domingo, 31 de maio de 2015

CARTOON versus SONETO

Sem Provas Dadas
HenriCartoon

«SEM PROVAS DADAS»

- Estudar?...  seca ter que ler
Para os exames nacionais…
Avô, que pode acontecer
Se não fizer provas globais??

- Ordem de prisão, meu menino…
Sem as provas, estás perdido!
Vê o que sucedeu ao Isaltino,
Mesmo sem elas, foi detido...

- Ouvi falar que esteve preso,
Com provas, tudo aprovado,
E num repente saiu ileso...

- Isso foi antes de ser ilibado...
Agora diz estar repeso
Porque nada foi provado!!

POETA

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

THE WATERBOYS - «Strange Boat»

Poet'anarquista

BARCO ESTRANHO 

Estamos navegando num barco estranho
Indo para uma praia estranha
Estamos navegando num barco estranho
Indo para uma praia estranha
Transportando carga estranha
Que já foi transportada a bordo

Estamos navegando num mar estranho
Soprado por um vento estranho
Estamos navegando num mar estranho
Soprado por um vento estranho
Transportando tripulação estranha
Que nunca pecou

Estamos andando num carro estranho
Estamos seguindo uma estrela estranha
Estamos subindo na escada estranha
Que sempre lá esteve para subir

Estamos vivendo numa época estranha
Trabalhando para um objetivo estranho
Estamos vivendo numa época estranha
Trabalhando para um objetivo estranho
Estamos virando a carne e o corpo
Na alma

The Waterboys
Banda Britânica

«CANÇÃO DE MIM MESMO», POR W. WHITMAN

«Canção de Mim Mesmo»
Poema de Walt Whitman

CANÇÃO DE MIM MESMO

I.
Eu celebro o eu, num canto de mim mesmo,
E aquilo que eu presumir também presumirás,
Pois cada átomo que há em mim igualmente habita em ti.

Descanso e convido a minha alma,
Deito-me e descanso tranquilamente, observando uma haste da relva de verão.

Minha língua, todo átomo do meu sangue formado deste solo, deste ar,
Nascido aqui de pais nascidos aqui de pais o mesmo e seus pais também o mesmo,
Eu agora com trinta e sete anos de idade, com saúde perfeita, dou início,
Com a esperança de não cessar até morrer.

Crenças e escolas quedam-se dormentes
Retraindo-se por hora na suficiência do que não, mas nunca esquecidas,
Eu me refugio pelo bem e pelo mal, eu permito que se fale em qualquer casualidade,
A natureza sem estorvo, com energia original.

II.
Casas e cómodos cheios de perfumes, prateleiras apinhadas de perfumes,
Eu mesmo respiro a fragrância, a reconheço e com ela me deleito,
A essência bem poderia inebriar-me, mas não permitirei.

A atmosfera não é um perfume, mas tem o gosto da essência, não tem odor,
Existe para a minha boca, eternamente; estou por ela apaixonado
Irei até a colina próxima da floresta, despir-me-ei de meu disfarce e ficarei nu,
Estou louco para que ela entre em contacto comigo.

A fumaça da minha própria respiração,
Ecos, sussurros, murmúrios vagos, amor de raiz, fio de seda, forquilha e vinha,
Minha expiração e inspiração, a batida do meu coração, a passagem de sangue e de ar através de meus pulmões,

O odor das folhas verdes e de folhas ressecadas, da praia e das pedras escuras do mar, e de palha no celeiro,

O som das palavras expelidas de minha voz aos remoinhos do vento,

Alguns beijos leves, alguns abraços, o envolvimento de um abraço,
A dança da luz e a sombra nas árvores, à medida que se agitam os ramos flexíveis,

O deleite na solidão ou na correria das ruas, ou nos campos e colinas,
O sentimento de saúde, o gorjeio do meio-dia, a canção de mim mesmo erguendo-se da cama e encontrando o sol.

Achaste que mil acres são demais? Achaste a terra grande demais?
Praticaste tanto para aprender a ler?
Sentiste tanto orgulho por entenderes o sentido dos poemas?

Fica esta noite e este dia comigo e será tua a origem de todos os poemas,

Será teu o bem da terra e do sol (há milhões de sóis para encontrar),

Não possuíras coisa alguma de segunda ou de terceira mão, nem enxergarás através do olhos de quem já morreu, nem te alimentarás outra vez dos fantasmas que há nos livros.

Do mesmo modo não verás mais através de meus olhos, nem tampouco receberás coisa alguma de mim,

Ouvirás o que vem de todos os lados e saberás filtrar tudo por ti mesmo.

III.
Eu ouvi a conversa dos falantes, a conversa sobre o início e sobre o fim,
Mas não falo nem do início nem do fim.

Nunca houve mais iniciativa do que há agora,
Nem mais juventude ou idade do que há agora,
E jamais haverá mais perfeição do que há agora,
Nem mais paraíso ou inferno do que há agora,

O anseio, o anseio, o anseio,
Sempre o anseio procriador do mundo.

Na obscuridade a oposição equivale ao avanço, sempre substância e acréscimo, sempre o sexo,
Sempre um nó de identidade, sempre distinção, sempre uma geração de vida.
Não vale elaborar, eruditos e ignorantes sentem que é assim.

Certeza tal como a mais certa certeza, aprumados em nossa verticalidade, bem fixados, suportados em vigas,

Robustos como um cavalo, afectuosos, altivos, eléctricos,
Eu e este mistério aqui estamos, de pé.

Clara e doce é minha alma e claro e doce é tudo aquilo que não é minha alma.
Faltando um falta o outro, e o invisível é provado pelo visível
Até que este se torne invisível e receba a prova por sua vez.

Apresentando o melhor e isolando do pior, a idade agasta a idade,
Conhecendo a adequação e a equanimidade das coisas, enquanto eles discutem eu mantenho-me em silêncio e vou me banhar e admirar a mim mesmo.

Bem-vindo é todo órgão e atributo de mim, e também os de todo homem cordial e limpo.
Nenhuma polegada ou qualquer partícula de uma polegada é vil e nenhum será menos familiar que o resto.

Estou satisfeito – vejo, danço, rio, canto;

Quando o companheiro amoroso dorme abraçado a mim a noite inteira e depois vai embora ao raiar do dia com passos silenciosos,

Deixando-me cestas cobertas com toalhas brancas enchendo a casa com sua exuberância,

Devo adiar minha aceitação e compreensão e gritar pelos meus olhos,
Para que deixem de fitar a estrada ao longe e para além dela
E imediatamente calculem e mostrem-me para um centavo,
O valor exacto de um e o valor exacto de dois, e o que está à frente?

IV.
Traiçoeiros e curiosos estão à minha volta
Pessoas com quem me encontro, os efeitos que a minha infância tem sobre mim, ou o bairro e a cidade em que vivo, ou a nação,

As últimas datas, descobertas, invenções, sociedades, autores antigos e novos,
Meu jantar, roupas, amigos, olhares, cumprimentos, dívidas,

A indiferença real ou fantasiosa de um homem ou mulher que eu amo,
A doença de alguém de minha gente ou de mim mesmo, ou ato doentio, ou perda ou falta de dinheiro, depressões ou exaltações,

Batalhas, os horrores da guerra fratricida, a febre de notícias duvidosas, os terríveis eventos;
Essas imagens vêm a mim dia e noite, e partem de mim outra vez,
Mas não são o meu verdadeiro Ser.

Longe do que puxa e do que arrasta, ergue-se o que de fato eu sou,
Ergue-se divertido, complacente, compassivo, ocioso, unitário,

Olha para baixo, está erecto, ou descansa o braço sobre certo apoio impalpável,
Olhando com a cabeça pendida para o lado, curioso sobre o que está por vir,
Tanto dentro como fora do jogo, e o assistindo, e intrigado por ele.

No passado vejo meus próprios dias quando suei através do nevoeiro com linguistas e contendores,
Não trago zombarias ou argumentos, apenas testemunho e aguardo.

(…)

Walt Whitman

OUTROS CONTOS

«Improviso para Duas Estrelas de Papel», por Mário Cláudio.

«Improviso para Duas Estrelas de Papel»
Conto de Mário Cláudio

519- «IMPROVISO PARA DUAS ESTRELAS DE PAPEL»

São estrelas construídas sem paciência nem esperança, tão dadas às espirais da tormenta como ao toque silícico das longas línguas de saibro.

No chão articulam o catre-de-campanha, estremecem no abraço pelo trepidar do autocarro, erguem-se na madrugada para o duche repentino. Despertam o filho de bruços no beliche inferior, retiram-lhe o pijama, vestem-no para a escola. Saem para a rua onde rompe acarvoada a manhã, e os jornais pendem lívidos dos escaparates, e longas fileiras se cerram compactas nas paragens hirtas. Na chuva escalam o casario azul, com uma catedral sombria dominando vidas, varandas deitadas para vielas escorregadias, paredes de seminários e palácios transidas de invernia e musgo esfarelado. Exercitam a ternura contra uma e outra perspectiva de clarabóias e miradouros, telhados e escadórios, fachadas de azulejo e mercados marginais. Ficam sem escuna que os receba, Simões Botelho por sentenciar, os dentes cerrando todos os desafios, resignados às mãos entre mãos. A si mesma se cerca a cidade, exterminando o espaço em seu redor, concentrada lei que nenhuma infracção humaniza.

Começam insofridas por ensaiar o voo muito junto à terra, entre a extensão das searas e a cúpula aberta e translúcida.

Deixam um automóvel arfante, invadem o jardim dos organismos públicos, cortam a compósita flor que para sempre enquadra o dia. «É preciso morrer», dizem, encostando à boca o espelho dos moribundos; «é preciso beber», dizem, descobrindo países. Pernoitam em hospedarias clandestinas, com telefones desligados de medo, ramas de pinheiro, marcas de cerâmica, lâminas. Para eles se aparta o reposteiro escarlate, se lhes deparam os retratos régios, estáticos de veludos e carbúnculos, a história se entorpece de minúsculos canteiros interiores e de buxo.

No rasto das estrelas, pelos sulcos da fome, se abandonam guiados, tranquilos e loucos, Joana perseguindo o cadáver do homem pelas estradas de Espanha adustíssima, entre chufas de canalha e excrementos de mula.

O filho relata a estranha genética, reclama o direito de resultar, como todos os filhos que se sabem, do ventre virgem do pai. Divide a giz brinquedos e cobertores, fábulas e passeios de domingo.

Como diferem das estrelas as estrelas, rochas de fogo que nunca se cruzam, seguem além de além, trajectória que não se interrompe nem altera!

Realizam assim seu contrabando de violetas bravas, à revelia de mulheres legítimas e amigos estatutários. Dormem pelas valetas, acordam sacudidos de riso, a bombazine das calças tingida do amarelo poeirento das mimosas. Alimentam-se de pão e de queijo e de vinho clarete. Descansam a sesta contra a nave dos conventos galegos, com seus retábulos de oiro e seus palmares, trazidos ambos de uma América que os olhos de um nos olhos de outro já não precisam de alcançar. 

Adormecem de novo entre textos rascunhados, rápidas passagens do Requiem. Decifram quase o mistério dos alfabetos ibéricos, no vestíbulo do sono onde vogam hipocampos atónitos, perpassam esteiras súbitas de submersos meteoritos.

O movimento das estrelas acontece ainda em quartos de tecto baixíssimo, onde os cinzeiros se entornam, as bofetadas estalam, o choro rebenta.

Na destrambelhada noite do equinócio escolhem a forca dentro de casa, dobram-se de angústia sobre a estopa da otomana, evadem-se vomitando entrechos avulsos pelo veloz labirinto dos faróis. Assim se lhes tocam os dedos nos mamilos das raparigas de mármore, ou de cerosas folhas de camélia se lhes cobrem, descerrando os cadernos nas margens do lago. Os cães ladram no faro da senda que levam, e um noitibó lhes indica o atalho da saída.

Atrás das estrelas correm, por elas arrastados, a vontade no sentido delas transpondo abismos, peregrinando por capelas de seu culto, a que outras pombas se abrigam sempre que chove. No sol se confundem, nas esferas de refulgência, fazendo crepitar as pontas nas trevas de uma íris igual.

As crónicas antigas jazem arquivadas nas gavetas dos contadores de marfim, nas prateleiras dos imensos copeiros espanhóis, nas vitrines iluminadas de faces que o bafo embacia. Ora se lhes repousa a cabeça no ombro um do outro, ora se cortam os laços, ajoelhados e acenando na aresta mais fria da cama.

Fatigadas as estrelas se esfarrapam, tombam em pedaços de enfolipado papel-de-seda, e a armadura das asas é uma caveira de arames e madeira e cola ressequida. Mas os longes duram sempre, sempre duram, para quem quer que retenha os fios enredados.

Este título elegemos: Improviso para Duas Estrelas de Papel.

Mário Cláudio

sábado, 30 de maio de 2015

ESCLARECIMENTO

Aos visitantes do Poet'anarquista, sobre a rubrica «Músicas do Mundo»: as músicas que foram publicadas neste espaço utilizando os sites «Goear» e «Grooveshark», deixaram de funcionar. O novo programa de música com publicação diária no Poet'anarquista, é o «Deezer». Fica o esclarecimento feito, pedindo a todos desculpa pelo incómodo a que sou alheio. Boas audições!
Poet'anarquista
«Deezer»
No Poet'anarquista, diáriamente...

«MÚSICAS DO MUNDO»

OUTROS CONTOS

«A Divina Comédia», conto poético por Dante Alighieri.

«A Divina Comédia»
Conto de Dante Alighieri

518- «A DIVINA COMÉDIA»

[Inferno/ Canto I - Trecho Inicial]

No meio do caminho desta vida
me vi perdido numa selva escura,
solitário, sem sol e sem saída.

Ah, como armar no ar uma figura
desta selva selvagem, dura, forte,
que, só de eu a pensar, me desfigura?

É quase tão amargo como a morte;
mas para expor o bem que encontrei,
outros dados darei da minha sorte.

Não me recordo ao certo como entrei,
tomado de uma sonolência estranha,
quando a vera vereda abandonei.

Sei que cheguei ao pé de uma montanha,
lá onde aquele vale se extinguia,
que me deixara em solidão tamanha,

e vi que o ombro do monte aparecia
vestido já dos raios do planeta
que a toda gente pela estrada guia.

Então a angústia se calou, secreta,
lá no lago do peito onde imergira
a noite que tomou minha alma inquieta;

e como náufrago, depois que aspira
o ar, abraçado à areia, redivivo,
vira-se ao mar e longamente mira,

o meu ânimo, ainda fugitivo,
voltou a contemplar aquele espaço
que nunca ultrapassou um homem vivo.

(...)

Dante Alighieri

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(30 de Maio de 1909, nasce o chefe de orquestra e clarinetista norte-americano, 
Benny Goodman)

BENNY GOODMAN - «Slipped Disc»

Poet'anarquista

Orquestra Benny Goodman
Sexteto Norte-Americano


sexta-feira, 29 de maio de 2015

OUTROS CONTOS

«A União Livre», conto poético por André Breton .

«A União Livre»
Os Paramentos da Noiva/ Max Ernst

517- «A UNIÃO LIVRE»

Minha mulher com a cabeleira de fogo de lenha
Com pensamentos de relâmpagos de calor
Com a cintura de ampulheta
Minha mulher com a cintura de lontra entre os dentes de tigre
Minha mulher com a boca de emblema e de buquê de estrelas de primeira grandeza
Com dentes de rastros de rato branco sobre a terra branca
Com a língua de âmbar e vidro friccionado
Minha mulher com a língua de hóstia apunhalada
Com a língua de boneca que abre e fecha os olhos
Com a língua de pedra inacreditável
Minha mulher com cílios de lápis de cor para crianças
Com sobrancelhas de borda de ninho de andorinha
Minha mulher com têmporas de ardósia de teto de estufa
E de vapor nos vidros
Minha mulher com ombros de champanhe
E de fonte com cabeças de golfinhos sob o gelo
Minha mulher com pulsos de palitos de fósforo
Minha mulher com dedos de acaso e ás de copas
Com dedos de feno ceifado
Minha mulher com as axilas de marta e faia
De noite de São João
De ligustro e de ninho de carás
Com braços de espuma de mar e de eclusa
E mistura do trigo e do moinho
Minha mulher com pernas de foguete
Com movimentos de relojoaria e desespero
Minha mulher com panturrilhas de polpa de sabugueiro
Minha mulher com pés de iniciais
Com pés de molhos de chaves com pés de calafates que bebem
Minha mulher com pescoço de cevada perolada
Minha mulher com a garganta do Vale do Ouro
De encontro no próprio leito da correnteza
Com os seios de noite
Minha mulher com os seios de toupeira marinha
Minha mulher com os seios de crisol de rubis
Com os seios de espectro da rosa sob o orvalho
Minha mulher com o ventre a desdobrar-se no leque dos dias
Com ventre de garra gigante
Minha mulher com o dorso de pássaro que voa vertical
Com dorso de mercúrio
Com dorso de luz
Com a nuca de pedra rolada e giz molhado
E queda de um copo do qual se acaba de beber
Minha mulher com os quadris de escaler
Com os quadris de lustre e penas de flecha
E de caule de plumas de pavão branco
De balança insensível
Minha mulher com nádegas de arenito e amianto
Minha mulher com nádegas de dorso de cisne
Minha mulher com nádegas de primavera
Com sexo de lírio roxo
Minha mulher com o sexo de jazida de ouro e de ornitorrinco
Minha mulher com o sexo de algas e bombons antigos
Minha mulher com o sexo de espelho
Minha mulher com olhos cheios de lágrimas
Com olhos de panóplia violeta e agulha imantada
Minha mulher com olhos de savana
Minha mulher com olhos d’água para beber na prisão
Minha mulher com olhos de lenha sempre sob o machado
Com olhos de nível d’água de nível do ar de terra e de fogo.

André Breton

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é ...

THE VAUGHAN BROTHERS  - «Brothers»
(Family Style)

Poet'anarquista

The Vaughan Brothers (Family Style) 
Banda Norte-Americana

quinta-feira, 28 de maio de 2015

CARTOON versus QUADRA

Blatter por um Fio
Fio1.gif
HenriCartoon

«BLATTER POR UM FIO»

O espelho duma Europa
À beira d’explosão…
A FIFA negoceia a Copa,
E nós pagamos a corrupção!!

POETA

PINTURA versus ESCULTURA

28 de Maio de 2007,  morre o pintor e escultor alemão, Jorg Immendorff.

Jorg Immendorff
Pintor Alemão

Jorg Immendorff
Escultor Alemão

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(28 de Maio de 1923, nasce o compositor húngaro Gyorgy Ligeti)

GYORGY LIGETI - «Allegro Grazioso»
(Interpretação: Mobile Saxophone Quartet)

Poet'anarquista

Gyorgy Ligeti
Compositor Húngaro

OUTROS CONTOS

«Chiquinho», por Baltasar Lopes.
«Chiquinho»
Romance de Baltasar Lopes

516- «CHIQUINHO»

[Parte I: Infância/ Capítulo 1]
  
Como quem ouve uma melodia muito triste, recordo a casinha em que nasci, no Caleijão.

O destino fez-me conhecer casas bem maiores, casas onde parece que habita constantemente o tumulto, mas nenhuma eu trocaria pela nossa morada coberta de telha francesa e emboçada de cal por fora, que meu avô construiu com dinheiro ganho de- riba da água do mar. Mamãe-Velha lembrava sempre com orgulho a origem honrada da nossa casa. Pena que o meu avô tivesse morrido tão novo, sem gozar direitamente o produto do seu trabalho.

E lá toda a minha gente se fixou. Ela povoou-se das imagens que enchiam o nosso mundo. O nascimento dos meninos. O balanço da criação. O trabalho das hortas e a fadiga de mandar a comida para os trabalhadores. A partida de Papai para a América. A ansiedade quando chegavam cartas. Os melhoramentos apouco e pouco introduzidos com os dólares que recebíamos. Mamãe deslizava como uma sombra silenciosa no tráfego da casa. Mamãe-Velha não parava, indo de um lado para outro, como se nada pudesse fazer-se sem a sua fiscalização e os seus gritos. A minha avó só sabia querer a sua gente descompondo.

Ao lado da casa grande, de quatro quartos, ficava a casinha desaguada, onde Mamãe fazia a despensa, e que nos dias de chuva servia para abrigar as galinhas da criação. Encostada à casa de moradia, ela tinha de longe, com o seu tecto rectangular, inclinado para drenar a água, um ar de bezerro a pojar nas mamas da mãe.

A casinha desaguada era a tentação da meninência.

Mamãe guardava lá o barril da farinha-de-pau, a talisca que ficava da rala da mandioca e o peixe seco da ilha do Sal, tão bom para se misturar na boca, mesmo cru, com a mãozada de farinha apanhada às escondidas. Os meus dois irmãos mais novos incitavam-me às incursões na despensa.

Lela e Nanduca não mediam bem a responsabilidade que resultaria da descoberta do delito. Por isso choravam, quase gritando, quando eu hesitava:

— Mano Chiquinho, Mamãe não vê...

Geralmente era depois do almoço que eu me arriscava no interior da despensa.

Àquelas horas, Mamãe estava lá para dentro ocupada a escarolar a louça e a tirar o queimado da caldeira para dar ao Baluca, um cão de guarda manhento de comida que nem menino nascido na fraqueza da lua. Ou então ficava sentada no baú a dar pontos na roupa e a botar chapas nas calças da meninência.

Mamãe-Velha, coitada, tinha depois do almoço o seu descanso bem merecido. A casa ficava mergulhada em silêncio. É que depois da comida vinha-lhe sempre aquela maldita dorzinha no joelho, complicada às vezes de cãibras no osso-de-varanda, que a apoquentava, por via da sombra-de-ar ganha havia anos, depois de uma chuvada que apanhara ao vir da Fajã. Causava mesmo espanto entre os entendidos como aquela mofina dor no joelho só se lembrava vir depois do jantar do meio-dia e não em outra hora.

Certa ocasião Mamãe desceu com ela à Vila a consultar o doutor.

Mas este, um barbaçanas carrancudo, de olhos brancos, receitou uma xaropagem qualquer que Mamãe-Velha fincou os pés à parede e se recusou a tomar. Não; não tinha jeito aquilo; parecia mesmo vomitado de gato. De mais a mais, entrava tia cabeça de uma pessoa de muita experiência, ganha no lidar da vidinha e na criação de filhos, que dor de ossos se curasse com beberagens? Mais seguro era socorrer-se das mèsinhas da terra, tanto mais que os doutores nunca acertaram com remédio para sombra-de-ar. De maneira que Mamãe-Velha passou a pôr no joelho um cozimento de malva e contra-lierva, estendido em lã de carneiro, e receitado por nhô Luís Babá, homem antigo, de muita lábia, bonita cabeleira branca, e que fazia lembrar aqueles velhos referidos na história de Carlos Magno.

Assim, depois do jantar do meio-dia, tínhamos jazigo para as nossas aventuras na casinha desaguada. Mal eu punha o último bocado, fazia o Pelo-Sinal e abalava para fora com jeitos manhosos de mula-velha. Mamãe ralhava comigo:

— A Virgem Santíssima há-de te dar juízo e governo na cabeça! Pareces o cavalo de nhô António Aninha, não pára nunca na manjedoura... Eu saía direitinho à cancela, para dar a entender que ia ter dos camaradas da brincadeira, mas depois deslizava encostado à parede do tapadinho, dava uma volta debaixo da casa e entrava na despensa. Obtinha a cumplicidade de Tanha e de Pitra Marguida com palmos de tabaco de rolo que apanhava a Mamãe.

Nem sempre a operação se fazia sem incidentes. De uma vez o Baluca denunciou-me à saída porque, como lhe tivesse engatado o rabo na porta, começou a uivar com a sua voz esganiçada de sopleta-e-fogo. Naquele dia comi uma sova de lato que me deixou o corpo talhado de vergônteas.

Mamãe pegou-me com uma indignação que lhe fazia tremer as mãos. Furtadela só própria de menino sem eira nem beira.

De mais, ela não queria que a fama da sua casa fosse injustamente minguada na boca dos linguareiros, que só sabem nicar na vida do próximo. Mamãe-Velha interveio em minha defesa. E foi um chover de atenuantes sobre as minhas culpas. A minha avó só se arvorava em juiz rigoroso quando ela mesma verificava os delitos. 

No resto, era um passa-culpas de olhar severo.

Baltasar Lopes

quarta-feira, 27 de maio de 2015

CARTOON versus DÉCIMA

Objecto Voador não Fiscalizado
HenriCartoon

«OBJECTO VOADOR NÃO FISCALIZADO»

(Soa um barulho de motor...)
- O que será aquilo… avião?
- Parece mais com passarão…
- Acho que é… - És incumpridor!
- Zás!... sofre o bom pagador
Que os maus fogem ao fisco,
Só eles comem do petisco
E o Zé quem paga a conta…
Começa a ser uma afronta
Usar sempre o mesmo isco!

POETA

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

JOHN MAYALL - «Home Again»

Poet'anarquista

John Mayall
Multi-instrumentalista, cantor e compositor Inglês

OUTROS CONTOS

«Herzog», por Saul Bellow.
«Herzog»
Romance de Saul Bellow

515- «HERZOG»

[Pequeno Trecho]

«Se estou louco, tudo bem, pensou Moisés Herzog.
  
Algumas pessoas acreditavam que estivesse maluco e por algum tempo ele mesmo duvidara que estivesse são. Mas agora, embora ainda agisse estranhamente, sentia-se confiante, alegre, lúcido e forte. 

Entrara numa fase mágica e estava escrevendo cartas para todas as pessoas do mundo. Andava tão excitado com aquelas cartas que, a partir do fim de junho, ia de um lugar para outro com uma pasta cheia de papéis.

Tinha levado a pasta de New York para Martha's Vineyard, mas voltara de Vineyard imediatamente; dois dias mais tarde voara para Chicago e daí para uma vila no oeste de Mssachusetts.

Escondido no campo, escrevia sem parar, fanaticamente, para jornais, personalidades da vida pública, amigos, parentes, para os mortos, seus próprios mortos obscuros; 
e, finalmente, para os mortos famosos.»

Saul Bellow

terça-feira, 26 de maio de 2015

CARTOON versus QUADRAS

A Indirecta
HenriCartoon

«A INDIRECTA»

- Madia, o Paio da Póvoa afinal,
Diz que sedá pdesidente activo…
(- Conheço um que é passivo…?)
 Cheira-me a indirecta, Animal!…

Depois de um silêncio aflitivo,
 A múmia solta a corda vocal:
- Como Pdesidente de Podtugal,
Estadei sempde incomunicativo!

Passando p'lo Crivo... 

- Maria, o Paio da Póvoa afinal,
Diz que será presidente activo…
(- Conheço um que é passivo…?)
 Cheira-me a indirecta, Animal!…

Depois de um silêncio aflitivo,
 A múmia solta a corda vocal:
- Como Presidente de Portugal,
Estarei sempre incomunicativo!

POETA

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

LOUIS ARMSTRONG - «Royal Garden Blues»

Poet'anarquista

Trompetista Norte-Americano
Louis Armstrong, por Michael Morgan

OUTROS CONTOS

«A Mãe Natal», por Michel Tournier.

«A Mãe Natal»
Mãe e Filho, por Renoir

514- «A MÃE NATAL»

Iria a aldeia de Pouldreuzic encontrar finalmente um pouco de paz? Há vários lustres que estava dividida por uma oposição entre clericais e radicais, escola livre dos Irmãos e comuna laica, padre e professor. As hostilidades que tomavam as cores das estações transformavam-se em iluminura lendária com as festas do fim de ano. A missa da meia-noite tinha lugar, por questões práticas, no dia 24 de Dezembro, às seis horas da tarde. À mesma hora, o professor, mascarado de Pai Natal, distribuía os brinquedos aos alunos da escola laica. Deste modo, o Pai Natal transformava-se em herói pagão, radical e anticlerical, e o padre contrapunha-lhe o Menino Jesus do seu presépio vivo — célebre em toda a região — como quem atira uma mão de água-benta à cara do Diabo.

Sim, iria Pouldreuzic obter tréguas? É que o professor, tendo-se reformado, fora substituído por uma professora de fora, e toda a gente a observava para saber de que estofo era feita. A Senhora Oiselin, mãe de duas crianças — entre elas um bebé de três meses — era divorciada, o que parecia uma garantia de fidelidade laica. Mas o partido clerical triunfou desde o primeiro Domingo, assim que viram a nova instrutora fazer uma entrada muito notada na igreja.

Os dados estavam lançados. Não haveria mais árvore de Natal sacrílega à hora da missa da "meia-noite", e o padre seria o mestre e senhor do terreno. Por isso, foi grande a surpresa quando a Senhora Oiselin anunciou aos alunos que a tradição não seria alterada, e que o Pai Natal distribuiria os seus presentes à hora habitual. Que jogo estaria a fazer? E quem iria fazer de Pai Natal? O correio e o guarda-florestal, em quem todos tinham pensado devido às suas opiniões socialistas, afirmaram não estar ao corrente de nada. O espanto atingiu o auge quando se soube que a Senhora Oiselin emprestaria o seu bebé ao padre para fazer de menino Jesus no seu presépio vivo.

Ao princípio tudo correu bem. O pequeno Oiselin dormia a sono solto quando os fiéis desfilaram à frente do presépio, os olhos brilhantes de curiosidade. O boi e o burro — um verdadeiro boi, um verdadeiro burro — pareciam enternecidos diante do bebé laico tão miraculosamente metamorfoseado em Salvador.

Infelizmente, este começou a agitar-se desde o início do Evangelho, e os seus berros explodiram no momento em que o padre subiu ao púlpito. Nunca se ouvira uma voz de bebé tão estri­dente. Foi em vão que a rapariga que fazia de Virgem Maria o embalou contra o seu magro peito. O pequerrucho, vermelho de cólera, bracejava e esperneava, fazendo ecoar os seus gritos furiosos nas abóbadas da igreja, impedindo o padre de proferir uma palavra.

Finalmente, chamou um dos meninos do coro e deu-lhe uma ordem ao ouvido. Sem despir as vestes, o rapaz saiu, ouvindo-se o ruído das galochas afastar-se ao longe.

Alguns minutos mais tarde, a metade clerical da aldeia, reunida em peso na nave, teve uma visão inusitada que se inscreveu para todo o sempre na lenda dourada da região. O Pai Natal em pessoa irrompeu pela igreja. Dirigiu-se a passos largos para o presépio. Depois afastou a barba de algodão branco, desabotoou o casaco vermelho e estendeu um seio generoso ao Menino Jesus subitamente apaziguado.

Michel Tournier

segunda-feira, 25 de maio de 2015

CARTOON versus DÉCIMA

A Quase Vitória
HenriCartoon

«A QUASE VITÓRIA»

- O PP lá ganhou a eleição…
- Quem? Será que escutei bem??…
Mando eu, e mais ninguém!?
- Calma, Tortas… na vizinha nação
O PP obteve a maior votação.
- Raios de partam, e ao vizinho…
Se fosse em 1640 era limpinho!
- 1640?... foi isso que ouvi??
Confesso que não percebi…
- Já tinhas saltado do ninho!!

POETA

«DO SER»/ DÉCIMA ISOLADA

Mãe e Filhas Conversando, com Cachorro
Pierre-Auguste Renoir

DO SER

Sem fazer separação
A mãe gosta das filhas,
Entre duas maravilhas
Não pode haver distinção.
Se da rosa uma é botão
A outra é flor de jasmim,
São ambas do mesmo jardim
Que se chama amor de mãe…
Com carinho diz mamãe
Esse amor que não tem fim!

Matias José

OUTROS CONTOS

«O Senhor dos Navegantes», por Ferreira de Castro.

«O Senhor dos Navegantes»
Escultura de Alexandre Leonato

513- «O SENHOR DOS NAVEGANTES»

Branca, airosa, pequenita, erguida sobre o tope duma colina, a capela do Senhor dos Navegantes divisa-se de longe, como um farol. E a ela, mais do que a uma luz que brilhasse na noite atlântica, os pescadores enviavam esperanças e desesperos quando em graves riscos se viam nas cavas e lombas do mar. Porque ficava alta, ao fim de íngreme, pedregoso carreiro, raras gentes lá iam, salvo em dia de festa, com morteiros e filarmónica, uma vez cada ano. Faiscando pela sua solidão e largueza panorâmica, eu encontrara, porém, maneira de a atingir, naquelas tardes de estio, sem me fatigar. Para subir às montanhas, um livro vale mais do que um bordão – e, com um livro sob o braço, punha-me a caminho. Logo que as pernas se cansavam, sentava-me e lia, enquanto os melros iam cantando nas velhas árvores da encosta. Sem o livro, pequeno seria o meu repouso e continuaria a ascensão antes de refeito, que a tendência de quem anda, leve rodas, leve hélices ou apenas, modestamente, os pés com que nasceu, é, já se sabe, chegar com brevidade ao ponto de destino – mesmo que nada tenha lá que fazer. Com um livro, é outra coisa. Sendo bom, prende-nos mais tempo do que os braços duma mulher e só desejamos interromper a sua leitura no final dum capítulo ou em parágrafo onde possamos retomá-la facilmente. Entretanto, as pernas recobram forças. 

Naquela tarde, quando cheguei ao adrozito do Senhor dos Navegantes, demorei-me a contemplar o mar vasto que dali se descortinava, então muito sereno, com suas velas graciosas e fugidias. Em baixo, estendia-se a grande praia semi-selvagem. À direita, rompendo de entre um pinhal e com o seu verde contrastando, espaireciam casitas modernas, todas faceiras e coloridas, ao passo que, da banda oposta, aglomeravam-se as barracas dos pescadores, em forma de ilha sobre a areia e tão velhas, negras e roídas pelos anos como se fossem as mesmas que deixaram ali os primeiros habitantes do litoral. Dir-se-ia que o tempo parara do lado onde se trabalhava rudemente ao sol, muitas vezes de colaboração com a morte, para se activar apenas naquele onde se descansava à sombra tranquila dos pinheiros. 

Após esse longo olhar de amor com que todos os dias eu envolvia o oceano, a terra e o céu, sentei-me e dispus-me a ler, como de costume. Logo, porém, que abri o livro, um rumor veio de dentro da capela. Surpreendido, voltei-me e notei que a porta estava semi-aberta. Era a primeira vez que isto me acontecia. 

Até então, eu encontrara sempre ali o maior silêncio, um abandono total, com esse sabor poético, fi no, voejante, que parece destilado pelo ar e é próprio das ermidas que padroam as montanhas. Agora, os rumores continuavam. Senti e vi um homem transpor a porta. Trazia os braços fechados sobre numerosos ex-votos – barcos de cera e pequenos quadros, ingénuas pinturas feitas sobre madeira. Ao dar comigo, estacou, contrariado; teve, em seguida, uma expressão incerta, logo um movimento de indiferença, e dirigiu-se, resoluto, para o extremo do adro. 

Desse lado, o flanco da colina descia quase a pique, até um matorral que se estendia lá em baixo. Era um temível despenhadeiro e, para defesa de quem vinha ao Senhor dos Navegantes, haviam construído ali um murozito, que, da banda de dentro, formava bancada, em semi-círculo. Nessa parte do adro o homem se sentou, a uns quatro metros de mim. 

Descontente com a sua presença inoportuna, eu ia baixar, de novo, os olhos sobre o livro, quando ele me disse: 

– Provavelmente, o senhor pensa que sou um ladrão... Não é verdade? 

É certo que eu havia pensado isso, um momento antes. Havia mesmo avaliado as suas forças em relação às minhas e concluído que, em caso de luta, talvez ele me vencesse. Não que fosse mais novo; devia ter uns cinquenta anos maltratados, enquanto eu não chegara ainda aos trinta; mas o seu corpo era mais robusto e os braços muito mais possantes do que estes, tão franzinos, de que eu me servia para pegar no livro. Os seus olhos claros não precisavam de óculos, ao passo que os meus, sem o auxílio de vidros, não me permitiriam dar dois passos seguros, mesmo para fugir. E embora as linhas físicas dele não se mostrassem rudes, o fato que trazia, gasto, poeirento, e não sei mais o quê de seu todo, sugeriam a ideia de homem habituado a trilhar as estradas do Mundo, de varapau na mão, ao assalto da vida. 

Hesitei, talvez, alguns segundos a responder-lhe, porque ele, antes de me ouvir, acrescentou: 

– Não, não sou um ladrão. Isto – e apontava os ex-votos – pertence-me. Eu é que não os mereço... 

Definitivamente perturbado, respondi, enfim, qualquer coisa, não me recordo o quê, uma necedade por certo, e ele voltou: 

– O senhor não é de cá, pois não? Está a veranear na praia? 

– Estou. 

– Logo vi. A gente da terra não tem tempo de vir ler aqui para cima. Bem lhe basta o trabalho. 

Não entendi logo se ele falava assim para me ser desagradável ou simplesmente para demonstrar a sua perspicácia. 

Os seus olhos voltaram a fixar-me. Pareceu-me ver neles um lume de ternura, mas senti-me novamente humilhado ao ouvi-lo dizer: 

– O senhor esteja à sua vontade. Eu não me demoro. E não tenha medo de mim. Não faço mal a ninguém. Todos nós, é certo, já algum dia fizemos mal – e eu fiz um grande mal, mas isso foi há muito ano... – A sua voz repetiu, de modo profundo: – Há muito ano... 

– É claro que não tenho medo – declarei, num tom frio. Na verdade, porém, eu enervara-me. Tornei a abrir o livro e fingi ler. 

O homem calou-se. Vergado sobre os ex-votos, as suas mãos iam desfazendo os barcos de cera e arremessando-os para o abismo, para o sarçal que havia lá no fundo. Deles reteve apenas a extremidade dum mastrozito com a sua bandeirola, que fez voltejar na ponta dos dedos, com o sorriso de meiguice que se tem para as coisas frágeis, e logo enfiou na botoeira do casaco. Depois, estendeu o braço, agarrou uma pedra e deu-se a partir os quadros onde se viam embarcações de pesca em luta com o mar embravecido e o Senhor dos Navegantes de pé sobre nuvens. 

Todos eles tinham datas, algumas seculares, e legendas de reconhecimento, com muitos erros ortográficos e mal desenhadas letras. O homem lia-as antes de despedaçar as pequenas tábuas onde elas estavam inscritas e, em seguida, lançava os destroços lá para baixo, para o mesmo lugar dos barquitos de cera. Entretanto, parecia falar sozinho: 

– Nunca salvei ninguém. Ninguém! Eu bem o desejaria fazer, mas já não tinha forças para isso. Se estes se livraram da morte, foi apenas por circunstâncias favoráveis... 

Levantou-se e voltou a entrar na capela. Pensei ser o momento de me retirar. 

Ele ia julgar que eu era cobarde, mas isso não me importava. «Verdadeiramente – disse a mim próprio – o que busco nesta colina é sossego, e sossego, hoje, não existe aqui». 

Antes, porém, de eu haver tomado uma decisão definitiva, o homem surgiu, novamente, no adro, com outra braçada de ex-votos. Eram, agora, mãos, seios, cabeças e pés de cera. Ou por falta de paciência para os desfazer um a um ou por lhe ser anojoso partir aqueles símiles de membros humanos, que lhe acordariam, porventura, remotas superstições, ele acercou-se do murozito e lançou os ex-votos, duma só vez, para as profundidades do desfiladeiro. Depois, quedou-se, um momento, como eu fizera antes, a contemplar o oceano. 

– O senhor gosta disto? – perguntou, voltando-se ligeiramente para mim. 

– Isto é bonito – respondi-lhe. – É um magnífico panorama... 

– Sim, não é feio... – murmurou. – Podia ter saído muito melhor, mas, enfim... já os romanos gostavam deste sítio. Ninguém o sabe ainda, senão eu, mas a verdade é que houve aqui um crasto. 

Olhe, acolá, à esquerda, antes de se entrar no adro, se alguém escavar, encontrará restos de sepulturas... E à praia, lá em baixo, chegaram a vir muitas galeras... Existia, então, um pequeno porto, que o tempo assoreou... 

Surpreendiam-me os seus conhecimentos e a propriedade com que falava. 
Tentei examiná-lo melhor, mas o homem encontrava-se novamente de costas, sempre de olhos fixos ao longe. 

– Efectivamente – disse-me, depois – se olharmos bem para a terra, para o mar e para o céu e se pensarmos na grande variedade de seres que há no Mundo e em todo este admirável equilíbrio planetário, parece-nos que estamos perante um milagre. Não é assim? A si também não lhe parece o mesmo, quando pensa, por exemplo, nas vidas submarinas? 

– Sem dúvida, o Mundo é muito variado e... 

Ele interrompeu-me: 

– Eu sei que todos os homens pensam, sobre isto, mais ou menos o mesmo. 
Um simples insecto, que encontramos num monte e que podemos facilmente esmagar com o pé, se ele não fugir, é capaz de levar-nos a meditar sobre o mistério da criação, é capaz de arrastar o nosso pensamento por caminhos obscuros que, momentos antes, não tínhamos sequer admitido percorrer... 

O homem interrogou-me bruscamente: 

– O senhor o que é? Qual a sua profissão? 

Eu disse-lha e ele pareceu contente: 

– Ah, muito bem! Então pode compreender... Não é verdade que o Mundo parece feito por uma imaginação portentosa? Por uma inteligência que nenhum homem pode igualar? 

– Algumas vezes tenho reflectido sobre isso... – confessei, modestamente. 

– Aí está! – exclamou ele. – Aí está. Mas o senhor engana-se! Pelo menos, engana-se em metade...

Aproximou-se mais de mim. Eu estava sentado, ele de pé; eu tinha de olhá-lo de baixo para cima e sempre com receio de que estendesse as mãos e me dominasse. 

– Ora diga-me uma coisa. Nunca lhe pareceu que essa inteligência havia ficado a meio do seu trabalho? Que não tinha ido até onde parece que pretendia ir? 

– Não sei. A nossa razão tem limites. Para além da nossa razão podem existir outras razões, que não são explicáveis... 

– Era aí, justamente, onde eu queria chegar! – Ao dizer isto, o homem sentou-se ao meu lado, dobrando-se levemente para a frente, com os braços apoiados nas pernas e as mãos juntas. A sua voz adquiriu, então, um murmurejar de confidências e de quem não sente pressa alguma: 

– Tudo correu muito bem, a princípio – declarou, como se continuasse uma narrativa interrompida. – Eu tinha um poder infinito. E uma imaginação para além de todos os prodígios. Até eu próprio me admiro, hoje, disso. Bastava pensar uma coisa e o meu pensamento materializava-se rapidamente, adquirindo forma e vida. A minha fantasia não encontrava limite algum e os próprios habitantes das profundidades deste mar que estamos vendo o atestam. É um prazer que o senhor não conhece tornar realidade o próprio absurdo. Mas, nesse tempo, também eu não sentia esse prazer; eu não fazia ideia alguma do que era absurdo e do que era lógico, do que era belo e do que era feio, do que era bom e do que era mau. 

Estas definições só se estabeleceram mais tarde, justamente quando surgiram os limites... Eu criava, criava, como num delírio. E não há dúvida de que a minha principal obra foi isso a que os homens chamam Universo, a mecânica celeste, o Infinito... os senhores andam, com a vossa ciência, a colocar lá algumas balizas, mas é trabalho mais difícil do que se quisesse remover com uma colher de chá a terra duma montanha... 

Enquanto falava, o homem olhava para o chão, como se não desejasse ver nos meus olhos o efeito das suas palavras. Depois, mudou o tom de voz: 

– Um dia, porém, senti-me decadente. As aves, por exemplo, são um indício do meu declínio. Não sei se o senhor é viajado, se conhece a Ásia e a América, as grandes florestas tropicais onde há aves maravilhosas. 

Mas se não conhece, não importa; tem visto isso, pelo menos, nos livros com estampas multicolores. Parece-lhe – não é verdade? – que há uma diversidade deslumbrante, uma fantasia inesgotável no mundo das aves. Pois não é assim! Se observar bem, verá que não é assim. A minha imaginação havia já começado a diminuir, começava já a aproximar-se do que viria a ser a imaginação dos homens. 

Criei um pássaro e os outros foram apenas variantes. Utilizei o primeiro modelo e fi-lo de todos os tamanhos, desde a avestruz, tão grande que pode ser cavalgada, até o colibri, que, de minúsculo, se confunde com um insecto. A seguir, fi-lo de todas as cores e com todas as combinações de cores. Depois, em vez de criar, pus-me a exagerar determinadas parcelas do que já havia feito. E cheguei, assim, até à caricatura da minha própria obra. A algumas aves limitei-me a esticar-lhes as pernas, as caudas ou os bicos, de tal forma que estes ficaram grotescos e muito maiores do que o corpo. A outras dei-lhes uma amplitude de asas de que não careciam ou deixei-lhes apenas uns simples cotos. 

Variei-lhes, também, o fulgor dos olhos e a composição dos seus gorgeios, deixando umas eternamente mudas e obrigando outras a cantarem até na hora da morte. Mas tudo isso eram simples pormenores, porque, no fundo, a ave, a ideia fundamental, era a mesma. 

Eu parecia um desses artistas que realizou, certo dia, uma descoberta feliz e passou, depois, o resto da vida a lutar desesperadamente para dar a ilusão de que não se repetia, quando, na realidade, não fazia outra coisa senão plagiar-se a si próprio... 

O homem calou-se subitamente e, soerguendo a cabeça, olhou-me pela primeira vez, desde que se havia sentado. 

– O senhor está a pensar que sou um louco, não é verdade? 

Foi, então que, por meu turno, baixei os olhos, admitindo de novo que ele poderia, em qualquer momento, lançar-me por cima do murozito de resguardo, como fizera aos ex-votos. 

– Não, senhor. Estou a ouvi-lo com muito interesse. O que acontece é que se vai fazendo tarde... 

Ele examinou atentamente o céu, como se medisse o Tempo: 

– Não, tarde, não é... São apenas cinco horas... Dê cá um cigarro. 

Passei-lhe o maço, ele meteu-lhe os dedos, riscou, devagar, um fósforo, soltou o fumo e tornou: 

– Com o mundo vegetal acontece a mesma coisa. O que é uma árvore? O que é uma planta? Uma raiz metida na terra. Para evitar a monotonia, tive de dar variedade às folhas, às flores, aos frutos e aos aromas. Mesmo aos troncos. Mas, apesar de tudo, é sempre uma raiz metida na terra. Ora não era isso que eu queria. 

Eu não queria o Mundo submetido a uma repetição perpétua. Eu desejava que ele se modificasse constantemente. O senhor já pensou que poderiam perfeitamente existir bosques aéreos e que o homem deveria andar no fundo dos mares ou no espaço celeste com tanta facilidade como anda aqui na terra? O senhor não vê que os homens estão todos os dias a procurar corrigir os defeitos do meu trabalho? O que é um avião ou um escafandro senão um remendo à minha obra? Mesmo os que me adoram, passam a vida a discordar de mim e a tentarem emendar o que eu fiz. Quando imploram as minhas graças para as suas infelicidades, não fazem, no fundo, outra coisa do que censurar-me, pois o que é uma súplica senão uma revolta que não se pode exteriorizar? – Sorriu vagamente e ajuntou: – Só não me amaldiçoam porque ainda me julgam mais forte do que eles... 

Voltou a calar-se. Depois, calcou o cigarro, ainda quase inteiro, e, com um tom doce, melancólico, confessou: 

– Eles têm razão, coitados! Sucumbi antes de realizar integralmente a minha obra. O que devia ser mutável tornou-se imutável e as leis que ficaram a reger o Mundo são impiedosas. Eu só me lembrei de criar o homem muito tarde. Já havia feito os outros animais, já havia mesmo esgotado toda a fantasia no exagero dos pormenores, quando me ocorreu uma outra variante. A minha tendência fora, até aí, dar aos bichos quatro apoios sobre a terra ou sobre as árvores. Pois bem! Aos novos seres eu daria, como às aves, apenas duas patas. Mas o senhor não pode imaginar o que senti ao ver de pé, entre os outros, o novo casal. Eu estava a criar o canguru e tão impressionado fiquei que lhe pus logo dois embriões de pernas e deixei-o incompleto para todo o sempre. No meio dos outros bichos, que se moviam alegremente, com jubilosos ruídos na manhã da sua vida, o homem e a mulher, únicos que eram verticais, dir-se-iam dois pinguins entre um bando de pássaros chilreantes. Ele olhava ao longe, sem saber como orientar-se. 

Mostrava-se tão triste, tão incerto no seu destino, que tive de repente pena dele. Porque fora talhado ao alto, o seu próprio sexo se apresentava menos oculto do que o dos outros animais e parecia vexá-lo. No ocaso do meu poder, eu começara a atribuir, por fraqueza imaginativa, diferentes funções a um mesmo órgão. Para as aves bastara-me um tubo de vazão; para os outros viventes criei, inutilmente, dois – e ao segundo impus uma dupla utilidade. Quando verifiquei o erro, era demasiado tarde: dali em diante, a própria vida humana brotaria dum cano de esgoto. Assim, a piedade que eu senti pelo homem ia-se tornando cada vez maior. 

Hesitei um momento e decidi: «É a este que eu me darei. É a este que eu darei o que ainda resta de grande em mim» E fundi a minha decadência, o crepúsculo da minha potestade, naquele melancólico animal. Foi outro erro, o meu maior erro. O homem ficara com todas as aspirações dum deus e não era completamente deus. Surgiram, devido a isso, inúmeros conflitos. O homem queria ser eterno como o deus que ele guardava dentro de si e era, pelo contrário, tão efémero como os outros animais. Queria ser feliz, impelido por aquela obscura reminiscência de quando uma parte dele me pertencia a mim, sua divindade, e havia de passar milénios sobre milénios a lutar para ser feliz, sem nunca o poder ser por muito tempo. Só o era integralmente por alguns minutos e justamente quando fecundava novas dores humanas. Eu havia-o deixado tão desamparado e com tantos problemas a resolver, que a própria caverna, em vez de ser apenas um ponto de partida, foi, ao contrário, um ponto de chegada – a sua primeira conquista. 

O Mundo ficara imperfeito e o homem com uma ânsia de perfeição impossível. O Mundo ficara incompleto, injusto e sem finalidade visível e o homem deu-se a lutar para que o Mundo tivesse para ele tudo aquilo que o Mundo não tinha. 

Quando não pode lutar de outra maneira, recorre às hipóteses. São as hipóteses que o têm amparado desde que ele vive. Eu sinto remorsos, creia, por tudo quanto fiz... Sinto especialmente remorsos por tudo quanto não cheguei a fazer... 

O meu interlocutor levantou-se, meteu as mãos nos bolsos e caminhou, como opresso, até à extremidade do muro que nos protegia do abismo. Vi-o olhar lá para baixo, para os destroços dos ex-votos, vi-o, depois, estender a vista até ao mar e, em seguida, voltar-se para mim: 

– Então, eu próprio comecei a lutar também contra a minha obra. É claro que, ao fundir-me no primeiro homem, fiquei mortal como ele. Mas gozo, ao contrário dos outros, o privilégio de guardar memória das muitas vidas que tenho vivido. 

Lembro-me de tudo desde o começo do Tempo, desde que fiz o Mundo. E nisso está o meu principal sofrimento, porque a memória, para quem praticou o mal, é, como se sabe, o maior castigo que existe. Sofro ainda porque os homens levam, às vezes, milhares de anos para acreditar no que é evidente. Quando lhes digo a verdade, eles maltratam-me. Quando lhes grito, por exemplo: «O Mundo está mal feito e é preciso, dentro das vossas possibilidades humanas, corrigir o Mundo» – os mais fracos, os mais ingénuos, ficam a olhar para mim, duvidosos ainda sobre se é ou não verdade o que lhes digo, enquanto os mais fortes mandam imediatamente perseguir-me. Se, para me defender, declaro: «Tenho a certeza de que está mal feito, pois fui eu próprio quem o fez» – então consideram-me louco, bruxo, herege, visionário, e perseguem-me da mesma maneira. Poucas vezes tenho morrido na cama, como morrem os generais e a maioria dos outros homens. Ao contrário, tenho sido esquartejado, queimado vivo, crucificado, enforcado, fuzilado, guilhotinado, electrocutado e gaseado. A cada uma das minhas vidas foi sempre aplicada a moda a que cada época e cada povo obedecem para matar os seus inimigos. Disso não tenho que me queixar... – acrescentou, com um sorriso. 

– Há pouco, contei-lhe que, ali, à entrada do adro, se encontra um velho cemitério romano. Decerto, o senhor não acreditou. Compreendo perfeitamente: no seu lugar, eu também duvidaria. Mas pode ter a certeza de que estou lá... Ou, se já não existe resíduo algum do meu corpo de então, deve estar lá, pelo menos, uma fíbula que eu usava nesse período. Enterraram-me ali depois de me terem supliciado brutalmente, só por eu haver dito que, como criador que fora do Mundo, vivia a penitenciar-me do meu tremendo erro. Eles julgaram que, com isso, eu pretendia ser mais importante do que o imperador de Roma e liquidaram-me... 

Um bando de gaivotas ladeou a colina, sobrevoando a praia. A luz da tarde ia diminuindo de intensidade e dando cores suaves aos arredores da capelita, ao próprio adro, onde a voz do homem prosseguia: 

– Se eu lhe contasse o que observei e sofri através dos Tempos! Mas nunca mais acabaria e vejo que o senhor está com pressa... O que me valeu nos últimos séculos foi a invenção da tipografia. Sem isso, teria sofrido ainda mais, dado que as minhas últimas vidas passei-as, quase inteiramente, nas prisões. Assim, sempre arranjo alguma coisa para ler. Tenho lido muito, muito; desde há quatrocentos anos quase não faço outra coisa. Por um lado, a leitura distrai-me, leva-me a esquecer a cadeia; por outro, tortura-me, pois é pelos livros dos homens que eu vejo, sobretudo, o drama que criei... Ultimamente, lá no manicómio, só queriam dar-me livros optimistas, livros em prol. Os médicos afirmavam que essas obras não me despertariam ideias sombrias... Mas eu protestei imediatamente... 

– Ah, o senhor esteve no manicómio? – perguntei; de modo tímido. 

– Estive – respondeu-me ele, com naturalidade. – Não tenha medo de me ofender, pois desde o princípio adivinhei que o senhor pensa que eu sou um louco. Não me ofende nada... Todos têm pensado de mim a mesma coisa, já lhe disse. Estive e lá estaria ainda se, ontem, não tenho conseguido fugir. Estava lá ia já para oito anos. E sabe porquê? Porque, um dia, entrei numa igreja e gritei aos crentes que se encontravam ajoelhados: «Não vos resigneis, pois o Mundo que eu fiz é muito imperfeito e, portanto, precisa mais do vosso esforço do que da vossa resignação. Imperfeito há de ele ser sempre e vós também; contudo, em muita coisa podeis aperfeiçoar o Mundo e a vós próprios. Mas não é de joelhos que o fareis; é de pé e a lutar! Quem vos fala já foi Deus e sabe porque fala assim…» 

O homem olhou-me, como se, desta vez, lhe interessasse conhecer a minha reacção. Vendo que eu continuava calado, teve um sorriso melancólico e continuou: 

– O que eu fui dizer! Só as imagens dos santos ficaram impassíveis... Mas o Cristo, no altar-mor, parecia contemplar-me meigamente, com um ar secreto de cumplicidade. Dos fiéis, uns olhavam para mim, escandalizados, outros faziam esforços para não se rir... Junto do altar da Senhora dos Aflitos encontrava-se, ajoelhada, uma pobre mulher, a única que, naquela manhã, estava ali com verdadeira unção. 

Ela tinha um filho à morte e não tinha recurso algum, nem para o médico, nem para os medicamentos – para nada. Viera ali pedir ao céu que lhe salvasse o fi lho, pois era o céu a última esperança que lhe restava. Senti tanta pena por essa mãe infeliz, que me aproximei do altar, estendi os braços para a imagem de Nossa Senhora dos Aflitos e tirei-lhe do pescoço um dos muitos cordões de oiro que os devotos lhe haviam oferecido. Entreguei-o à mulher e disse-lhe: «Vende-o e vai a correr chamar o médico!» Mas a mulher, depois de limpar as lágrimas, encarou-me com repugnância, como se eu fosse o próprio diabo – e recusou o cordão. Teimei: «Despacha-te, senão o teu filho pode morrer!» Ela continuou a recusar e a olhar-me com desprezo. Então, sempre com piedade por ela e pelo filho, resolvi mentir: «Anda! Pega lá! Não tenhas escrúpulos!, Eu sou o instrumento de que Nossa Senhora dos Aflitos se serviu para te ajudar». Ela hesitou um momento. Olhou a imagem, olhou para mim, mas não cheguei a saber se havia decidido a aceitar aquilo. A igreja enchera-se de gritos: «É louco! É Louco! É ladrão! É ladrão! Quer roubar a Nossa Senhora dos Aflitos!» Um polícia, que estava também ajoelhado, levantou-se, avançou para mim, tirou-me o cordão e pô-lo, de novo, ao pescoço da imagem. Depois ordenou-me que saísse na sua companhia... O senhor está a ver o que aconteceu... Se, ontem, não apanho um guarda distraído e não salto o muro, não estaria agora aqui a falar consigo... 

Ofereci-lhe outro cigarro. Ele recusou-o com um gesto. 

– São horas de irmo-nos embora – disse, empregando o plural, como se estivesse certo de que eu partiria, com ele, do Senhor dos Navegantes. 

Realmente, eu deixara de o temer. 

Atravessámos o adro. Ao passarmos junto do local que ele me dissera haver sido um cemitério romano, vi-o deter-se. Os seus olhos pareciam buscar, sob as plantas silvestres, um determinado sítio. Encontrou-o, decerto, porque, vergando a cabeça, gritou para dentro da terra: 

– Cá estou! Ouves? Cá estou e vou continuar a lutar! 

Ferreira de Castro