quarta-feira, 30 de novembro de 2016

OUTROS CONTOS

«Soneto de um Céptico», conto poético por Alexander Search.

«Soneto de um Céptico»
Alexander Search/ Heterónimo de Pessoa

925- «SONETO DE UM CÉPTICO»

Febo há muito desceu no Ocidente 
Por trás dos montes de rosa tingidos; 
Eu, sofrendo, cerro os olhos doridos 
Olhando o mundo que ante mim se estende. 

Pois pela noite o rio silente desce, 
Oculto no escuro já voa o morcego; 
Mas, nocturna, a alma não tem sossego, 
É na escuridão que meu horror cresce. 

Odeio a noite que a mim se assemelha, 
Só que em mim, nem astro ou centelha 
Dispersa as nuvens da alma e da mente. 

Mas como a noite em seu manto sombrio, 
Calado e escondido me quedo no frio, 
Envolto em dúvidas e delas temente. 

Alexander Search

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

SIMPLE MINDS - «Sanctify Yourself»

Poet'anarquista

SANTIFIQUE-SE

É isto a idade do trovão e da raiva
Você pode sentir o movimento da terra em volta de seus pés
Se você der um passo mais próximo, conduzirá a outro
A encruzilhada acima é o lugar onde nós nos encontramos
Eu grito para fora por abrigo, eu preciso de você para algo
Todo o mundo inteiro está fora, eles estão nas ruas
Controle-se, o amor é tudo que você precisa
Controle-se, em seus olhos
Santifique-se, santifique (santifique)
Separe-se de mim, santifique (santifique)
Santifique-se, santifique (santifique)
Santifique-se, liberte-se

Nos retratos da vida, numa visão sangrenta
Doces milagres e circunstâncias estranhas
Eu vi o sol acima, o confronto, os ventos frescos que sopram para baixo
Sobre a grande batida que dá vida longa ao romance
Você tem uma arma em sua mão, você está fazendo próprios planos
Fique comigo toda a noite
Controle-se, o amor é tudo que você precisa
Controle-se, abra seu coração
Santifique-se, santifique (santifique)
Separe-se de mim, santifique (santifique)
Santifique-se, santifique (santifique)
Santifique-se, liberte-se

Você não pode parar o mundo para um menino ou uma menina
Doces vítimas de pobres circunstâncias
Mas você pode derramar para trás o amor, varrendo de baixo para cima
Trazendo esperanças e criando mais chances
Bem, espero e rezo que talvez algum dia
Você volte para cá e mostre-me o caminho
Controle-se, o amor é tudo que você precisa
Controle-se, abra seu coração
Santifique-se, santifique (santifique)
Santifique-se, santifique (santifique)
Santifique-se, santifique (santifique)
Santifique-se, liberte-se

Simple Minds
Banda Escocesa

OUTROS CONTOS

«O Palhaço», por Alberto Moravia.

«O Palhaço»
Palhaço e Papagaio/ Rubens Trinaz

924- «O PALHAÇO»

Naquele inverno, só para fazer alguma coisa, comecei a vagar pelos restaurantes tocando violão enquanto meu companheiro cantava. O companheiro chamava-se Milone apelidado “o professor” porque ensinara ginástica sueca. Tratava-se de um homenzarrão de mais ou menos cinquenta anos, não exactamente gordo, mas quadrado, com um rosto denso e ameaçador e um corpaço maciço que fazia com que as cadeiras rangessem quando se sentava. Eu tocava o violão do meu jeito, isto é, quase sem me mexer, com os olhos baixos, porque sou um artista e não um bufão; quem bancava o palhaço, ao contrário, era Milone. Começava meio sem querer, em pé, erecto, apoiado a uma parede, o chapéuzinho em cima dos olhos, os polegares sob a axila, a barriga fora das calças, o cinto em baixo da barriga: parecia um bêbado cantando ao luar. Depois, pouco a pouco, esquentava e, mesmo sem cantar de verdade, porque não tinha voz nem ouvido, acabava dando um espectáculo de si mesmo, ou melhor, como eu já disse, bancava o palhaço. Sua especialidade eram cançõezinhas sentimentais, as mais famosas, as que normalmente comovem e enternecem, porém na sua boca aquelas canções não comoviam, mas faziam rir, porque ele sabia torná-las ridículas, de um jeito todo seu, desagradável e triste. Eu não sei o que tinha aquele homem; se na juventude alguma mulher tinha aprontado com ele; ou talvez ele tivesse nascido daquele jeito, com um carácter que se comprazia em tornar ridículas as coisas boas e bonitas; o facto é que ele não era só um actor cómico, não, ele colocava não sei que raiva no que fazia e era necessária toda a obtusidade das pessoas enquanto comem para não perceberem que ele não era ridículo, mas fino de penas. Superava a si mesmo sobretudo quando se tratava de imitar os movimentos, as caretas e as afectações femininas. O que faz uma mulher, sorri maliciosamente? E ele, por baixo da aba do chapéu, esboçava um riso de escárnio, vulgar, de prostituta. Requebrava, como se diz, um pouco os quadris? E ele começava a dança do ventre, jogando para o lado as nádegas quadradas e maciças como um pacote. Tinha uma voz suave? E ele, apertando a boca, emitia uma voz de flauta, melosa, quase estomacal. Nunca tinha medida, ultrapassava sempre o limite, tornava-se obsceno, repugnante. De tal maneira, que eu sempre me envergonhava, porque uma coisa é acompanhar um cantor ao violão, outra coisa é servir de muleta a um palhaço. Eu me lembrava de ter tocado não muito tempo atrás as mesmas músicas cantadas seriamente por um excelente artista; e sentia pena de vê-las reduzidas àquilo, irreconhecíveis e indecentes. Falei com ele numa ocasião em que estávamos batendo perna de rua em rua, de um restaurante a outro. “Mas o que as mulheres fizeram para você?” Normalmente, depois que bancava o palhaço, ficava distraído e sombrio, sabe-se lá com que pensamentos rodando pela sua cabeça. “As mulheres não me fizeram nada.” “Eu estou dizendo isso”, expliquei, “porque você tira sarro delas com gosto.” Desta vez ele não disse nada e a conversa acabou por aí.

Teria abandonado Milone se não tivesse mais interesse por ele; porque, ainda que possa parecer incrível, ele conseguia mais dinheiro com as suas vulgaridades do que muitos excelentes músicos ambulantes com as suas belas canções. Vagávamos principalmente por aqueles restaurantes não propriamente de luxo, quase cantinas, caseiros, mas caros, onde as pessoas vão para encher a pança e se divertir. Logo que entrávamos, eu, muito de leve, dedilhava o violão, das mesas abarrotadas ouvia-se um só grito: “olha o professor... o professor está aí... venha até aqui, professor”. Carrancudo, debochado, desvairado, puxa-saco, Milone se apresentava, dizendo: “Podem pedir”, e aquele “podem pedir” já era tão ridículo ao seu modo, que todos morriam de rir. Nisso chegava o macarrão e, enquanto o dono do restaurante esfalfava-se para servir, Milone, com uma voz idiota, anunciava: “Uma canção muito bonita: quando Rosina desce do vilarejo... eu vou fazer a Rosina” Imaginem os clientes: quando o viam representando Rosina, com a gaguez e as obscenidades de sempre, ficavam com os esparguetes pendurados no garfo, entre a boca e o prato. E não se tratava de grupos de açougueiros ou coisa parecida, eram todos grã-finos: os homens de terno azul escuro, engomados, uma pérola espetada na gravata; as mulheres de casaco de pele, cobertas de jóias, delicadas, preciosas. Falavam entre si, enquanto Milone bancava o palhaço: “É bom... é realmente bom”, ou até mesmo alguém, alarmado, gritava: “Atenção, não contem por aí que nós o descobrimos... se não a coisa desanda”. Entre as suas vulgaridades, Milone tinha uma canção em que, numa determinada hora, para tornar o personagem mais ridículo, fazia com a boca um certo barulho que eu nem lhes conto. E vocês acreditam? Eram exactamente as madames mais afectadas que pediam bis para esta música.

É preciso dizer que, por ser ver tão aplaudido, o sucesso tinha subido à cabeça de Milone. Morava na casa de uma costureira, num quarto mobilado, escuro e húmido, na via Cimarra. Agora, todas as vezes que eu ia pegá-lo alguma nova grosseria, uma nova vulgaridade. Acrescentava um certo escrúpulo mórbido, como se se tratasse de um grande actor preparando-se para a apresentação;  e eu, sentado na cama, olhando-o simular a dança do ventre na frente do espelho da cómoda, perguntava-me se, por acaso, ele não fosse meio louco. “Mas não seria hora”, perguntei-lhe num certo dia, “de inventar alguma coisa graciosa, comovente?” E ele: ”a ver que você não entende nada... as pessoas quando comem querem rir e não se comover... e eu”, acrescentou rancoroso, “faço elas rirem”. Algum tempo depois, sempre por causa dessa mania de se aperfeiçoar, inventou de levar numa maleta algumas roupas femininas pro exemplo, um chapéuzinho, uma encharpe, uma sainha para vestir na hora, para tornar a paródia mais cómica ainda. Esta ideia de travestir-se de mulher, nele, era quase uma mania; não podem imaginar que dureza era vê-lo chacoalhar-se com o chapéuzinho sobre os olhos e a saia amarrada na cintura, por cima das calças. Finalmente, não sabendo mais o que inventar, sugeriu que eu também bancasse o palhaço, mesmo continuando a dedilhar o violão. E aí eu me recusei.

Percorríamos o maior número de restaurantes que conseguíamos, do meio-dia às três e das oito à meia-noite. Visitávamos vários, dependendo do dia: um dia os restaurantes dos lados da Piazza di Spagna; um dia aqueles ao redor da Piazza Venezia; outro dia os restaurantes de Trastevere, outro dia ainda aqueles próximos da estação de trem. Entre um restaurante e outro, sempre correndo pelas ruas, não conversávamos: não havia intimidade entre nós. No fim da noite, íamos a uma cantina e dividíamos o dinheiro. Depois, em silêncio, eu fumava um cigarro e Milone bebia um quarto de vinho. À tarde, Milone ensaiava os seus números à frente do espelho; eu, por minha vez, dormia ou ia ao cinema.

Numa noite de muito frio, depois de ter rodado as tabernas de Trastevere, entramos, mais para nos aquecermos do que para tocar, numa cantina atrás da Piazza Mastai. Tratava-se de um espaço comprido, quase um corredor, com as mesas alinhadas ao longo da parede e, nas mesas, quase só gente pobre, bebendo vinho da casa e comendo comida embrulhada em jornal. Não sei por que, a vaidade, já que não podia ser interesse, levou Milone a se exibir também naquela cantina. Escolheu então uma das suas músicas mais bonitas e, com os modos de sempre, reduziu-a, à força dos escárnios e das contorções, a uma porcaria. Logo que acabou, recebeu um aplauso bastante frio e depois, de uma daquelas mesas, escutou-se uma voz: “Agora, quem vai cantar esta música sou eu”.

Virei e vi que se aproximava um rapaz loiro, com um macacão de mecânico, bonito como um anjo, olhando para Milone com olhar furioso, como se quisesse comê-lo. “Você, comece a tocar”, disse-me com autoridade, “do início.” Milone, fingindo que estava cansado, deixou-se cair numa cadeira perto da porta. O rapaz me fez sinal com a mão para começar e então se pôs a cantar. Não digo que ele cantasse como um verdadeiro cantor, mas cantava com sentimento, com uma voz bonita, quente e tranquila, enfim, cantava como se deve cantar e como a música pedia para ser cantada. Além disso, como eu já disse, era bonito, com aqueles seus cachos, especialmente se comparado a Milone, tão maciço e sórdido. Cantava virado para a cantina, olhando para uma mesa onde estava sentada uma moça sozinha, como se estivesse cantando para ela. Quando terminou, fez um gesto para Milone, com a mão estendida, como se dissesse: “é assim que se canta”, e voltou para a mesinha onde o esperava a moça, que em seguida colocou os braços em volta do seu pescoço. Na cantina para dizer a verdade, aplaudiram por que ele se tinha incomodado em cantar. Mas eu o entendera; e, desta vez, Milone também tinha entendido.

Enquanto eu tocava, olhara frequentemente para Milone; tinha visto ele passar muitas vezes a mão no rosto e sob os cabelos que lhe caíam na testa, como quem não está suportando ficar acordado e está caindo de sono. Mas não conseguia esconder uma expressão amarga que eu nunca tinha visto; a cada nova estrofe que o moço acertava, parecia que sua amargura crescia. Finalmente se levantou, espreguiçando-se e fingindo que bocejava e disse: “Bem, está na hora de ir dormir... estou com um sono...”.

Despedimo-nos na esquina, com o habitual encontro marcado para o dia seguinte.  O que aconteceu durante a noite, reconstruí depois, mas são suposições. Eu disse que o sucesso tinha subido à cabeça de Milone, imaginando ser sabe-se lá que grande artista quando na verdade era um pobre coitado que bancava o palhaço para divertir as pessoas enquanto comiam; de modo que foi grande o tombo que aquele rapaz loiro de macacão lhe deu com o seu gesto. Acredito que, enquanto o rapaz cantava, de repente, deve ter visto a si próprio como era e não como tinha até então acreditado ser: um homenzarrão de cinquenta anos que colocava um babador e recitava a Vispa Teresa. Mas acho também que ele se julgava incapaz de cantar, mesmo tendo feito um pacto com o diabo. Ele, em suma, só conseguia fazer rir ridicularizando certas coisas. E estas certas coisas, por coincidência, eram exactamente aquelas que ele, na sua vida, nunca tinha conseguido ter.

Mas, como eu disse, são suposições. O certo é que a costureira que lhe alugava o quarto no dia seguinte o encontrou enforcado entre a janela e a cortina, no lugar em que geralmente ficavam penduradas as gaiolas dos passarinhos. Foram algumas transeuntes a notá-lo, da via Cimarra, vendo, através dos vidros, as pernas e os pés balançando no vazio. Despeitado como todo suicida, tinha fechado a porta à chave e apoiado na porta a cómoda com o espelho: talvez quisesse se ver, como quando ensaiava, enfiando o pescoço no laço. Em suma, tiveram que arrombar a porta, o espelho caiu e se quebrou. Levaram-no ao cemitério Verano e eu fui o único que o acompanhou, desta vez sem violão. A costureira recolocou o espelho, mas se consolou vendendo, a uma certa quantia o metro, a corda.

Alberto Moravia

domingo, 27 de novembro de 2016

OUTROS CONTOS

«Guilherme Mona», por Alexandre Dumas, Pai.

«Guilherme Mona»
Conto de Alexandre Dumas, Pai

923- «GUILHERME MONA»

Vivia na aldeia de Fouly, faz alguns anos, um pobre camponês chamado Guilherme Mona.

Todas as noites um urso ia roubar-lhe as pêras, porque para esses animais tudo serve. Ele se dirigia, contudo, de preferência a uma pereira carregada de pêras d'água. Quem suspeitaria que um animal desses possuísse gostos iguais aos dos homens e que fosse escolher num pomar justamente as pêras d'água? Ora, por desgraça o camponês de Fouly também preferia essas pêras a todos os demais frutos. A princípio ele julgou que as crianças fossem responsáveis pelos danos ao pomar; por isso apanhou o fuzil, carregou-o com sal grosso de cozinha e pôs-se à espreita. Cerca de onze horas, reboou pela montanha um rugido. "Ora essa, disse ele, há um urso nas proximidades." Dez minutos depois se ouviu um segundo rugido, mas tão forte, tão próximo, que o camponês pensou não dispor de tempo para alcançar sua casa e estendeu-se a fio comprido no chão, alimentando uma única esperança: a de que o urso viesse atrás das pêras e não dele.

De fato, o animal apareceu quase imediatamente a um canto do pomar e dirigiu-se em linha recta para a pereira em questão, passou a dez passos de Guilherme, subiu rapidamente na árvore, cujos galhos estalavam ao peso de seu corpo, e pôs-se a causar aí tais estragos que se tornava evidente serem bastantes duas visitas iguais àquela para a terceira se tornar inútil. Quando se fartou, o urso desceu vagarosamente, como se lhe pesasse fazê-lo, tornou a passar junto ao nosso caçador, a quem o fuzil carregado de sal não poderia ser muito útil, naquela situação, e retirou-se tranquilamente para a montanha. Tudo isso durara cerca de uma hora, durante a qual o tempo parecera maior para o homem que para o urso.

O homem era valente, entretanto... e dissera baixinho, ao ver o urso afastar-se: "Está bem, vai-te, mas isto não ficará assim, tornaremos a nos ver." No dia seguinte, um vizinho que fora visitá-lo encontrou-o serrando em pedaços os dentes de um forcado.

— Que estás a fazer! — perguntou-lhe.

— Divirto-me — respondeu Guilherme.

O vizinho apanhou os pedaços de ferro, voltou-se em todos os sentidos, como homem que sabe o que pensar, e depois de refletir um instante disse: "Olha, Guilherme, se queres, ser franco confessa que estes pedacinhos de ferro estão destinados a furar uma pele mais grossa que a de um camelo."

— Talvez — respondeu Guilherme.

— Sabes que sou boa pessoa — prosseguiu Francisco (era o nome do vizinho) — pois bem! se quiseres, enfrentaremos ambos o urso: mais valem dois homens que um só.

— Depende — disse Guilherme. E continuou a serrar um terceiro pedaço de ferro.

— Olha — continuou Francisco, ficarás com a pele sozinho; apenas dividiremos o prémio e a carne.

— Prefiro tudo — disse Guilherme.

— Mas não me podes impedir de procurar o rastro do urso na montanha e, caso o encontre, de me emboscar em seu caminho.

— És livre de fazê-lo.

E Guilherme, que acabara de serrar seus três pedaços de ferro, começou, assobiando, a preparar uma carga de pólvora duas vezes maior do que a geralmente usada em carabinas.

— Parece-me que vais usar teu fuzil — disse Francisco.

— Claro! Três pedaços de ferro são mais seguros que uma bala de chumbo.

— Isso estraga pele.

— Porém mata mais depressa.

— E quando pretendes fazer a cagada?

— Saberás amanhã.

— Pela última vez, não queres?

— Não.

— Previno-te que vou procurar o rastro.

— Divirta-se.

— Nós ambos, não?

— Cada qual por si.

— Adeus, Guilherme!

— Boa sorte, vizinho!

E o vizinho, ao se afastar, viu Guilherme colocar no fuzil a dupla carga de pólvora, carregá-lo com os três pedaços de ferro e encostar a arma a um canto do aposento. À noite, voltando a passar em frente à casa, avistou, no banco junto à porta, Guilherme sentado, a, fumar tranquilamente seu cachimbo. Procurou-o novamente. "Olha, disse-lhe, não guardo rancor. Achei o rastro do nosso animal; de modo que não mais preciso de ti. Contudo, proponho-te mais uma vez trabalharmos juntos."

— Cada qual por si — disse Guilherme.

O vizinho não pôde dizer alguma sobre o emprego dado por Guilherme ao serão.
Às dez e meia, sua mulher viu-o apanhar o fuzil, dobrar debaixo do braço um saco de cor cinzenta e sair. Não ousou perguntar-lhe aonde ia. Francisco, por seu lado, realmente encontrara o rastro do urso; seguira-o até o instante em que penetrara no pomar de Guilherme. E, não tendo o direito de ficar de tocaia nas terras de seu vizinho, postou-se no pinheiral que fica a meio caminho entre a montanha e o pomar de Guilherme.

Como a noite estivesse muito clara, viu este último sair de casa pela porta dos fundos. Guilherme caminhou até um rochedo acinzentado que rolara da montanha até o meio de sua propriedade e que ficava a vinte passos, quando muito, da pereira, deteve-se aí, olhou para o saco, meteu-se dentro dele, deixando aparecer apenas a cabeça e os braços, e apoiando-se à rocha, depressa confundiu-se a tal ponto com a pedra, graças à cor do saco e à imobilidade em que e conservava, que o vizinho, embora ciente de que ele ali estava, não conseguia distingui-lo. Um quarto de hora decorreu assim à espera do urso. Por fim, um rugido prolongado anunciou-o. Cinco minutos após, Francisco avistou-o.
Mas, fosse por malícia, fosse por ter farejado o segundo caçador, ele não seguia o caminho habitual; fizera, pelo contrário, uma volta, e em vez de passar à esquerda de Guilherme, como acontecera na véspera, passava agora à sua direita, fora do alcance da arma de Francisco, mas a dez passos, no máximo, do fuzil de Guilherme.

Guilherme não se moveu. Poder-se-ia julgar que nem mesmo estivesse vendo a fera que ele fora tocaiar e que parecia desafiá-lo passando tão próximo. O urso, ao qual o vento não ajudava, pareceu, por seu lado, ignorar a presença de um inimigo, e continuou rapidamente seu caminho em direção à árvore. Mas no instante em que, erguendo-se nas patas traseiras, abraçou o tronco com as patas dianteiras, descobrindo o peito, que seus grossos ombros não mais protegiam, brilhou de súbito um sulco rápido de luz junto ao rochedo e todo o vale reboou com a descarga do fuzil provido de dupla carga de pólvora, e com os bramidos do animal, mortalmente ferido. Não houve uma pessoa sequer na aldeia, talvez, que, não ouvisse a detonação do fuzil de Guilherme e o bramido do urso. Este fugiu, tornando a passar, sem vê-lo, a dez passos de Guilherme, que tornara a meter os braços e a cabeça no saco confundindo-se outra vez com o rochedo.

O vizinho olhava semelhante cena apoiado nos joelhos e na mão esquerda, apertando a carabina com a direita, pálido e contendo a respiração; não obstante tratar-se de um caçador arrojado, confessou-me que, nesse instante, preferia estar em sua cama a estar ali na tocaia.

Muito pior foi quando ele viu o urso ferido, depois de dar uma longa volta, tentar seguir o caminho da véspera, que o levava diretamente onde ele se encontrava. Fez o sinal da cruz, porque nossos caçadores são religiosos, encomendou a alma a Deus e verificou se a carabina estava pronta para disparar. O urso estava somente a cinquenta passos, rugindo de dor, parando para torcer-se e morder o flanco no lugar do ferimento, e depois continuando a avançar.

Cada vez mais se aproximava. Estava apenas a trinta passos. Mais dois segundos e iria chocar-se contra o cano da carabina do vizinho quando, parou de repente, aspirou ruidosamente o vento que soprava do lado da aldeia, soltou um bramido terrível e voltou para o pomar.

— Cuidado, Guilherme! Cuidado! — exclamou Francisco precipitando-se atrás do urso e tudo esquecendo para apenas pensar no amigo, porque bem via que se Guilherme ainda não houvesse carregado de novo o fuzil, estaria perdido. Não dera dez passos quando ouviu um grito. Um grito humano, um grito ao mesmo tempo de dor e de agonia; um grito no qual a pessoa que o soltava reunira todas as forças de seu peito, todos os seus rogos a Deus, todos os seus pedidos de socorro aos homens: "Ai de mim!..."

Depois, mais nada, nem sequer um lamento sucedeu ao grito de Guilherme.

Francisco não corria, voava; o declive do terreno acelerava-Ihe a corrida. À medida que se aproximava, ia distinguindo cada vez mais nitidamente o monstruoso animal que se movia na sombra, pisando o corpo de Guilherme e despedaçando-o.

Francisco estava a quatro passos deles, e o urso estava tão embravecido que não dera mostra de vê-lo. Ele não se atrevia a atirar, com receio de matar Guilherme, se este ainda não houvesse morrido, porque tremia tanto que não podia responder por sua pontaria. Apanhou uma pedra e jogou-a no urso. O animal voltou-se enfurecido contra o novo inimigo; estavam tão próximos um do outro que o urso levantou-se nas patas traseiras para sufocá-lo; Francisco sentiu-o empurrar com o peito o cano da carabina. Premiu, maquinalmente, o dedo no gatilho e o tiro partiu. O urso caiu para trás, a bala atravessara-lhe o peito e partira-lhe a coluna vertebral.

Francisco deixou-o arrastar-se, bramindo, sobre as patas dianteiras, e correu para Guilherme. Este não era mais um homem, nem mesmo era um cadáver: dele restavam apenas ossos e carne esmagada, a cabeça estava quase completamente devorada.

Como visse então, pelo movimento das luzes atrás das janelas, que muitos habitantes da aldeia haviam despertado, gritou repetidas vezes, indicando o lugar onde se encontrava. Alguns camponeses acudiram com armas, porque tinham ouvido os gritos e os tiros.

Depressa toda a aldeia se encontrou reunida no pomar de Guilherme. Sua mulher veio com os outros. Foi uma cena horrível. Todos os presentes choravam como crianças. Fizeram para ela, no vale do Ródano, uma coleta que rendeu 700 francos. Francisco deu-lhe a recompensa que recebeu, bem como lhe entregou o produto da venda da pele e da carne do urso. Finalmente, todos se esforçaram em ajudá-la e socorrê-la.

Alexandre Dumas, Pai

SÁTIRA...

A Morte
Sátira...

«A MORTE»

- Muito calma esta Nação,
Faz-me mal tanto sossego…
Na guerrilha sou estratego,
‘Hasta Siempre’ Revolução!
- Não bate mais o coração
A morte veio num instante,
Levou ‘El Comandante’
Pra não mais o devolver…
Ninguém escapa de morrer,
 Seja ou não importante!

POETA

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

SÁTIRA...

O Carmo e a Trindade
Sátira...

«O CARMO E A TRINDADE»

- Madcelo, tu podes dized tudo
Com a maiod natudalidade,
Sem caid o Cadmo e a Tdindade…
És um pdesidente sodtudo!
Eu, que quase sempde estive mudo,
Pod falad… “a pdesidência está tesa,
O oddenado não cobde a despesa”…
Fui cditicado da esquedda à dideita.
- Passo a explicar a minha receita:
Carmo e Trindade, amigos à portuguesa!!

Traduzindo…

- Marcelo, tu podes dizer tudo
Com a maior naturalidade,
Sem cair o Carmo e a Trindade…
És um presidente sortudo!
Eu, que quase sempre estive mudo,
Por falar… “a presidência está tesa,
O ordenado não cobre a despesa”…
Fui criticado da esquerda à direita.
- Passo a explicar a minha receita:
Carmo e Trindade, amigos à portuguesa!!

POETA

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

A CENA REPETE-SE...

«A Velha Fonte», conto poético por Manel d' Sousa.

Fontanário em mármore datado de Junho de 1872, junto ao antigo Hospital da Misericórdia de Alandroal, sofreu, pela terceira vez, actos de vandalismo inqualificáveis. Triste... muito triste!
Poet'anarquista
«A Velha Fonte»
Fontanário/ 1872

922- «A VELHA FONTE»

Era ela que sempre olhava
À saída do antigo hospital,
E com sorriso contemplava...
- «Velha fonte, quem te fez mal?»

A cena repete-se...

Anda à solta um anormal
Com o seu spray de tinta…
Esta besta tudo pinta,
Sofre de atraso mental.
Há génios que são do mal
E nada mais sabem fazer,
Sentem especial prazer
Estragar o que é de todos…
O vândalo não tem modos?
Mate-se, se não sabe viver!

Manel d’ Sousa

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

OUTROS CONTOS

«O Rei e a Florista», por Soren Kierkegaard.

«O Rei e a Florista»
A Florista/ Murillo

921- «O REI E A FLORISTA»

Era uma vez um jovem rei que governava um pequeno reino. O rei vivia num castelo com seus servos, mas não tinha uma esposa. Toda a semana passeava pelo seu reino para ver como andavam as coisas. Um dia, ao retornar ao castelo,  passou por uma praça. Lá viu uma moça que vendia flores numa banca. Era tão linda que não a conseguia tirar dos seus pensamentos. Começou a sair todos os dia e passar pela praça. Não havia como não se comportar de outro modo.

Quando se passara um mês, percebeu que amava a garota e que se casaria com ela. Mas de que maneira ele deveria agir?

Imaginou o que ocorreria se ordenasse para a moça se casar com ele e depois não o amasse. Esse pensamento incomodava o rei, pois não queria somente uma rainha, mas antes uma esposa que o amasse. Seria ela capaz de esquecer que ele era o rei e ela uma mera florista?

Como poderia conquistar o coração dela?

O rei tentava achar uma solução para seu problema. Nem comia ou dormia. Depois de alguns dias, encontrou um caminho. Viria a ela à praça com uma carruagem dourada puxada por seis de seus melhores cavalos. Diante iria a banda tocando e atrás dele, o melhor regimento de seu exército em belos uniformes. A carruagem pararia na banca da donzela e um tapete vermelho se desenrolaria. Chegaria  a ela com suas mais majestosas vestes com a coroa e as jóias reais. Certamente ela  ficaria impressionada.

Porém, um pouco depois o rei se arrependeu. Isso seria errado. Ela com certeza ficaria impressionada. Entretanto, ser impressionada  e amar não é a mesma coisa.

Então o rei teve outra ideia. Presentear-lhe-ia a carruagem dourada com os seis cavalos. Daria o regimento dos soldados, a banda marchante, jóias, dinheiro e as mais belas roupas. Seguramente ela seria grata. Todavia, no dia seguinte o rei também abandonou a ideia. Ser grata, ser eternamente grata e amar não são a mesma coisa.

Finalmente, o rei percebeu que realmente só havia uma solução. Ele deveria chegar à donzela não como um príncipe, mas vestido como um mendigo ou um camponês e tentar conquistá-la como um igual a ela.

Na manhã seguinte, enquanto estava ainda escuro, o jovem rei saiu do castelo pelas portas do fundo e caminhou para a praça. Sentia nervoso e inseguro. Ele, que tinha poder sobre todo o reino, poder sobre todas as riquezas do país e soldados, estava nesse instante sem poder. Havia uma coisa sobre a qual  não tinha poder: o coração da donzela. Este tinha a liberdade de amá-lo ou deixá-lo, liberdade de dizer sim ou não.

Se o rei teve sucesso com seu plano? Não sabemos. Isso depende inteiramente da donzela.

Soren Kierkegaard

terça-feira, 22 de novembro de 2016

OUTROS CONTOS

«Um Pouco de Ternura», por Armando Baptista-Bastos.

«Um Pouco de Ternura»
Edgar Dégas/ 1886

920- «UM POUCO DE TERNURA»

Nos olhos dela habitava a bondade. Um doce sorriso embalava-lhe os lábios, e a face transparecia a tranquilidade interior de quem não fora punida pelo despeito nem agredida pelo ressentimento. Era ainda nova: vivia na linha de sombra que tenuemente divide a idade das pessoas, entre maduras e velhas. De onde viera? Que idade tinha? Ninguém sabia. Por vezes, pintava os lábios murchos. Por vezes, exibia largos decotes e mangas cavadas, eis o traço lascivo dos seios, eis os braços roliços, opulentos e sensuais. Era alta, quase imponente; porém, quando subia a rua íngreme, parecia alada, os pés quase não tocavam no chão.

Aparecera no bairro e logo se organizara uma aura de mistério em sua volta. Apesar da estatura, mantinha-se discreta e reservada, pouco falava com os vizinhos. Havia dias em que cantava; cantava alto velhas canções de amor. Nas tardes de sábado, os homens reuniam-se no clube, jogavam ao loto e à sueca e, ocasionalmente, embebedavam-se.

Ela residia num pequeno apartamento, mesmo por cima do clube. Gostava de se colocar à varanda, e os homens fitavam-na, gulosos, ávidos e sôfregos. Fingia não os ver. As mulheres remoíam raivas e amuos. Ela observava o horizonte, lá, onde o Tejo forma uma laçada, e permanecia assim: abstracta, atenta e exposta. Mas gostava que a apreciassem, e divertia-se com o ciúme das outras. Às vezes dançava ao som de uma pequena telefonia. Dançava como se estivesse a dançar com o mundo, ou, quem sabe?, a pensar em alguém que amara.

As geografias sentimentais são mais ou menos favoráveis: o bairro era bom e valia tudo o que de ele se dissesse; o resto era mau, e tudo o que de pior se dissesse nunca seria excessivo. Começaram as intrigas, as suposições pérfidas, as calúnias evasivas. Não lhe perdoavam a beleza, a dignidade da postura, a pequena viração de altivez que dela se desprendia.

Suspeitaram de tudo: que era prostituta, que vivia às custas de um proprietário de imóveis, que fazia números de nu em cabarés rascas. Chegou-lhe aos ouvidos a natureza insidiosa desses boatos. Não lhes atribuiu a menor importância, o que ainda mais arreliou as outras. 

Saía de casa logo pela manhã, regressava tarde, ocasionalmente ausentava-se pela noite. Acumulavam-se as suspeições. Até que, certo dia, deixou de aparecer. O falatório aumentou. Coisas medonhas foram ditas, como se de verdades se tratassem. Correu o tempo; uma semana passou, outra, e outra ainda. Para onde fora? Que seria feito dela? E se ele não regressasse, não pudesse regressar ou não quisesse regressar?

Depois, houve quem a visse. Era numa tarde em que a chuva, lamentosa, caía forte. Desapareceu no cotovelo da rua, quem a viu acelerou o passo para descortinar aonde ela ia. Entrou num prédio alto e antigo, de azulejos, e ao perseguidor assaltou a ideia de que a vizinha misteriosa talvez fosse mulher-a-dias. Este indivíduo tivera, em tempos, a veleidade de se relacionar com ela; porém, fora rejeitado com uma frase breve e ríspida. Era o ressentimento que o incitara àquela infausta perseguição.

Horas e horas decorreram. A chuva deixara de cair, o homem encostara-se a uma árvore, sem abandonar a vigilância ao prédio. Até que, finalmente, ela reapareceu. Olhou em derredor e, rapidamente, aproximou-se da árvore onde o outro se ocultava. Atrapalhou-se, o homem. E ela disse:

— Quer saber o que eu faço, não é? 

— Bom…bom — Não sabia o que responder.

— Olhe: vendo ternura.

E desandou. Agora, uma brisa mansa, um vento acariciador, um pio de ave, e o silêncio. Era assim: todos os dias, ou quase, ela visitava casas de gente idosa, e recebia escassos euros para lhes ler jornais, revistas ou livros de histórias cordatas com finais felizes. Simplesmente um pouco de ternura.

Voltou à rua para se despedir da rua e ignorar as pessoas. As pessoas juntaram-se, viram-na subir o calçadão, puxar pelas pernas para escalar a escadaria enorme. Durante algum tempo pensaram nela. Nunca ninguém soube o seu nome, nem se foi feliz na vida.

Anos depois, um modesto cronista contou-a numa crónica humilde.

Armando Baptista-Bastos

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(Escolha musical da blogosfera)

LEONARD COHEN
«Dance Me to the End of Love»

Poet'anarquista

DANCE COMIGO ATÉ AO FIM DO AMOR

Dance comigo com sua beleza ao som do violino ardente
Dance comigo através do medo até nos reunirmos em segurança
Erga-me como um ramo de oliveira e seja minha pomba da paz
Dance comigo até ao fim do amor
Dance comigo até ao fim do amor

Oh, deixe-me ver sua beleza quando os delatores se forem
Deixe-me sentir seus movimentos como faziam na Babilônia
Mostre-me lentamente aquilo de que só eu conheço os limites
Dance comigo até ao fim do amor
Dance comigo até ao fim do amor

Dance sempre comigo durante nosso casamento, outra vez e outra vez
Dance comigo carinhosamente e por muito tempo
Estamos protegidos pelo nosso amor, buscamos a nós mesmos
Dance comigo até ao fim do amor
Dance comigo até ao fim do amor

Dance comigo antes que as crianças peçam para nascer
Dance comigo através das barreiras que nossos beijos têm desgastado
Monte um abrigo agora, para enfrentar as tempestades
Dance comigo até ao fim do amor

Dance comigo com sua beleza ao som do violino ardente
Dance comigo através do medo até eu estar a salvo
Toque-me com sua mão nua ou acaricie-me com sua luva
Dance comigo até ao fim do amor
Dance comigo até ao fim do amor
Dance comigo até ao fim do amor

Leonard Cohen
Músico, Cantor e Compositor Francês

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

BJORK - «History of Touches»

Poet'anarquista

HISTÓRIA DOS TOQUES

Eu o acordo no meio da noite
para expressar meu amor por você
percorrer sua pele e senti-lo
nua eu posso sentir tudo de você
ao mesmo momento

eu o acordo na noite
sentindo que essa é a nossa última vez juntos
por isso sentindo todos os momentos
que nós estivemos juntos
estando aqui ao mesmo tempo
cada um dos toques
nós nunca nos tocamos
cada uma das curtes
que tivemos juntos
estão num espaço de tempo maravilhoso
connosco aqui neste momento
a história dos toques
cada um dos arquivos
comprimido num segundo
tudo connosco aqui enquanto eu o acordo

Bjork
Cantora e Compositora Islandesa

SÁTIRA...

Diabo no Corpo
Sátira...

«DIABO NO CORPO»

- Senhor padre, eu confesso
Que sou um grande nabo,
Mas ser amigo do diabo?…
Essa gente peca por excesso!
- Conheço o teu insucesso…
Tudo mal te tem corrido,
Na oposição anda perdido
Um diabo muito pobre…
Antes que mal pra ti sobre,
Fica na toca escondido!!

POETA

domingo, 20 de novembro de 2016

OUTROS CONTOS

«Nostalgia», conto poético por Nazim Hikmet.

«Nostalgia»
Melancolia/ Edvard Munch

919- «NOSTALGIA»

passaram cem anos seu eu ver o teu rosto,
prender a tua cintura,
passar o dia nos teus olhos,
questionar a tua sapiência,
e estar próximo do calor do teu ventre.

passaram cem anos que uma mulher me espera
numa bela cidade.

nós, nós estávamos na mesma rama,
nessa mesma rama.
caímos dessa mesma rama e separámos-nos.
e hoje cem anos nos afastam,
cem anos de caminho.

hoje faz cem anos que
por entre a escuridão
eu a procuro.

Nazim Hikmet

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

OUTROS CONTOS

«O Silêncio é uma Força», por Marcel Proust.

«O Silêncio é uma Força»
Silêncio/ Henry Fuseli

918- «O SILÊNCIO É UMA FORÇA»

“Já se disse que o silêncio era uma força; num sentido completamente diferente, ele é uma força, e terrível, à disposição daqueles que são amados. Uma força que aumenta a ansiedade de quem espera. Nada convida tanto alguém a aproximar-se de um ser como o que dele o separa, e que barreira existe mais intransponível que o silêncio? Já se disse também que o silêncio era um suplício, e capaz de enlouquecer aquele que nas prisões a ele estava obrigado. Mas que suplício - maior que o de guardar silêncio  - é o de sofrer o silêncio de quem se ama! Robert dizia de si para si: «Que estará ela a fazer para estar assim calada? Estará por certo a enganar-me com outros...» Dizia ainda: «Que fiz para ela estar assim calada? Provavelmente odeia-me, e para sempre.» E acusava-se a si mesmo. Assim, com efeito, o silêncio o punha louco de ciúme e de remorso. De resto, mais cruel que o das prisões, tal silêncio é ele mesmo uma prisão. Uma clausura imaterial, sem dúvida, mas impenetrável, aquela fatia interposta de atmosfera vazia, mas que os raios visuais do abandonado não podem atravessar. Haverá luz mais terrível que o silêncio, que não nos mostra uma ausente, mas mil, e cada uma delas entregando-se a alguma outra traição? Às vezes, numa brusca distensão, Robert acreditava que esse silêncio iria cessar daí a pouco, que a esperada carta iria chegar. Via-a a chegar, espiava cada ruído, a sua sede estava já saciada, murmurava: «A carta! A carta!» Depois de ter assim entrevisto um oásis imaginário de ternura tornava a dar consigo patinhando no deserto real do silêncio sem fim.

Sofria adiantadamente todas as dores, sem esquecer nenhuma, de um rompimento que em outras ocasiões julgava poder evitar, como aquelas pessoas que liquidam todos os seus assuntos na mira de uma expatriação que não irá efectuar-se, e cujo pensamento, que já não sabe onde deverá situar-se no dia seguinte se agita momentaneamente, despegado delas, semelhante a um coração que se arranca a um doente e que continua a bater, separado do resto do corpo. Em todo o caso, esta esperança de que a amante regressaria dava-lhe coragem para perseverar no rompimento, tal como a crença de poder regressar vivo do combate ajuda a enfrentar a morte. E como o hábito é, de todas as plantas humanas, aquela que menos necessidade tem para viver de um solo rico de alimento, e a primeira a aparecer no aparentemente mais desolado dos rochedos, talvez começando por praticar o rompimento a fingir acabasse por se lhe acostumar sinceramente. Mas a incerteza alimentava nele um estado que, ligado à recordação daquela mulher, se assemelhava ao amor. Forçava-se contudo a não lhe escrever (pensando acaso que o tormento era menos cruel de viver sem a amante que com ela em certas condições, ou que, depois da maneira como se haviam separado, esperar as suas desculpas era necessário para que ela conservasse o que acreditava que ela sentia por ele, senão de amor, pelo menos de estima e respeito). “

Marcel Proust

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

OUTROS CONTOS

«Palácio do Príncipe Baq-e-Sháhzdeh», conto poético por Adalberto Alves.

«Palácio do Príncipe Baq-e-Sháhzdeh»
Jardim em Giverny/ Claude Monet

917- «PALÁCIO DO PRÍNCIPE BAQ-E-SHÁHZDEH»

jardim:
gabo de dia o teu palácio
mas é à noite que eu te amo:
ciprestes banhados de luar
hortas viçosas beijadas pelo orvalho.
namoro as águas murmurantes
e sou pela tua brisa visitado.

à noite o encontro é mais secreto:
canta o rouxinol as almas dos poetas.

diz-me jardim:
que distinção alcanças entre teu ser
e a substância da minha própria alma?

quando vagueio nas tuas alamedas
o jardim sou eu e o poeta és tu!

Adalberto Alves

SÁTIRA...

Depois da Tempestade...
Sátira...

DEPOIS DA TEMPESTADE…

Zé, podes encarar
O próximo ano,
Que não há engano…
Deves pois confiar,
E não te assustar
Com a situação.
Em jeito de conclusão:
Geringonça aprovada...
Sem ser rectificada
Passou na Inspecção!

Já o tinha dito:
Antes geringonça afanada,
Que laranja do chão estragada!
De novo cito...

POETA

DÉCIMA A MANUEL DE SOUSA BIGA

Manuel de Sousa Biga
Avô Materno

DÉCIMA A MANUEL DE SOUSA BIGA

Eis meu avô materno
Manuel de Sousa Biga…
Deixem que vos diga,
O carinho é eterno!
Seu olhar era terno
E bem verdadeiro,
Os netos em primeiro
Que tudo mais o resto…
Honra, hoje lhe presto,
Com justiça por inteiro!

Manel d’ Sousa

FOTO-POESIA

Super Lua - 14. 11. 2016
Foto: Nuno Mendes

SUPER LUA

Super Lua aparecida
Que o Astro iluminou,
Houve quem a captou
Ainda mal era nascida.
Parece mais crescida
Mas é pura ilusão,
Na sua rotação
Aproxima-se da terra…
O mistério que encerra
Tem esta explicação!

Manel d’ Sousa

Super Lua
Foto: Nuno Mendes

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

SÁTIRA...

Os Indignados
Sátira...

«OS INDIGNADOS»

- Filho gay?... desgraça,
É filho toxicodependente! (?)
- Psicologia deprimente…
Raios te partam, ó Vilaça!!
Tal afirmação ultrapassa
A ética fundamental,
Esta tipa é uma anormal
E precisa de ser tratada...
Não digo que está drogada,
Pois dizê-lo, parece mal.

POETA

domingo, 13 de novembro de 2016

SÁTIRA...

Por A mais B
Sátira...

«POR A MAIS B»

- Nada na mão ou manga,
O mesmo dentro da caixa…
A ilusão até que encaixa,
Assim ninguém se zanga!
- Outra vez a dar-me tanga…
Vá-se lá saber porquê,
Uma caixa é o que se vê
Completamente vazia…
- Sem qualquer anomalia,
Muito menos plano B!!

POETA

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

SÁTIRA...

Aberta Época de Caça ao Coelho
Sátira...

ABERTA ÉPOCA DE CAÇA AO COELHO

Abriu a caça ao Coelho...
Eu caçador me confesso,
A única coisa que peço
Acertar no dito fedelho!
Aceito bom conselho
Do tal Rui que sumiu,
Nunca ninguém o viu
Disparar tão contente…
Deve ser deprimente
Morrer à beira do Rio!!

POETA

OUTROS CONTOS

«Poema do Começo», conto poético por António Maria Lisboa.

«Poema do Começo»
Ilustração de António Maria Lisboa

916- «POEMA DO COMEÇO»

Eu num camelo a atravessar o deserto
com um ombro franjado de túmulos numa mão muito
aberta

Eu num barco a remos a atravessar a janela
da pirâmide com um copo esguio e azul coberto de
escamas

Eu na praia e um vento de agulhas
com um Cavalo-Triângulo enterrado na areia

Eu na noite com um objeto estranho na algibeira
— trago-te Brilhante-Estrela-Sem-Destino coberta de
musgo

António Maria Lisboa

ESPECIAL MÚSICAS DO MUNDO

E a música especial de hoje é...
(11 de Novembro de 2016 morre o escritor, músico, cantor e compositor francês, 
Leonard Cohen)

LEONARD COHEN - «You Want It Darker»

Poet'anarquista

VOCÊ QUER A ESCURIDÃO

Se você fosse o negociador
Eu sairia do jogo
Se você fosse o tratador
Eu estaria roto e acabado
Se vossa é a glória
Então minha deve ser a vergonha
Você quer a escuridão
Matamos a chama

Magnificado, santificado
Seja o Santo Nome
Caluniado, crucificado
Na moldura humana
Um milhão de velas acesas
Para a ajuda que nunca veio
Você quer a escuridão

Eis-me aqui, eis-me aqui
Eu estou pronto, Senhor

Há um amante da história
Mas a história é a mesma
Há uma canção para o sofrimento
E um paradoxo a culpar
Mas está escrito nas escrituras
E não é qualquer afirmação idólatra
Você quer a escuridão
Matamos a chama

Eles alinham os prisioneiros
E os guardas apontam
Eu luto com alguns demónios
De classe média e inofensivos
Eu não sabia que eu tinha permissão
Para assassinar e mutilar
Você quer a escuridão

Eis-me aqui, eis-me aqui
Eu estou pronto, Senhor

Magnificado, santificado
Seja o Santo Nome
Caluniado, crucificado
Na moldura humana
Um milhão de velas acesas
Pelo amor que nunca veio
Você quer a escuridão
Matamos a chama

Se você é o negociante, deixe-me fora do jogo
Se você é o tratador, estou roto e acabado
Se vossa é a Glória, minha é a vergonha
Você quer a escuridão

Eis-me aqui, eis-me aqui
Eis-me aqui, eis-me aqui
Eu estou pronto, Senhor

Leonard Cohen
Artista Francês