morte, o encanto de morrer.


Um monge me dizia: ó mocidade,
és relâmpago ao pé da eternidade!
Pensa: o tempo anda sempre e não repousa;
esta vida não vale grande coisa.
Uma mulher que chora, um berço a um canto;
o riso, às vezes, quase sempre, um pranto.
Depois o mundo, a luta que intimida,
quadro círios acesos : eis a vida.


Isto me disse o monge e eu continuei a ver
dentro da própria morte, o encanto de morrer.


Um pobre me dizia: para o pobre
a vida, é o pão e o andrajo vil que o cobre.
Deus, eu não creio nesta fantasia.
Deus me deu fome e sede a cada dia
mas nunca me deu pão, nem me deu água.
Deu-me a vergonha, a infâmia, a mágoa
de andar de porta em porta, esfarrapado.
Deu-me esta vida: um pão envenenado.


Assim falou-me o pobre e eu continuei a ver,
dentro da própria morte, o encanto de morrer.


Uma mulher me disse: vem comigo!
Fecha os olhos e sonha, meu amigo.
Sonha um lar, uma doce companheira
que queiras muito e que também te queira.
No telhado, um penacho de fumaça.
Cortinas muito brancas na vidraça
Um canário que canta na gaiola.
Que linda a vida lá por dentro rola!


Pela primeira vez eu comecei a ver,
dentro da própria vida, o encanto de viver.

Guilherme de Almeida

sábado, 25 de junho de 2011

LITERATURA - GEORGE ORWELL

Eric Arthur Blair, mais conhecido pelo pseudónimo de George Orwell, nasceu em Motihari, Bihar, na Índia Britânica, a 25 de Junho de 1903. Grande escritor e jornalista inglês, toda a sua obra foi marcada pela perspicaz inteligência que possuía, com um sentido de humor muito apurado, enorme consciência das injustiças sociais e uma oposição clara ao totalitarismo. A sua crença no socialismo democrático sofreu grande abalo com o socialismo real, cuja denúncia põe em evidência na extraordinária fábula satírica «Animal Farm». Considerado um dos melhores cronistas, senão mesmo o melhor da cultura inglesa do séc. XX, escreveu obras de ficção, peças jornalísticas bastante polémicas, crítica literária e poesia. Orwell faleceu a 21 de Janeiro de 1950 em Camden, Londres, na Inglaterra.
Poet'anarquista
George Orwell
Escritor Inglês

«Propaganda»
 George Orwell

«A Revolução dos Bichos»
George Orwell
BREVE BIOGRAFIA

George Orwell, pseudónimo de Eric Arthur Blair, nasceu em 1903, em Bengala (Índia). 

Filho de um funcionário britânico e uma francesa, muda-se para a Inglaterra em 1911, e vai para um internato. 

De 1917 a 1921, estuda no Eton College, uma das mais tradicionais escolas inglesas, onde tem aulas com o escritor Aldous Huxley. 

Em 1922, recusa uma bolsa para a universidade e volta à Índia para trabalhar na polícia imperial. 

Regressa a Inglaterra em 1928. Vivendo na pobreza, chega mesmo à mendicância vagueando por Londres e Paris até meados de 1930.

Em 1933, publica o seu primeiro livro, «Na Pior em Paris e Londres». 

Assumido socialista, vai para a Espanha em 1936 lutar na Brigada Internacional, em apoio ao recém-eleito governo popular.

Lutando na Espanha em 1938, narra as suas experiências na Guerra Civil Espanhola. 

Durante a Segunda Guerra Mundial, Orwell trabalha como correspondente de guerra para a BBC.

Em 1945, publica «A Revolução dos Bichos», até hoje considerada a sua obra mais popular.

Entre outras obras, escreveu também «Dias na Birmânia» de 1934, «O Caminho de Wigan» de 1937 e «Por Que Escrevo» de 1946. 

Outro livro conhecido em todas as línguas é o seu romance «1984», escrito em 1949, uma sátira pessimista sobre a ameaça de tirania política no futuro.

George Orwell morreu em 1950, na Inglaterra, em consequência de uma tuberculose.
Fonte: NetSaber
«A REVOLUÇÃO DOS BICHOS»

FÁBULA DE GEORGE ORWELL

sexta-feira, 24 de junho de 2011

SABORES DO ALENTEJO

A 2ª edição do evento «Por Terras do Endovélico», entre 25 de Junho e 3 de Julho de 2011, vai proporcionar à população do Concelho de Alandroal, e a todos que nos visitem nestes nove dias de festividade, a «Mostra Gastronómica do Gaspacho». Bem fresquinho, como convém para a época, acompanhado com bom presunto, enchidos alentejanos, batata frita e regado com o delicioso néctar dos deuses. Vem saborear o gaspacho «Por Terras do Endovélico!».
Poet'anarquista
Mostra Gastronómica de Gaspacho
Programa - «Por Terras do Endovélico»

Organização: Câmara Municipal de Alandroal
Vila d'Landroal

«CONTOS DO NASCER DA TERRA»

Mia Couto
Escritor Moçambicano

XVII CONTO - «Falas do velho tuga»

«Aos Portões da Eternidade»
Vincent van Gogh

FALAS DO VELHO TUGA

Quer que eu lhe fale de mim, quer saber de um velho asilado que nem sequer é capaz de se mexer da cama? Sobre mim sou o menos indicado para falar. E sabe porquê? Porque estranhas névoas me afastaram de mim. E agora, que estou no final de mim, não recordo ter nunca vivido.
Estou deitado neste mesmo leito há cinco anos. As paredes em volta parecem já forrar a minha inteira alma. Já nem distingo corpo do colchão. Ambos têm o mesmo cheiro, a mesma cor: o cheiro e cor da morte. Morrer, para mim, sempre foi o grande acontecimento, a surpresa súbita. Afinal, não me coube tal destino. Vou falecendo nesta grande mentira que é a imobilidade.
Também eu amei uma mulher. Foi há tempo distante. Nessa altura, eu receava o amor. Não sei se temia a palavra ou o sentimento. Se o sentimento me parecia insuficiente, a palavra soava a demasiado. Eu a desejava, sim, ela inteira, sexo e anjo, menina e mulher. Mas tudo isso foi noutro tempo, ela era ainda de tenrinha idade.
Este lugar é a pior das condenações. Já nem as minhas lembranças me acompanham. Quando eu chamo por elas me ocorrem pedaços rasgados, cacos desencontrados. Eu quero a paz de pertencer a um só lugar, a tranquilidade de não dividir memórias. Ser todo de uma vida. E assim ter a certeza que morro de uma só única vez. Mas não: mesmo para morrer sofro de incompetências. Eu deveria ser generoso a ponto de me suicidar. Sem chamar morte nem violentar o tempo. Simplesmente deixarmos a alma escapar por uma fresta.
Ainda há dias um desses rasgões me ocorreu por dentro. É que me surgiu, mais forte que nunca, esse pressentimento de que alguém me viria buscar. Fiquei a noite às claras, meus ouvidos esgravatando no vão escuro. E nada, outra vez nada. Quando penso nisso um mal-estar me atravessa. Sinto frio mas sei que estamos no pico do Verão. Tremuras e arrepios me sacodem. Me recordo da doença que me pegou mal cheguei a este continente.
África: comecei a vê-la através da febre. Foi há muitos anos, num hospital da pequena vila, mal eu tinha chegado. Eu era já um funcionário de carreira, homem feito e preenchido. Estava preparado para os ossos do ofício mas não estava habilitado às intempéries do clima. Os acessos da malária me sacudiam na cama do hospital apenas uma semana após ter desembarcado. As tremuras me faziam estranho efeito: eu me separava de mim como duas placas que se descolam à força de serem abanadas. Em minha cabeça, se formavam duas memórias. Uma, mais antiga, se passeava em obscura zona, olhando os mortos, suas faces frias. A outra parte era nascente, reluzcente, em estreia de mim. Graças à mais antiga das doenças, em dia que não sei precisar, tremendo de suores, eu dava à luz um outro ser, nascido de mim.
Fiquei ali, na enfermaria penumbrosa, intermináveis dias. Uma estranha tosse me sufocava. Da janela me chegavam os brilhos da vida, os cantos dos infinitos pássaros. Estar doente num lugar tão cheio de vida me doía mais que a própria doença.
Foi então que eu vi a moça. Branca era a bata em contraste com a pele escura: aquela visão me despertava apetites no olhar. Ela se chamava Custódia. Era esta mesma Custódia que hoje está connosco. Na altura, ela não era mais que uma menina, recém- saída da escola. Eu não podia adivinhar que essa mulher tão jovem e tão bela me fosse acompanhar até ao final dos meus dias. Foi a minha enfermeira naqueles penosos dias. A primeira mulher negra que me tocava era uma criatura meiga, seus braços estendiam uma ponte que vencia os mais escuros abismos.
Todas as tardes ela vinha pelo corredor, os botões do uniforme desapertados, não era a roupa que se desabotoava, era a mulher que se entreabria. Ou será que por não ver mulher há tanto tempo eu perdera critério e até uma negra me porventurava? Me admirava a secura daquela pele, o gesto cheio de sossegos, educado para maternidades. Enquanto rodava pelo meu leito eu tocava em seu corpo. Nunca acariciara tais carnes: polposas mas duras, sem réstia de nenhum excesso.
Os dias passavam, as maleitas se sucediam. Até que, numa tarde, me assaltou um vazio como se não houvesse mundo. Ali estava eu, na despedida de ninguém. Olhei a janela: um pássaro, pousado no parapeito, recortava o poente. Foi nesse pôr do Sol que Custódia, a enfermeira, se aproximou. Senti seus passos, eram passadas delicadas, de quem sabe do chão por andar sempre descalço.
- “Eu tenho um remédio”, disse Custódia. “É um medicamento que
usamos na nossa raça. O Senhor Fernandes quer ser tratado dessa maneira?
- “Quero.
- “Então, hoje de noite lhe venho buscar”.
E saiu, se apagando na penumbra do corredor. Como em caixilho de sombra a sua figura se afastava, imóvel como um retrato. Na janela, o pássaro deixou de se poder ver. Adormeci, doído das costas, a doença já tinha aprisionado todo meu corpo. Acordei comum sobressalto. Custódia me vestia uma bata branca, bastante hospitalar.
- “Onde vamos?
- “Vamos”.
E fui, sem mais pergunta, tropeçando pelo corredor. Dali parei a tomar fôlego e, encostado na umbreira da porta, olhei o leito onde lutara contra a morte. De repente, estranhas visões me sobressaltaram: deitado, embrulhado nos lençóis, estava eu, desorbitado. Meus olhos estavam sendo comidos pelo mesmo pássaro que atravessara o poente. Gritei “Custódia, quem está na minha cama?” Ela espreitou e riu-se:
- “É das febres, ninguém está lá”.
Fui saindo, torteando o passo. Afastámo-nos do hospital, entramos pelos trilhos campestres. Naquele tempo, as palhotas dos negros ficavam longe das povoações. Caminhava em pleno despenhadeiro, o pequeno trilho resvalava as infernais e desluzidas profundezas. Me perdi das vistas, mais tombado que amparado nesse doce corpo de Custódia. Voltei a acordar como se subisse por uma fresta de luminosidade. Aquela luz fugidia me pareceu, primeiro, o pleno dia.
Mas depois senti o fumo dessa ilusão. O calor me confirmou: estava frente a uma fogueira. O calor da cozinha da minha infância me chegou. Escutei o roçar de longas saias, mulheres mexendo em panelas. Saí da lembrança, dei conta de mim: estava nu, completamente despido, deitado em plena areia.
- “Custódia!”, chamei.
Mas ela não estava. Somente dois homens negros baixavam os olhos em mim. Me deu vergonha ver-me assim, descascado, alma e corpo despejados no chão. Malditos pretos, se preparavam para me degolar? Um deles tinha uma lamina. Vi como se agachava, o brilho da lamina me sacudiu. Gritei: aquela era a minha voz? Me queriam matar, eu estava ali entregue às puras selvajarias, candidato a ser esquartejado, sem dó na piedade. Me desisti, desvalente, desvalido. De nada lucrava recusar os intentos do negro. O homem cortou-me, sim. Mas não passou de uma pequena incisão no peito. Sangrei, fiquei a ver o sangue escorrer, lento como um rio receoso.
Um dos homens falou em língua que eu desconhecia, seus modos eram de ensonar a noite, a voz parecia a mão de Custódia quando ela me empurrava para o sonho. Voltei a deitar-me. Só então reparei que havia uma lata contendo um líquido amarelado. Com esse líquido me pintavam, em besuntação danada. Depois, me ajeitaram o pescoço para me fazerem beber um amargo licor. Choravam, pareceu-me de início. Mas não: cantavam em surdina. Dores de morrer me puxavam as vísceras. Vomitei, vomitei tanto que parecia estar-me a atirar fora de mim, me desfazendo em babas e azedos. Cansado, sem fôlego nem para arfar, me apaguei.
 No outro dia, acordei, sem estremunhações. Estava de novo no hospital, vestido de meu regulamentar pijama. Qualquer coisa acontecera? Eu tinha saído em deambulação de magias, rituais africanos? Nada parecia. Verdade era que eu me sentia bem, pela primeira vez me chegavam as forças. Me levantei como uma toupeira saída da pesada tampa do escuro. Primeira coisa: fui à janela. A luz me cegou. Podia haver tantas cores, assim tão vivas e quentes?
Foi então que eu vi as árvores, enormes sentinelas da terra. Nesse momento aprendia espreitar as árvores. São os únicos monumentos em África, os testemunhos da antiguidade. Me diga uma coisa: lá fora ainda existem? Pergunto sobre as árvores.
Quer saber mais? Agora estou cansado. Tenho que respirar muito. Há tanto tempo que eu não falava assim, às horas de tempo. Não vá ainda, espere. Vamos fazer uma combinação: você divulga estas minhas palavras lá no jornal de Portugal - como é que se chama mesmo o tal jornal? - e depois me ajuda a procurar a minha família. É que sabe: eu só posso sair daqui pela mão deles. Senão, que lugar terei lá no mundo? Traga-me um qualquer parente. Quem sabe, depois disso, ficamos mesmo amigos. Você sabe como eu confirmo que estou ficando velho? É da maneira que não faço mais amigos. Aqueles de que me lembro são os que eu fiz quando era novo. A idade nos vai minguando, já não fazemos novas amizades. Da próxima vez venha com um parente. Ou faça mesmo o senhor de conta que é meu familiar.

Mia Couto
Até prá semana...
Poet'anarquista

POESIA - SÃO JOÃO DA CRUZ

São João da Cruz nasceu a 24 de Junho de 1542, em Fontiveros, província da cidade de Ávila, em Espanha. Este frade carmelita e poeta espanhol, ficou famoso na sua época pelos poemas místicos e frases célebres. São João da Cruz, tornado «Patrono dos Poetas Espanhóis» em 1952, faleceu em Úbeda, província de Jaén em Espanha, a 14 de Dezembro de 1591.
Poet'anarquista
São João da Cruz
Poeta Espanhol
BIOGRAFIA

São João da Cruz nasceu em 1542 em Fontiveros, província de Ávila, na Espanha. Seus pais se chamavam Gonzalo de Yepes e Catalina Alvarez. Gonzalo pertencia a uma família de posses da cidade de Toledo. Por ter-se casado com uma jovem de classe «inferior» foi deserdado por seus pais e tornou-se tecelão de seda.
Em 1548, a família muda-se para Arévalo. Em 1551 transfere-se para Medina del Campo, onde o futuro reformador do Carmelo estuda numa escola destinada a crianças pobres. Por suas aptidões, torna-se empregado do director do Hospital de Medina del Campo. Entre 1559 a 1563 estuda Humanidades com os Jesuítas. 
Ingressou na Ordem dos Carmelitas aos vinte e um anos de idade, em 1563, quando recebe o nome de Frei João de São Matias, em Medina del Campo. Pensa em tornar-se irmão leigo, mas os seus superiores não o permitiram. Entre 1564 e 1568 faz a sua profissão religiosa e estuda em Salamanca. Tendo concluído com êxito os seus estudos teológicos, em 1567 ordena-se sacerdote e celebra a sua Primeira Missa.
Infelizmente, ficou muito desiludido pelo relaxamento da vida monástica em que viviam os conventos carmelitas. Decepcionado, tenta passar para a Ordem dos Cartuxos, ordem muito austera, na qual poderia viver a severidade da vida religiosa à que se sentia chamado. Em setembro de 1567 encontra-se com Santa Teresa, que lhe fala sobre o projecto de estender a Reforma da Ordem Carmelita também aos padres. O jovem de apenas vinte e cinco anos de idade aceitou o desafio. Trocou o nome para João da Cruz. No dia 28 de novembro de 1568, juntamente com Frei António de Jesus Heredia, inicia a Reforma. 
O desejo de voltar à mística religiosidade do deserto custou ao santo fundador maus tratos físicos e difamações. 
Em 1577 foi preso por oito meses no cárcere de Toledo. Nessas trevas exteriores acendeu-se-lhe a chama de sua poesia espiritual. Padecer e depois morrer era o lema do autor da «Noite Escura da Alma», da «Subida do Monte Carmelo», do «Cântico Espiritual» e da «Chama de Amor Viva».

«Obras Completas»
São João da Cruz

Talvez a mais bela e completa descrição física e espiritual do Santo Fundador tenha sido feita por Frei Eliseu dos Mártires que com ele conviveu em Baeza: «Homem de estatura mediana, de rosto sério e venerável. Um pouco moreno e de boa fisionomia. O seu trato muito agradável e a sua conversa bastante espiritual, era muito proveitosa para os que o ouviam. Todos os que o procuravam saíam espiritualizados e atraídos à virtude. Foi amigo do recolhimento e falava pouco. Quando repreendia como superior, que o foi muitas vezes, agia com doce severidade, exortando com amor paternal...» 

Santa Teresa de Jesus disse dele: «uma das almas mais puras que Deus tem na sua Igreja. Nosso Senhor  infundiu-lhe grandes riquezas de sabedoria celestial. Mesmo pequeno ele é grande aos olhos de Deus. Não há frade que não fale bem dele, porque a sua vida tem sido uma grande penitência». 

Poucos homens falaram dos sublimes mistérios de Deus na alma e da alma em Deus como São João da Cruz.

Faleceu no convento de Úbeda, aos quarenta e nove anos, no dia 14 de dezembro de 1591, após três meses de sofrimentos atrozes. 

A primeira edição das suas obras deu-se em Alcalá, em 1618. No dia 25 de Janeiro de 1675 foi beatificado por Clemente X. Foi canonizado e declarado Doutor da Igreja por Pio XI . Em 1952 foi proclamado «Patrono dos Poetas Espanhóis».
Fonte: CançãoNova

A NOITE ESCURA DA ALMA
Em uma noite escura
De amor em vivas ânsias inflamada
Oh! Ditosa ventura!
Saí sem ser notada,
´stando já minha casa sossegada.
Na escuridão, segura,
Pela secreta escada, disfarçada,
Oh! Ditosa ventura!
Na escuridão, velada,
´stando já minha casa sossegada.
Em noite tão ditosa,
E num segredo em que ninguém me via,
Nem eu olhava coisa alguma,
Sem outra luz nem guia
Além da que no coração me ardia.
Essa luz me guiava,
Com mais clareza que a do meio-dia
Aonde me esperava
Quem eu bem conhecia,
Em lugar onde ninguém aparecia.
Oh! noite, que me guiaste,
Oh! noite, amável mais do que a alvorada
Oh! noite, que juntaste
Amado com amada,
Amada no amado transformada!

Em meu peito florido
Que, inteiro, para ele só guardava,
Quedou-se adormecido,
E eu, terna o regalava,
E dos cedros o leque o refrescava.

Da ameia a brisa amena,
Quando eu os seus cabelos afagava,
Com sua mão serena
Em meu colo soprava,
E meus sentidos todos transportava.

Esquecida, quedei-me,
O rosto reclinado sobre o Amado;
Tudo cessou. Deixei-me,
Largando meu cuidado
Por entre as açucenas olvidado.
São João da Cruz

quinta-feira, 23 de junho de 2011

«UM VOTO A UM DEUS ESTRANHO»

Por nos encontrar-mos em vésperas da 2ª edição das comemorações «Por Terras do Endovélico», que irão decorrer entre os dias 25 de Junho e 3 de Julho de 2011, achei oportuno fazer publicação do conto escrito por Luís Fernando Galhardas, «Um Voto a um Deus Estranho». Os desenhos que acompanham esta obra ficcional são da autoria de João Paulo Galhardas, e encontram-se no livro «A Voz dos Deuses» do saudoso João Aguiar. O escritor esteve no lançamento da «Carta Arqueológica de Alandroal» (07/01/1994), e ofereceu o livro «A Voz dos Deuses» ao Grupo Técnico de Arqueologia de Campo com honrosa dedicatória: «Para o Grupo Técnico de Arqueologia de Campo. Avante, Endovélico!». Na parte inferior da página onde João Aguiar escreveu a dedicatória, e na página seguinte respectivamente, João Paulo desenhou «Deo Endovélico Sacrum» e o «Templo Romano ao Deus Endovélico». O livro, que se encontrava à sua guarda, está agora em meu poder como seu fiel depositário. Mas o que conta agora para publicação é o maravilhoso conto de ficção, «Um Voto a um Deus Estranho», de Luís Fernando Galhardas!
Poet'anarquista
«Deo Endovélico Sacrum»
Palera/ 94

«Templo Romano ao Deus Endovélico»
Palera/ 94

UM VOTO A UM DEUS ESTRANHO
(Por Luís Fernando Galhardas) 

Caio Jullius Novatus chegara à Península à frente dos exércitos de Roma.
A marcha tinha sido apressada e extenuante, pois eram precisos reforços urgentes para as fustigadas legiões romanas, atormentadas por lutas sem tréguas com as tribos do território, sem vontade de se submeterem à Pax Romana. As promessas do Império eram olhadas com desconfiança e quase sempre rejeitadas com emboscadas mortíferas.
Caio vinha contrariado por abandonar, sabia-se lá por quanto tempo, os prazeres que lhe proporcionavam viver no centro do mundo; e mais ainda por deixar a sua jovem esposa Viveniae Venustae Maniliae, com quem se casara havia pouco mais de um ano, com a atribulada tarefa de zelar na sua ausência, sem outro auxílio que não fosse o da fiel escrava Lívia, pela propriedade da vinha. E para aumentar a sua preocupação e receio um correio que recebera de Roma relatava-lhe o estado de saúde de Viveniae, que pouco tempo depois da sua partida caíra num estado de prostração e febre sem melhoras auspiciosas. 
Nas horas de acalmia e repouso das caminhadas forçadas o seu pensamento reproduzia fielmente a imagem da mulher com quem passeava junto ao Tibre nos fim de tarde encaloradas do estio ou os passeios pela vinha que se derramava desde a casa da encosta, onde habitavam, até perder de vista. E as idas ao Teatro, ao Circo, às Termas, enfim, um turbilhão de recordações que chocavam com o ambiente hostil desta terra de caminhos de pó, de florestas e de gente estranha que os guerreava em grande algazarra quando menos eram esperados.
Naquela tarde as copas das árvores não afastavam, um pouco que fosse, o calor tórrido que parecia ser lançado das entranhas da terra. O jovem Pretor e general romano tinha tomado o pulso aos seus homens e sabia que as suas forças estavam no limite – o que raramente acontecia. Continuar seria duro e imerecido castigo, para além de tremenda imprudência, pois em caso de ataque não haveria forças para combater – era conhecido o gosto dos bárbaros que habitam estas paragens em chacinar tropas desprevenidas enquanto se recompunham da fadiga, a qualquer hora do dia ou da noite. 
Caio viu esconder-se o Sol na clareira da floresta, onde os últimos raios do astro cor de fogo criavam desenhos espectrais. E o bulício da brisa nocturna tropeçando na folhagem do arvoredo levantava suspeita e temor de um inimigo sempre presente na mente de cada legionário – umas noites atrás um soldado que se expusera à claridade de uma fogueira fora varado por um dardo que partira de sítio incerto. Mesmo assim Caio decidiu fazer um passeio pelas imediações, apenas na companhia de um intenso luar que lhe guiava os passos e permitia distinguir, a alguma distância, uma sombra com forma humana, de um vulto animado procurando surpreendê-lo.
Depois de algum tempo vagueando pela floresta ouviu nitidamente o som de água em movimento, que um sopro de vento mais intenso lhe trouxe de longe. – Era um rio, não havia dúvida; –ou era uma queda de água? – não, que o ruído seria diferente. Procurou melhor a direcção de onde vinha, alheado de outros barulhos da noite. Então sentiu a vibração, no seu ouvido apurado, de vozes, vozes de quinze a vinte tonalidades diferentes – a experiência permitia-lhe distinguir com precisão – que ora falavam uma língua incompreensível, ora entoavam cantares e emitiam gritos cadenciados que iam aumentando à medida que se aproximava do local que tinha situado pela audição. Caio manteve todos os sentidos alerta, pois adivinhou a quem pertenciam as vozes e qual seria o seu destino se fosse descoberto. Mas a valentia e curiosidade foram superiores a todos os receios. Dissimulado numa fraga da margem do rio, assistiu à cena como se fosse dia. O luar alumiava um altar de pedra à volta do qual estavam reunidos duas dezenas de homens, vestidos com seus trajes guerreiros e que executavam um ritual, certamente religioso, pois tinham sacrificado um enorme touro em cima de uma pira de madeira que se preparavam para acender. Quando as chamas se elevaram a grande altura, envolvendo o animal morto, todos eles entraram numa espécie de transe e pronunciavam uma palavra que os fazia inclinar a cabeça em direcção à Lua, no meio de cantares e danças ao ritmo da quantidade de cerveja que tinham bebido – qualquer coisa como Endvel, Endvel...
Naquela noite Caio retirou-se como se pairasse sobre o solo do bosque, procurando a escuridão para encobrir o seu regresso ao acampamento, pensativo sobre o culto a que acabava de assistir. O romano afastou-se do local sensibilizado com aqueles homens a quem chamavam gentios mas que conheciam a música e tinham cantares próprios, adoravam um deus a quem faziam sacrifícios e amavam a Lua que lhes iluminava os rituais.
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Não era por acaso que Treboruna chefiava as dez tribos guerreiras que ocupavam desde há muitas gerações o sul da Península. Dizia-se que nascera de adaga e escudo nas mãos, escorraçando os invasores que se intitulavam donos e senhores do mundo. A noite em que nasceu era invernal, a chuva e as trevas não deixavam enxergar a um palmo, o que não impediu o pai de pegar nele e colocá-lo em cima da pedra sagrada do santuário de Endovelico, a quem foi pedida protecção para a criança.
Por vontade divina ou não – os desígnios dos Deuses são insondáveis – o jovem Treboruna cresceu proporcionado em saber e força física e cedo foi persuadido pela convicção de que essas duas condições eram indispensáveis para a sobrevivência do seu povo. Numa dessas reuniões na casa dos chefes, discutia-se um desaire numa emboscada a uma coluna de soldados romanos que terminara numa retirada desordenada, deixando um número importante de mortos no local. Atreveu-se interromper o grande chefe guerreiro Emeridas, que se desdobrava em explicações do sucedido, para lhe dizer que da próxima vez que se montasse um ardil com os estômagos cheios de cerveja o número de baixas seria com certeza maior. O pai ainda lhe deitou a mão ao cinto, para obrigá-lo a sentar-se, mas os que tinham direito a opinião, nessa assembleia de tribos, manifestaram acordo com as palavras sensatas de Treboruna. E o jovem guerreiro passou a ser ouvido com atenção sempre que se tratava de preparar cilada em caminho sinuoso ou assalto a aquartelamento dos legionários, que chegavam em vagas sucessivas com o propósito de conquistar o território.
Treboruna fora eleito chefe natural das dez tribos do sul e tinha consciência que das suas decisões dependia, ou não, escorraçar o invasor. Conhecia o terreno melhor do que ninguém, sabia onde, como e quando atacar um inimigo esmagadoramente superior, conhecia-lhe os pontos fracos, a vulnerabilidade de exército regular e disciplinado nas tácticas em se defender dos ataques surpresa – bastava para isso aos seus homens, sem se exporem, um simples gesto de fazer rolar grandes pedras sobre uma garganta apertada de passagem obrigatória.
A chegada do Pretor Caio Jullius Novatus, apesar de todas as precauções, utilizando batedores e observadores avançados, não iludira o chefe tribal que lhe contava, dia a dia, as passadas dadas no seu território. Sem ser visto, Treboruna via aquele poderoso exército até ao mais ínfimo pormenor, sabendo ao certo a quantidade de lanças, de cavalos, de matilhas de cães ferozes, de catapultas e outras máquinas de guerra que vinham reclamar para Roma uma terra que não lhe pertencia. 
A saída nocturna de Caio fora vigiada muito de perto com agilidade e manha próprias de quem conhecia o sítio de cada árvore, de cada arbusto, de cada pedra daquela floresta imensa. Sem saber, o Pretor era espiado por alguém que se ausentara propositadamente do ritual a que assistira emboscado na escarpa rochosa e lhe seguia o rasto com tal disfarce e leveza que mais parecia a sua própria sombra.
Caio Jullius Novatus tinha uma austeridade própria de soldado romano, difícil de claudicar perante qualquer perigo ou ameaça. A violência dos combates, em que estivera tantas vezes em risco a sua vida, revestira-o com uma carapaça discreta 
mas eficaz.
Treboruna era uma erupção conjugada da natureza, talhado em lutas não só contra os romanos mas também contra os seus irmãos tribais, a quem conquistara o poder que sabia na iminência de ir parar a mãos estrangeiras. O último chefe a desafiá-lo ainda percorreu alguma distância, tetricamente, já com a cabeça decepada, rolando no solo uns metros atrás.
A aparição súbita de Treboruna, como que surgido das profundezas da terra, teve em Caio um efeito paralisador, não por receio mas apenas pelo efeito da surpresa. A claridade da noite dava realce aos contornos do guerreiro, ao mesmo tempo que deixava na penumbra a expressão do seu rosto. O espaço entre os dois era curto e Caio captou-lhe a intenção de não desejar confronto. Em seguida ficou surpreendido porque o ouviu dirigir-se-lhe na sua língua, tão difícil para estes povos empenhados em resistir à vontade de Roma. Sabia por demais Treboruna que dominar-lhes o idioma era estar por dentro de segredos de outro modo intransponíveis – interceptando mensageiros podia conhecer previamente planos de ataque, mapas de estradas, pontes, fortificações militares e atingir com precisão a alma do exército romano. 
Desde o cair da noite tivera várias oportunidades de cortar também com precisão a garganta de Caio e no entanto não o fizera – mestre em golpes de surpresa, a presença isolada do enviado de César quebrara-lhe o instinto da traição. 
C. Jullius Novatus ouviu a voz austera que saía do fundo do peito de Treboruna, deixando adivinhar um rosto crispado e decidido, sob o manto da noite: –podeis enviar vagas sucessivas de legiões para nos submeter, a nossa vontade e determinação é superior à força dos exércitos de todo o Império Romano... defendemos a nossa terra sagrada, os nossos povoados, o santuário do deus santo Endovelico – que profanaste esta noite com o teu olhar, encoberto no penhasco – e também os espíritos dos nossos antepassados, cujo desejo de manter livre este chão é um dever que mantemos vivo em cada um de nós.
O romano achou por bem manter um silêncio defensivo perante as palavras inflamadas do guerreiro, com quem também não desejava luta. Com passo decidido – deslizou tão perto do adversário que este deu um salto para lhe dar passagem – encaminhou-se para o acampamento e nessa noite nada mais se ouviu na floresta para além do piar das aves nocturnas embalado pelas danças ritmadas do vento.
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Caio acordou já o dia clareava, preenchendo imediatamente o seu pensamento com o encontro inesperado de véspera – o que lhe provocou a suspeição de ter ocupado igualmente o descanso nocturno com intensa divagação sobre o sucedido. Ficara impressionado com o personagem que lhe interrompera a deambulação noctívaga pela mata, ao ponto de sentir alguma irritação com o tom das palavras com que fora abordado. Certamente para o atemorizar, provocando um estado de espírito de insegurança que atingindo o chefe se reflectiria em todos os seus homens. Mas também era certo que não o quis molestar, pois confundido com as sombras da noite tê-lo-ia matado à traição com toda a facilidade.
Nessa manhã, quando Caio espreitou o dia, através da cortina dos seus aposentos, viu chegar um estafeta vindo de Roma. Entre ordens de justiça e militares e notícias de outras bandas do mundo romano, vinha uma missiva de Viveniae que lhe comunicava a cura da sua doença e o prenúncio de uma boa colheita. 
Caio sorriu, inspirando fundo a frescura da aragem matinal e contemplando o céu límpido que cobria a clareira da floresta – deu graças.
O maior exército romano que até então invadira a Península dirigiu-se para norte, “em busca” desses povos que, teimosamente, contrariavam o poder do Império.
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Muitos séculos depois foi identificada, num local de culto a Endovelico, uma inscrição latina que diz – “C. JULLIUS NOVATUS ENDOVELLICO PRO SALUTE VIVENIAE VENUSTAE MANILIAE VOTUM SOLVIT” ( em cumprimento de voto pela saúde de Viveniae Venustae Maniliae ). 
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Este relato é uma ficção mas não só. Os nomes latinos de C. Jullius Novatus e de Viveniae Venustae Maniliae são de indivíduos que se apresentam como romanos – os tria nomina – embora possam ter origem peninsular. Provavelmente eram marido e mulher e, pelo menos, passaram na região que é hoje o concelho de Alandroal. Talvez aí tenham vivido e conheceram seguramente o culto a Endovelico. Viveniae esteve doente e Caio fez um voto a Endovelico, pela sua saúde, como o atesta a epígrafe que chegou até nós. Dela nos dá conta Leite de Vasconcellos na sua obra “Religiões da Lusitânia”. Um moçárabe de nome Galvo e de profissão mestre de obras, constructor do castelo de Alandroal, retirou um documento epigráfico latino, certamente já da Ermida de S. Miguel da Mota mas em cumprimento de voto a Endovelico, onde constam os referidos nomes de origem romana e cimentou-o no pano da muralha do castelo. Em anos recentes e por “motivos desconhecidos”, esse documento foi sacado do sítio que Galvo elegeu para o eternizar e esteve alguns anos depositado a um canto da praça de armas do castelo de Alandroal. Finalmente desapareceu sem deixar rasto. Aqui fica o seu registo, ao jeito de ficção.

Luis Fernando Galhardas