«A 25ª Hora», por Virgil Gheorghiu.
«A 25ª Hora»
Conto de Virgil Gheorghiu
817- «A 25ª HORA»
Fântâna
I
— Não posso acreditar que esteja de partida! — disse Suzanna
a Iohann Moritz, abraçando-o.
Levou as mãos à cabeça do homem e acariciou-lhe os cabelos
pretos. Ele deu um passo para trás.
— Por que não acredita? — respondeu ele, num tom de voz seco.
— Partirei depois de amanhã, ao amanhecer.
— Eu sei! — murmurou ela.
Permaneciam de pé, junto à sebe. Fazia frio. Passara da
meia-noite. Iohann tomou as mãos da mulher, deixou-as cair e disse:
— Então, até logo!
— Fique um pouco mais! — suplicava ela.
— Por que deseja que eu fique? — Sua voz era firme,
decidida. — Está tarde. Amanhã tenho que trabalhar.
Ela não respondeu, mas o apertou ainda mais nos braços.
Entreabrindo a camisa do homem, ela pousou a face em seu peito e ergueu os
olhos.
— As estrelas são lindas! — disse.
Ele, por sua vez, esperava algo importante. Acreditava que
ela o retivera por isso. E ela vinha falar de estrelas. Desenvencilhou-se, quis
ir embora. Mas se lembrou de sua partida iminente e de que ficaria ausente no
mínimo três anos. Então, para agradá-la, também contemplou as estrelas.
— É verdade que todo homem tem sua estrela no céu? É verdade
que ela vira uma estrela cadente quando ele morre?
— E eu lá sei? — respondeu ele. Agora estava decidido a
partir. — Até logo!
— Será que também temos estrelas lá no alto? — perguntou
ela.
— Como todo mundo — respondeu Moritz. — Lá no alto ou dentro
de nós.
Pegou a cabeça da mulher entre as mãos e afastou-a de seu
peito. Em seguida, partiu. Ela o acompanhou até o caminho, segurando-lhe a mão.
Olhava para as estrelas, depois para ele.
— Espero-o amanhã à noite! — disse ela.
— Se não chover.
Suzanna gostaria de não deixá-lo ainda, de suplicar que ele
viesse, mesmo se chovesse. Mas ele se afastava a passos largos. Desapareceu na
curva do caminho, atrás do jardim. A mulher permaneceu por um momento no mesmo
lugar. Ali sou o vestido na altura do quadril, para retirar os carrapichos
agarrados ao tecido.
Antes de voltar ao quintal, observou o capim amassado sob a
nogueira, onde haviam se deitado um perto do outro. Ainda sentia nas narinas o
cheiro do corpo de Moritz — um cheiro de capim amassado, tabaco e caroço de
cereja.
Assobiando, Iohann Moritz atravessou o campo e tomou a
direcção de casa.
Usava compridas calças pretas de soldado e uma camisa branca
com o colarinho aberto. Estava descalço. Às vezes parava de assobiar para
bocejar. Pensou então na mulher que acabava de deixar. Pensou em Suzanna.
Arrependeu-se de não ter sorrido para ela. “Suas histórias de estrelas...
Mulheres são iguais a crianças.
Fazem um monte de perguntas inúteis”, ruminou. Pensou então
na viagem que ia fazer dali a dois dias. Pensou na América. Depois não pensou
em mais nada.
Voltou a assobiar. Tinha sono. Queria já estar em casa,
dormindo. Devia acordar bem cedo. Era seu último dia de trabalho. E estava
prestes a amanhecer. Dali a poucas horas, o dia teria nascido. Iohann Moritz
apertou o passo.
II
Raiava o dia quando Iohann Moritz parou diante da fonte da
aldeia e, abrindo amplamente a camisa, pegou a água com as mãos e esfregou-a no
rosto e no pescoço. Foi então até o meio da rua e secou as mãos, passando-as no
cabelo. Ajeitou o colarinho da camisa sem fechá-lo e observou a aldeia. A
cerração leitosa se dissipava. Era a aldeia de Fântâna, na Romênia. Iohann
Moritz nascera ali, vinte e oito anos atrás. E agora, enquanto contemplava
aquela aldeia, com suas pequenas casas e os três campanários de suas três
igrejas — a ortodoxa, a católica e a protestante —, lembrou-se de que, na
véspera, Suzanna lhe perguntara se ele não iria morrer de saudades dali. Na
hora, ele rira, achando graça da pergunta, e respondera que era um homem.
Apenas as mulheres podiam sentir saudades. Mas agora sentia como se um vago
arrependimento o invadisse. Voltou a assobiar e desviou os olhos.
A casa do padre Alexandru Koruga ficava na beira da estrada,
não longe da igreja ortodoxa. A porta estava fechada. Iohann debruçou-se e
pegou a chave escondida sob o capacho para que pudesse entrar de manhã, quando
chegasse para trabalhar. Abriu a pesada porta de carvalho, sem pressa, e
adentrou o quintal. Os cães correram ao seu encontro, pulando à sua volta.
Conheciam-no bem, pois já fazia seis anos que Iohann Moritz trabalhava para o
padre Alexandru Koruga; todos os dias dos últimos seis anos: lá, sentia-se em
casa.
Mas aquele era seu último dia de trabalho. Passaria o dia
colhendo maçãs. Depois receberia o que lhe era devido e comunicaria sua
partida. O padre ainda não sabia de nada.
Iohann Moritz entrou no celeiro, pegou os cestos e os
acomodou na carroça. O padre apareceu na sacada. Vestia apenas uma camisa de
linho branco e calças compridas. Acabara de se levantar. Moritz, sorrindo,
cumprimentou-o.
Colocou o cesto no chão, esfregou as mãos, subiu até a
sacada e tomou das mãos do ancião a cumbuca cheia d’água.
— Espere, vou despejar.
Iohann Moritz despejou água nas mãos do padre. Observava os
dedos daquelas mãos, compridos e fusiformes — dedos de mulher de pele branca.
Observava com prazer o velho fazer espuma na barba, no
pescoço, na testa. De tanto admirá-lo, esquecia-se de despejar a água. O padre
aguardava, estendendo as mãos cobertas de espuma. E Moritz sentia-se culpado e
ruborizava.
O padre Koruga era o pope da aldeia. Tinha apenas cinquenta
anos, mas sua barba e cabelo já eram brancos feito prata. Seu corpo comprido,
esguio, descarnado, lembrava o dos santos que vemos nos ícones das igrejas
ortodoxas. Um autêntico corpo de ancião. Porém, encontrando seu olhar,
ouvindo-o falar, percebia-se que era um homem mais jovem. Assim que acabou de
se lavar, o padre enxugou o rosto e o pescoço numa toalha grossa. Moritz
continuava em pé, com a cumbuca na mão, à sua frente.
— Eu gostaria de conversar com o senhor, meu padre — disse
ele.
— Espere eu me vestir — respondeu o padre.
E, pegando de volta a cumbuca das mãos de Iohann Moritz,
entrou em
casa. À soleira da porta, virou-se.
— Também tenho um assunto para conversar com você — disse,
sorrindo.
— Você vai gostar. Enquanto isso, coloque os cestos na
carroça e atrele.
A manhã inteira, Iohann Moritz e o padre Koruga colheram maçãs
e encheram cestos. Trabalhavam em silêncio. Quando o sol dardejou seus ombros, o
padre parou e estendeu os braços, cansado.
— Descansemos um pouco!
— Descansemos — concordou Moritz.
Dirigiram-se até os sacos cheios de maçãs e sentaram-se em
cima deles.
Mantinham-se calados. O padre procurou nos bolsos o maço de
cigarros que sempre levava para os dois e o estendeu para Moritz.
— Queria conversar? — inquiriu o padre.
— Sim, queria.
Moritz acendeu o cigarro. Jogou o fósforo na relva e
observou-o apagar-se. Era difícil para ele comunicar sua partida ao padre.
Preferiria esperar um pouco mais.
— Primeiro, quero lhe dar a minha notícia — disse o padre.
Moritz ficou contente por não ter de falar primeiro.
— O quartinho junto à cozinha está vago — informou o padre
—, e me perguntei se você não gostaria de se mudar para lá. Minha mulher acabou
de caiar e colocou cortinas nas janelas e roupa de cama limpa. Sua casa é muito
apertada. Você e seus pais possuem apenas um quarto. Amanhã, quando vier trabalhar,
traga suas coisas.
— Não virei amanhã.
— Então, depois de amanhã — disse o padre. — A partir de
hoje o quarto é seu.
— Não virei nunca mais — disse Moritz. — Amanhã viajo para
os Estados Unidos.
— Amanhã? — O padre esbugalhou os olhos.
— Amanhã bem cedo.
A voz de Moritz era firme, embora velada pelo remorso.
— Recebi uma carta, o navio está em Constança, só tenho três
dias.
O padre sabia perfeitamente que Moritz queria ir para os
Estados Unidos. Muitos jovens camponeses partiam para lá e, dois, três anos
depois voltavam com dinheiro e compravam terras e as casas mais bonitas da
aldeia. O padre estava contente por Moritz. Em poucos anos, ele também teria
belas terras. Mas surpreendia-se com a premência da viagem. Moritz jamais
tocara no assunto com ele, e eles haviam trabalhado o tempo todo lado a lado,
diariamente.
— Só ontem recebi a carta — disse Moritz.
— Vai sozinho?
— Com Ghitza Ion. No navio, trabalharemos como operários.
Trabalharemos nas caldeiras, assim não precisaremos pagar quinhentos lei por pessoa.
Ghitza tem um amigo em Constança que trabalha no porto e providenciou tudo.
O padre lhe desejou boa sorte. Lamentava sua partida. Iohann
Moritz era jovem, bom trabalhador. Apesar de pobre, era generoso e honesto. Não
possuía um alqueire de terra. Os dois homens trabalhavam de sol a sol. O velho falava
dos Estados Unidos. Moritz escutava. Em diversas ocasiões, suspirou. Agora
estava quase arrependido de sua decisão.
À noite, depois de receber seu salário, Moritz permaneceu de
olhos baixos diante do padre. Conservou-se assim ainda por um momento. Não
tinha forças para ir embora. O velho deu-lhe um tapinha no ombro.
— Escreva-me assim que chegar — pediu. — Amanhã de manhã,
passe para pegar o farnel que prometi. Terá o que comer durante a viagem.
Ainda lhe deu cinco cédulas de cem lei e prosseguiu:
— Chegue bem cedo. Bata discretamente na janela. É
preferível que minha mulher não ouça; mulheres costumam ser avarentas, você
sabe. Deixarei tudo preparado hoje à noite. Quando pretende partir?
— Devo encontrar Ghitza Ion na saída da aldeia, ao
amanhecer.
— Justo o tempo de passar lá em casa. Caso contrário, eu lhe
diria para vir esta noite.
— Prefiro amanhã — disse Iohann Moritz.
Imaginava que Suzanna o esperaria aquela noite. Em seguida,
partiu.
III
O padre Koruga acomodou o farnel com as provisões sob a
janela, encostado à parede. Apagou a luminária e foi se deitar. Antes de
dormir, pensou em Iohann Moritz e em sua viagem para os Estados Unidos.
Enquanto preparava o farnel, teve a estranha sensação de que era ele quem partia.
Trinta anos antes, ele também preparara as bagagens. Acabava justamente de
receber o diploma em teologia e fora recrutado como missionário para a colónia
ortodoxa do Michigan. Uma semana antes de partir, enviara um telegrama
desistindo do posto. Nesse ínterim, conhecera sua mulher e se casara. Desde
então era o pope daquela aldeia. A aldeia era pequena, a vida, dura.
Arrependera-se de haver desistido de partir. Mas era tarde demais. Os Estados
Unidos permaneceram um sonho. Sempre que um camponês partia para lá, ele lhe
dava cigarros, provisões, um pouco de dinheiro e lhe pedia para escrever quando
chegasse. Fazia tudo isso à revelia da mulher. Ela nada teria a censurá-lo,
mas, todas as vezes que pensava nos Estados Unidos, o velho tinha a impressão
de ser-lhe infiel. Tinha sido por ela que desistira. Em seu coração, o conflito
permanecera latente. Mas a partida de Iohann Moritz não era como a dos demais.
Moritz era seu homem de confiança. E, com Iohann Moritz, era
um pouco dele mesmo que ia para o Novo Mundo.
A lua estava cheia no céu. O padre Koruga não conseguia
dormir. Levantou-se. Acendeu a luz. Foi até a biblioteca, onde as estantes
cobriam três paredes do aposento. Pegou um livro. Antes de abri-lo, deu uma
espiada nas prateleiras carregadas. Havia livros em inglês, alemão, francês e
italiano. Em outra parede, clássicos gregos e latinos. Eram todos velhos
amigos. Às vezes ele se perguntava por que não fora lecionar na Universidade.
Amigos em Iasi e Bucareste lhe haviam proposto isso. Contudo, por duas vezes
recusara a cadeira de História da Igreja. Não se arrependia. Em Fântâna,
celebrava a missa nos domingos e dias de festas, e no restante do tempo cuidava
da terra, das abelhas, do pomar. À noite, lia. O destino ditava-lhe o futuro.
Ele o aceitava. Uma única vez tentara forçar o destino: quando cogitara ir para
os Estados Unidos.
Deixara tudo em ordem para partir. E, apesar disso, não
partira, alguma coisa inesperada interviera. Era tudo. Desde então, desistira
de fazer planos.
“Será que realmente”, perguntou-se o padre, “não estou
arrependido por não ter partido trinta anos atrás? E se não estou, então por
que essa estranha exaltação, hoje, dia da partida de Iohann Moritz?” E, puxando
a coberta, pensou: “Não é o arrependimento de ter ficado. É a nostalgia de uma
coisa que julgamos verdadeira em nossa ilusão, uma coisa que jamais
possuiremos. E, se a tocássemos, logo perceberíamos que não era com isso que
sonhávamos.Talvez os Estados Unidos não sejam o que eu procurava de
verdade. Talvez fosse apenas um pretexto para minha inquietude. Os Estados
Unidos são uma invenção de nossa nostalgia. Não tê-lo conhecido poderia
perfeitamente ser menos decepcionante do que tê-lo conhecido.”
E no entanto o padre Koruga não conseguia dormir. Estava
abalado. Esperava com impaciência pelo amanhecer, como se fosse ele quem
devesse encontrar Ghitza Ion na saída da aldeia e ir para Constança, onde os
esperava o navio “que permaneceria apenas três dias no porto”.
Quando despertou ainda estava escuro. O canto dos galos, contudo, já anunciava o sol. A estrada estava deserta, a aldeia, coberta por uma névoa esbranquiçada. O padre abriu o farnel e acrescentou o maço de cigarros que ficara na mesa. “Se Iohann for embora, não terei ninguém a quem oferecer cigarros e comprei-os para ele”, pensou. Pela janela já via o dia raiar. “Ele precisa se apressar para não chegar atrasado ao encontro.” Ouviu passos na estrada. Mas eles passaram pela casa e se perderam ao longe. Ele saiu na sacada e se lavou com água fria. Mas Moritz não estava ali para lhe despejar a água.
O sol nasceu. Iohann Moritz não chegara. O padre esperou até
a hora do almoço. Depois ruminou que Moritz decerto acordara tarde demais e
não tivera tempo de passar para pegar o farnel. “Pena”, pensou, “aqui há
provisões para três semanas. Teria sido o suficiente também para os primeiros
dias, quando chegasse.”
— Vem almoçar, Alexandru? — perguntou sua mulher.
Ela apareceu na porta.
— Daqui a pouco — respondeu o padre.
Enfiou o farnel debaixo da cama com um aperto no coração,
lastimando ter de desistir de uma coisa, e desistir dela para sempre. Sua
última chance de chegar aos Estados Unidos, ao menos por procuração, estava
perdida. Trinta anos antes tomara a mesma atitude. Passou à mesa.
“Se Iohann Moritz houvesse levado esse farnel que preparei
para ele, eu teria tido a impressão de também estar partindo. Pena que ele não
veio”, pensou.
IV
Ao sair da casa do padre, Iohann Moritz deteve-se na fonte à
beira da estrada. Após lavar-se sob a água corrente, dirigiu-se para o outro lado
da aldeia, onde morava Nicolae Porfirie. Nicolae Porfirie possuía um terreno no
limiar da floresta. Queria vendê-lo. Moritz entrou no quintal.
— Amanhã parto para os Estados Unidos — disse. — Quando
voltar, terei dinheiro suficiente para comprar essa pequena propriedade. De
toda forma, antes de partir, gostaria de lhe deixar um sinal para que não a
ceda a mais ninguém.
— Quanto tempo ficará por lá? — perguntou o camponês.
— Até juntar meu pé de meia. Dois ou três anos.
— Três anos é um prazo razoável. Ninguém ficou mais de três
anos. Nos Estados Unidos é fácil ganhar dinheiro.
— Quanto você quer? — indagou Moritz.
— Não preciso de dinheiro. Se voltar em três anos com
cinquenta mil lei, terá minha propriedade. Não a cederei a mais ninguém.
Aguardo sua volta.
Mesmo assim, Moritz puxou do bolso da calça um maço de
cédulas e contou-as na soleira da casa.
— Aqui estão três mil lei! — disse. — É melhor que eu lhe
deixe um sinal.
Iohann Moritz apertou a mão de Nicolae Porfirie: negócio
fechado. Partiu. Ainda não escurecera. Queria ver o terreno. Já o vira inúmeras
vezes. Conhecia-o minuciosamente, mas agora era outra história. Agora ele era
seu; era só retornar com o dinheiro.
V
Iohann Moritz cortou caminho pelos campos. Avançava a passos
largos. Sua camisa grudava na pele suada. Estava impaciente. Ao chegar diante
do bosque de carvalhos, parou. Seu terreno estendia-se do ponto onde ele se
encontrava até o limite da floresta. Estava plantado com milho, que lhe batia
na altura dos ombros. O terreno não era grande, mas nele cabiam uma casa, um
quintal e um pomar. Com os olhos, calculou comprimento e largura. Acima do milharal,
via erguer-se o telhado da casa, o longo braço do poço com alavanca, a grande
porta de carvalho, o estábulo. Muitas vezes vira tudo isso erguer-se diante dos
seus olhos, porém jamais com tamanha nitidez. Tudo parecia verdadeiro, tal como
ele desejara. Iohann Moritz sorriu. O vento curvava as hastes verdes do
milharal, que moviam-se como ondas. Ele escutava seu rumorejar. Debruçou e
apanhou um punhado de terra. Sua mão sentiu a tepidez de um ser vivo, o calor
de um corpo. O calor de um pardal em nossos dedos. Iohann Moritz debruçou
novamente e, com a mão direita, recolheu um punhado de terra. Fechou as mãos
com força, depois abriu-as e deixou que a terra escorresse por entre os dedos.
Avançou através do milharal, na direção da floresta. No meio da plantação, contudo,
voltou a abaixar-se para recolher outro punhado terra. “Esta também é quente”,
pensou. Acariciou a face com ela. Seu cheiro impregnou-o. “É um cheiro de fumo.
Como a terra cheira bem”, pensou. Iohann Moritz ergueu a cabeça. Respirou
diversas vezes, demoradamente, para encher os pulmões com os eflúvios perfumados
do solo. Pensou: “Suzanna deve estar à minha espera”, e pôs-se a assobiar.
VI
A casa de Iorgu Iordan, pai de Suzanna, ficava no limiar da
aldeia. Uma casa ampla, com telhado de telhas vermelhas. Atravessando os
jardins, Moritz dirigiu-se ao quintal. Então parou e olhou por uma fresta da
cerca. Iorgu Iordan apareceu na sacada. Andava pesadamente. Puxou os postigos,
depois os ferrolhos, e fechou-os a chave, um depois do outro. Moritz
acompanhava todos os seus movimentos. Após haver aferrolhado portas e janelas,
Iorgu Iordan observou, desconfiado, à sua volta. Desceu os degraus de madeira,
que estalavam sob seu peso de gigante. Como sempre, vestia um paletó
esverdeado, botinas e culotes de montaria. Atravessou o jardim em frente à casa
e dirigiu-se ao portão. Puxou bruscamente o ferrolho e girou a chave duas
vezes. Então, voltou-se, equilibrando-se. Contornou a casa, lançando olhares à
sua volta, como se procurasse alguém escondido na sombra. Entrou pela porta dos
fundos. Ouviu-se uma chave girar duas vezes na fechadura. O silêncio se
instalou.
Iorgu Iordan entrou em seu quarto, que tinha as paredes
repletas de troféus de caça, cabeças de cervos, lobos e ursos empalhadas. No
centro da parede, entre as águias empalhadas e uma galhada de cervo, espingardas
de caça, pistolas e cartucheiras. Dos lados da imensa cama, duas peles negras.
Iorgu Iordan pisou com suas botas as peles de urso e pegou uma espingarda, que
apoiou na cama.
Numa gaveta, pegou um revólver, uma vela e uma caixa de fósforos,
que deixou na mesa de cabeceira. Sentou-se na beirada da cama, arfante,
descalçou as botas e as colocou uma ao lado da outra. Todas as noites,
deixava-as no mesmo lugar para encontrá-las no escuro apenas estendendo a mão.
Em seguida, despiu-se e deitou-se, afundando nos travesseiros brancos qual um
urso na neve.
Iohann Moritz viu a luz apagar-se. Ela mingou, tremeluziu e
depois sumiu.
A janela ficou negra feito um abismo. O quarto de Iolanda,
mulher de Iorgu, estava iluminado, mas a luz era modulada e ténue. Antes de
chegar à janela, ela atravessava o abajur de seda. Diziam que Iolanda era
infeliz. Chegara à aldeia vinte e cinco anos antes, com Iorgu Iordan; estavam a
cavalo e haviam apeado na estalagem. Ninguém sabia de onde vieram, mas devia
ser de muito longe.
Ela era romena, ele não. Mais tarde, soube-se que vieram da
Hungria. Ambos usavam agasalhos de pele. Depois de devorarem grelhados e vinho,
haviam dormido no quarto do estalajadeiro. Ele comera como um ogro, ela como um
pardal — mal tocara o prato. Três dias depois, as pessoas souberam que eles não
deixariam mais a aldeia; e semanas mais tarde, haviam comprado a estalagem.
Quando chegou, Iorgu Iordan não sabia uma palavra de romeno. Agora falava-o
muito bem. Mesmo assim, não fizera amigos na aldeia.
Evitaram, inclusive, matricular Suzanna, a filha, na escola
do lugarejo, a fim de que ela não convivesse com os filhos dos outros
camponeses; Suzanna estudara na cidade. Os camponeses só viam Iolanda na igreja
ortodoxa ou quando ela ia à cidade e passava no coche, ao lado de Iorgu Iordan,
mirrada e encarquilhada. O gigante era duas vezes maior que ela. Iolanda tinha
cabelos louros como seda fina e olhos azuis. Suzanna era muito parecida com
ela. Isso era tudo que sabiam sobre Iorgu Iordan na aldeia. Certo inverno, ele
matara um homem que tentara entrar em sua casa. Matara-o com sua espingarda de caça,
um tiro bem entre os olhos. Os policiais haviam declarado que Iorgu Iordan
estava em seu direito. Podia matar qualquer um que entrasse à noite em sua casa
para lhe roubar dinheiro. Os camponeses não eram da opinião dos policiais. Um
crime é sempre um crime. Mas o episódio acabou esquecido.
Tudo isso acontecera muito tempo atrás. Pelo buraco da cerca
Iohann Moritz vira a luz diminuir, tremular fugazmente, depois apagar-se. Fez
um funil com as mãos em torno da boca e gritou: Hu! Hu! Hu!
O grito de Moritz rasgou o ar. Seu eco antecedeu o silêncio
— que não durou mais que um instante. Postigos se abriram, Suzanna pulou por
uma das janelas. Atravessou o jardim, correndo na ponta dos pés. Em seguida,
saiu do quintal pelo buraco da cerca, onde Iohann Moritz a aguardava.
VII
— Por que escolheu esse grito para me chamar? Por que esse
pio? Por quê? — perguntou ela. Ela atravessara a cerca, Moritz quis beijá-la.
Ela o evitou. — Já falei para não me chamar mais dessa forma. — Seu coração
batia muito forte. Estava assustada.
— Como queria que eu fizesse? — perguntou Iohann Moritz.
— Não sei — respondeu ela. — O pio da coruja dá azar. É
prenúncio de morte.
— Contos da carochinha — replicou ele. — É a única ave que
canta dia e noite, chova ou faça sol, no verão e no inverno. Só a coruja.
Conhece outra?
O rouxinol canta apenas no verão. Se eu imitar o canto do
rouxinol, seu pai vai perceber que é um homem. Quer que o gigante saiba que sou
eu que estou chamando?
— Não, não quero — disse ela —, mas coruja dá azar!
— Não é culpa minha — defendeu-se Moritz. — Por que será que
não existe outro pássaro que cante em qualquer estação e a qualquer hora sem anunciar
a morte? E depois não vamos mais brigar: chamei-a pela última vez esta noite. A
partir de agora não precisaremos mais nos esconder. Amanhã de manhã parto para
os Estados Unidos. Quando eu voltar, você será minha mulher. Não terei mais de
ficar atrás da cerca e imitar a coruja.
Apertou-a contra si. Enlaçou seu pescoço com os braços.
Estavam embaixo da nogueira, no mesmo lugar onde se haviam encontrado na noite
da véspera e em todas as noites dos quatro meses que se conheciam. A mulher
ficou mais pesada em seus braços. Ele amparou-a, estendeu-a na relva e
deitou-se ao seu lado. Seus corpos se misturaram, enrolaram-se como serpentes,
como cipós. As mãos procuravam-se no escuro. Ele encontrou os lábios da mulher e
contra eles pressionou avidamente os seus. Estavam de olhos fechados. Em algum
lugar, no jardim de Iorgu Iordan, os grilos cantavam. Eles continuavam abraçados
sem dizer nada. O vestido de Suzanna fazia uma mancha azul na relva. Ela
tirara-o, para que sua mãe não o visse amarrotado e manchado. As nuvens de
tinta que encobriam a lua haviam se afastado e os ombros nus da mulher
brilhavam na sombra. Moritz tirara a camisa para colocá-la sob o corpo de
Suzanna. Ao lado dos ombros alvos da mulher, o peito de Moritz era escuro feito
a casca de uma árvore.
— Iani — disse ela —, não vá.
— Por que está me falando isso? — replicou ele,
entristecido. — Você sabe muito bem que, se eu não for para os Estados Unidos,
não terei dinheiro para comprar o terreno. Se eu não possuir uma terra, não
poderemos nos casar.
Não chegaremos a lugar nenhum se não tivermos casa nem
terra. Dentro de três anos estarei de volta com o dinheiro e nos casaremos. Não
quer se casar comigo?
— Quero — respondeu ela. — Mas não quero que você parta.
— E com que dinheiro eu compro a terra?
Iohann Moritz esboçou um sorriso.
— Você sabe que já dei um sinal pela terra a Nicolae
Porfirie? Quando retornar, pagarei o que falta.
Iohann Moritz contou como dera o dinheiro a Porfirie, como
fora vistoriar o terreno, como construiria a casa, o estábulo e tudo o mais.
— Iani, se você partir, não me encontrará viva ao retornar —
disse Suzan
na, sem escutar a história.
— O que deu em você? — Moritz estava visivelmente
aborrecido.
— Nada. Algo me diz. Você pode não acreditar. Mas, quando
retornar, estarei morta.
— Não, não estará morta — respondeu Moritz. — Estará, como
hoje, na casa de seu pai e sua mãe. Não há por que se preocupar. Você não está sozinha. Não está na casa de
estranhos, está na casa de seus pais.
Ela começou a chorar baixinho.
— O que há com você? — perguntou ele. Beijou-a. Os lábios da
mulher estavam frios e molhados de lágrimas salgadas. — O que há?
— Você dirá que são ideias de louca. Ideias de mulher. É
melhor não falar nada.
— Não direi que são ideias de mulher.
— Acho que meu pai quer me matar — disse ela.
— Quem lhe meteu isso na cabeça? — Sua voz estava ríspida. —
Como quer que seu pai a mate?
— Eu sabia que não ia acreditar. Mas estou tremendo de medo.
Sinto que ele vai agir. Meu pai notou alguma coisa. Não sei como. É por isso
que ele quer me matar.
— Seu pai notou o quê?
— O nosso amor.
Iohann Moritz afastou-se dela. Na relva, o corpo de Suzanna
estava claro feito mármore.
— Ele falou com você? — perguntou ele.
— Não.
— Repreendeu-a?
— Não.
— Então de onde tirou que ele notou?
— É meu coração que diz. — Ela não parava de chorar. — Mas
não é só meu coração. Hoje, no almoço, quando levei os pratos para a mesa, meu pai
me olhou de uma maneira estranha. Depois, gritou: “Vire-se para a parede!” Eu
me virei. Senti seu olhar passear pelos meus quadris. Depois ele me disse:
“Vire-se para a janela!” Olhou de novo para mim detidamente. De perfil. Cravou
os olhos na minha barriga. Meus quadris. Examinou-me como se examinasse seus
cavalos. E gritou, com raiva: “Fora daqui, meretriz!” Não comeu mais. Eu saí.
Naquele momento, eu soube que ele percebera. Ele sabe tudo. Meu pai já me
repreendeu, quando eu era pequena, inclusive me bateu; ele me bateu até eu
sangrar. Mas nunca tinha me chamado de “meretriz”. Hoje, na hora do almoço,
gritou: “Fora daqui, meretriz!”
— Como ele pôde saber? — perguntou Moritz. — Ele nunca nos
viu juntos.
— Nunca nos viu, mas está sabendo.
— Mas como pôde saber?
— Só de me olhar.
Iohann Moritz começou a rir e beijou-a na testa.
— Ele poderia observá-la com um binóculo que não veria nada.
Acha que alguém vê assim, quando a gente fez amor? Tudo isso é lorota!
— Sei muito bem que isso não se vê normalmente, mas com meu
pai é diferente. Ele sabe direitinho quando é com as éguas dele. Só de olhar
para elas, sabe dizer se darão cria. Seus amigos não acreditam.
— Por acaso está grávida?
— Não, não estou.
— Então não há perigo — disse ele. — Dentro de dois ou três
anos estarei de volta com o dinheiro. Compraremos a terra e nos casaremos na igreja
do padre Koruga. Construiremos uma casa bonita e seremos felizes. Não é verdade,
Suzanna?
Ela o abraçou com toda a força. Como se tivesse medo.
Tremia.
— Se você ficasse, eu não teria medo — disse ela. — Mas, se
for, morrerei de medo. Mesmo se meu pai não me matar com uma espingarda, você
não me encontrará viva. Morrerei de medo na sua ausência. Todas as noites eu tranco
a porta do quarto e passo o ferrolho. Quando ouço os passos do meu pai, cubro a
cabeça com o travesseiro. Tenho medo.
Iohann Moritz acariciou seus ombros. Puxou-a para si.
Tomou-a nos braços. Não falaram mais. Ela se sentia feliz perto dele. E ele por
não vê-la mais chorar. Quando o galo cantou, eles se levantaram. Suzanna enfiou
o vestido, que estava frio e todo molhado de orvalho. Moritz vestiu a Aristitza
abaixou-se para pegar um pedaço de pau e sová-lo. Ele estava habituado aos
palavrões e às surras.
Toda sua infância resumira-se a uma longa série de
surras e insultos.
— Cuidarão bem dela? — disse ele, sorrindo. — Eu volto logo.
Vou buscar alguma coisa para ela comer. E saiu do quarto.
Suzanna não se mexera. Continuava imóvel, em frente à casa.
Moritz lhe acariciou o cabelo.
— Vou até a aldeia, logo estarei de volta — disse. — Quer
dormir um pouco? Quando acordar, comerá alguma coisa e partiremos para a
cidade.
— Não ficaremos aqui? — perguntou ela, assustada ante a
ideia de uma nova caminhada.
— Não — disse ele —, venha!
Segurando-a pelas axilas, levantou-a e conduziu-a até os
fundos da casa, para o celeiro, onde a estendeu sobre o feno.
— Agora, durma! — disse ele. — Caso contrário, não
conseguirá ir a pé até a cidade. São pelo menos vinte quilómetros.
Suzanna sorriu para ele com gratidão. Era bom ficar
dormindo, sozinha.
Ardia em febre. Seus ouvidos zumbiam. Ela mal o escutava.
— Se a minha mãe vier procurar confusão, deixe-a falar e não
responda — orientou Iohann Moritz.
— Ela está brava.
Iohann partiu. Ao chegar à estrada, voltou a cabeça para
olhá-la. Sorriu novamente, mas ela já fechara os olhos.
Virgil Gheorghiu