«Um Som de Trovão», por Ray Bradbury.
«Um Som de Trovão»
Conto de Ray Bradbury
1077- «UM SOM DE TROVÃO»
SAFARIS NO TEMPO, INC.
SAFARIS PARA QUALQUER ANO DO PASSADO
VOCÊ DIZ QUE ANIMAL.
NÓS O LEVAMOS LÁ.
VOCÊ O ABATE.
Uma flegma quente acumulou-se na garganta de Eckels; engoliu
e empurrou-a para baixo. Os músculos ao redor de sua boca formaram um sorriso
enquanto ele estendeu sua mão lentamente pelo ar, e naquela mão, balançava-se
um cheque de dez mil dólares, para o homem atrás da escrivaninha.
— Este safari garante que eu volte vivo?
— Não garantimos nada — falou o funcionário — excepto os dinossauros. —
Voltou-se. — Este é o Sr. Travis, seu Guia, no safari ao passado. Ele vai
dizer-lhe o que e aonde atirar. Se ele disser para não atirar, não se atira.
Se desobedecer às instruções, há uma pesada multa de mais de dez mil dólares,
mais um possível processo do governo, quando voltar.
Eckels olhou, através do amplo escritório, numa completa confusão disforme, de
fios entrelaçados e caixas de aço zumbindo, para uma aurora que agora reluzia
laranja, então prateada, e então, azul. Havia um som como uma descomunal pira
queimando todo o Tempo, todos os anos e todos os calendários, todas as horas
empilhadas e incendiadas.
Um toque da mão e esta queima, instantaneamente, se reverteria lindamente.
Eckels lembrou-se literalmente das palavras da propaganda. De carvões e
cinzas, da poeira e das brasas, como salamandras douradas, os velhos tempos, os
anos jovens, podem saltar; rosas suavizando o ar; cabelo branco enegrecendo-se,
rugas desaparecendo; tudo, voltando totalmente à origem, fugir à morte,
precipitar-se para o começo de tudo, o sol nascendo nos céus ocidentais, e
pondo-se gloriosamente no leste, luas devorando-se a si mesmas no sentido
oposto ao costumeiro, e tudo se sobrepondo, como caixas chinesas, coelhos em
cartolas, tudo e todos retornando à morte viva, a morte da semente, a morte
verde, ao tempo de antes do começo. O toque da mão poderia fazê-lo, o mero
toque da mão.
— Inacreditável. — Eckels respirava, com a luz da Máquina sobre seu rosto fino.
— Uma verdadeira Máquina do Tempo. — Abanou a cabeça. — É de fazer pensar. Se a
eleição tivesse ido mal ontem, eu poderia estar agora me afastando dos
resultados. Felizmente Keith ganhou. Será um bom presidente para os Estados
Unidos.
— Sim — falou o homem por trás da mesa. — Temos sorte. Se Deutscher tivesse
ganho, teríamos a pior ditadura. Há sempre um homem anti-tudo, um militarista,
um anti-Cristo, anti-humano, anti-intelectual. O povo nos requisitou, sabe,
como que brincando, mas a sério. Diziam que se Deutscher se tornasse
presidente, queriam viver em 1492. Claro, não é o nosso negócio conduzir
Fugas, mas organizar Safaris. De qualquer maneira, Keth é o presidente, agora.
Tudo com que precisa preocupar-se agora é...
— Caçar meu dinossauro — Eckels acabou para ele.
— Um Tyranossaurus rex. O Lagarto Tirano, o monstro mais inacreditável de toda
a história. Assine este termo. O que quer que aconteça com você, não somos responsáveis.
Esses dinossauros são muito vorazes.
Eckels animou-se, nervoso. — Tentando assustar-me!
— Francamente, sim. Não queremos que vá alguém que entre em pânico ao primeiro
tiro. Seis lideres de safari foram mortos no ano passado, e uma dúzia de caçadores.
Estamos aqui para dar-lhe a maior emoção que um caçador de verdade jamais
almejou. Mandá-lo de volta sessenta milhões de anos, para pegar a maior caça de
todos os tempos. Seu cheque ainda está aqui. Pode rasgá-lo.
O Sr. Eckels olhou para o cheque. Seus dedos retorceram-se.
— Boa-sorte — falou o homem atrás da escrivaninha. — Sr. Travis, ele é todo
seu.
Moveram-se silenciosamente, atravessando a sala, levando suas armas com eles,
em direcção à Máquina, rumo ao metal prateado e às luzes gritantes.
Primeiro, um dia e então uma noite e então um dia e então uma noite, e então
era dia-noite-dia-noite-dia. Uma semana, um mês, um ano. uma década! 2 055 a.
D., 2 019 a. D., 1 999! 1 957! Partida! A máquina rugia.
Puseram suas máscaras de oxigénio e testaram os intercomunicadores.
Eckels inclinou-se no assento estofado, rosto pálido, maxilar enrijecido.
Sentia o tremor em seus braços, olhou para baixo e achou suas mãos firmes no
novo rifle. Haviam quatro outros homens na Máquinas. Travis, o líder do Safari,
seu assistente, Lesperance, e mais dois outros caçadores, Billings e Kramer.
Sentavam-se olhando uns para os outros, e os anos ardiam à volta deles.
— Estas armas podem dar conta de um dinossauro? — Eckels sentiu sua boca
dizendo.
— Se os acertar direito — disse Travis pelo rádio do capacete. — Alguns
dinossauros têm dois cérebros, um na cabeça e outro no fim da espinha. Ficamos
longe destes. É abusar da sorte. Atire as duas primeiras vezes nos olhos, se
puder, e cegue-os, e volte a atirar no cérebro.
A Máquina bramia. O Tempo era um filme passado ao contrário. Os sóis voavam e
dez milhões de luas, atrás deles. — Pense só — disse Eckels. — Todos os
caçadores que jamais viveram nos invejariam hoje. Isto faz a África parecer
com o Illinois.
A Máquina desacelerou; seu grito caiu para um sussurro. A Máquina parou.
O sol parou no céu.
A névoa que envolvera a Máquina dissipou-se e estavam num tempo antigo, muito
antigo mesmo, três caçadores e dois chefes de safari com suas armas metálicas
sobre os joelhos.
— Cristo ainda não nasceu — disse Travis. — Moisés ainda não foi à montanha,
para falar com Deus. As pirâmides ainda estão na terra, esperando para serem
recortadas e montadas. Lembrem-se disso. Alexandre; César; Napoleão; Hitler;
nenhum deles existe.
O homem fez que sim.
— Aquilo. — Apontou o Sr. Travis — é a selva de sessenta milhões dois mil e
cinquenta e cinco anos antes do presidente Keith.
Mostrou o caminho de metal que cruzava o verde selvagem, sobre um amplo
pântano, por entre fetos e palmeiras.
E aquele — disse — é o Caminho, colocado por Safaris no Tempo, para seu uso.
Flutua a seis polegadas acima da terra. Não toca senão no máximo uma grama,
flor ou árvore. É um metal anti-gravitacional. Seu propósito é evitar que vocês
toquem, de qualquer maneira que seja, este mundo do passado. Fiquem no
Caminho. Não saiam dele. Repito. Não saiam. Por qualquer razão que seja! Se
caírem, serão multados. E não disparem em nenhum animal que não aprovemos.
— Por quê? — perguntou Eckels.
Sentaram-se, na floresta antiga. Gritos distantes de pássaros vieram com o
vento, e o cheiro de alcatrão e de um velho oceano salgado, grama húmida, e
flores da cor de sangue.
— Não queremos mudar o Futuro. Não pertencemos ao Passado. O governo não gosta
de nós aqui. Temos que pagar muita propina para garantir nossa licença. A
Máquina do Tempo é um negócio extremamente delicado. Sem saber, poderíamos
matar um animal importante, um pequeno pássaro, uma barata; mesmo uma flor,
assim destruindo um elo importante, numa espécie em evolução.
— Isso não fica muito claro, — falou Eckels.
— Está bem — continuou Travis, — suponhamos que acidentalmente matemos um
rato, aqui. Isso quer dizer que todos as futuras famílias deste rato, em
particular, serão destruídas, certo?
— Certo.
— E todas as famílias das famílias, daquele rato! Com um pisão de seu pé, você
aniquila primeiro um, então uma dúzia, então mil, um milhão, um bilião de
ratos, possivelmente!
— Então estarão mortos; e daí?
— E daí? — Travis torceu o nariz. — Bem, e as raposas que precisariam daqueles
ratos para sobreviver? Para cada dez ratos a menos, morre uma raposa. Para cada
dez raposas a menos, um leão morre de fome. Para cada leão a menos, insectos,
abutres, infinitos biliões de formas de vida são lançados ao caos e à
destruição. Eventualmente, tudo recai no seguinte: cinquenta e nove milhões de
anos depois, um troglodita, um, de uma dúzia no mundo inteiro, vai caçar
javalis ou tigres de dentes de sabre para comer. Mas você, amigo, pisou em
todos os tigres daquela região. Pisando num só rato. Assim o troglodita morre
de fome. E este homem das cavernas, note bem, não é qualquer um dispensável,
não senhor! Ele é toda uma nação futura. Dele, teriam saído dez filhos. E
destes, mais cem, e assim por diante, até a civilização. Destruindo este único
homem, destrói-se uma raça, um povo, toda uma história. É comparável a matar um
neto de Adão. O pisão de seu pé, num rato, poderia principiar um terremoto,
cujos efeitos poderiam abalar nossa terra e destinos pelo Tempo afora, até
seus alicerces. Com a morte daquele troglodita, um bilhão de outros ainda não
nascidos são mortos no útero. Talvez Roma nunca se erga sobre suas sete
colinas. Talvez a Europa fique para sempre uma floresta espessa, e apenas a
Ásia cresça, forte e saudável. Pise num rato e esmagará as Pirâmides. Pise num
rato e deixará sua marca, como um Grand Canyon, pela Eternidade. A rainha
Elizabete poderá nunca nascer. Washington poderá não cruzar o Delaware, poderá
nunca haver Estados Unidos. Portanto, seja cuidadoso. Fique no caminho. Nunca
pise fora!
— Percebo — comentou Eckels. — Então não poderíamos nem tocar a grama?
— Exacto. Esmagar certas plantas poderia causar somas infinitesimais. Um erro
mínimo seria multiplicado por sessenta milhões de anos, desmesuradamente.
Claro, talvez nossa teoria esteja errada. Talvez o Tempo não possa ser
alterado por nós. Ou talvez só possa ser alterado de maneiras subtis. Um rato
morto aqui causa um desequilíbrio dos insectos ali, uma desproporção
populacional mais tarde, uma colheita má mais adiante, uma depressão, fome, e
finalmente uma mudança no temperamento social em países remotos. Algo muito
mais subtil, como isso. Talvez algo ainda muito mais subtil. Talvez apenas uma
respiração, um sussurro, um cabelo, um pólen no ar, uma mudança tão levezinha
que se olhasse atentamente, não notaria. Quem sabe? Quem pode dizer que
realmente sabe? Não sabemos. Estamos só adivinhando. Mas até que tenhamos
certeza, se nossos passeios pelo Tempo podem fazer um barulhão ou um barulhinho
na História, seremos cuidadosos… Esta Máquina, este Caminho, suas roupas e
corpo, foram esterilizados, como sabem, antes da viagem. Usamos estes
capacetes de oxigénio de modo que não possamos introduzir bactérias nesta
atmosfera primitiva.
— Como sabemos que animais abater?
— Estão marcados com tinta vermelha — explicou Travis. — Hoje, antes da
viagem, mandamos Lesperance aqui com a Máquina. Ele veio a esta época em
particular e seguiu certos animais.
— Estudando-os?
— Isso — falou Lesperance. — Sigo-os por toda sua vida, observando quais vivem
mais. Quantas vezes se acasalam. Poucas vezes. A sua vida é curta. Quando vejo
que algum vai morrer com uma árvore caindo em cima dele, ou um que se afoga num
poço de alcatrão, anoto a hora, minuto, e segundos exactos. Disparo um revólver
de tinta. Deixa uma marca vermelha em seus flancos. Não podemos nos enganar.
Então correlaciono com a chegada ao Caminho, de modo que encontremos o monstro
a não mais de dois minutos de sua morte, inevitável. Desta forma, matamos
apenas animais sem futuro, que nunca vão se acasalar de novo. Vê como somos
cuidadosos?
— Mas se esta manhã você voltou no tempo, deve ter cruzado connosco mesmos,
nosso safari! Como nos saímos? Tivemos sucesso? Conseguimos voltar todos...
vivos?
Travis e Lesperance entreolharam-se.
— Isso seria um paradoxo, — falou este último. — O tempo não permite esse tipo
de confusão; um homem encontrando a si mesmo. Quando há o risco de tais
situações, o tempo desvia-se. Como um avião passando por um vácuo. Sentiu a
Máquina pular antes de pararmos? Éramos nós passando por nós mesmos, a caminho
do Futuro. Não vimos nada. Não há meio de dizer se esta expedição teve sucesso;
se pegamos nosso monstro, ou se todos nós, isto é, o senhor, Sr. Eckels, saiu
vivo.
Eckels sorriu, palidamente.
— Parem com essa conversa — interrompeu Travis. — Todos de pé!
Estavam prontos para deixar a Máquina.
A selva era alta, a selva era larga, e a selva era todo o mundo, para sempre.
Sons como música, e sons como tendas voando, encheram o ar, e eram pterodátilos
planando com cavernosas asas cinzentas, morcegos gigantescos de delírio e febre
noturna. Eckels, equilibrado no estreito Caminho, apontou seu rifle,
bem-humorado.
— Pare! — falou Travis. — Não aponte nem mesmo por brincadeira, idiota! Se a
arma dispara...
Eckels enrubesceu. — Aonde está nosso Tyranossaurus?
Lesperance checou seu relógio de pulso. — Logo à frente. Vamos estar no caminho
dele em sessenta segundos. Atenção para a tinta vermelha! Não atire até que eu
mande. Fique no caminho. Fique no Caminho!
Moveram-se adiante, pelo vento da manhã.
Estranho — murmurou Eckels. — Lá adiante, daqui a sessenta milhões de anos, fim
das eleições. Keith presidente. Todos celebrando. E aqui estamos, perdidos num
milhão de anos, e eles não existem ainda. As coisas que nos preocuparam por
meses, por uma vida inteira, nem nasceram nem foram idealizadas, ainda.
— Soltar as travas, todos! — ordenou Travis. Você dá o primeiro tiro, Eckels,
Billings o segundo, e Kramer o terceiro.
— Já cacei tigre, javali, búfalo, elefante, mas agora, isto é incomparável —
disse Eckels. — Estou tremendo como uma criança.
— Ah — fez Travis. Todos pararam.
Travis ergueu a mão. — À frente — falou, em voz baixa. — Na neblina. Lá está
ele. Ali está Sua Majestade Real, agora.
A selva era ampla, e cheia de gorjeios, farfalhares, murmúrios e suspiros.
Subitamente, tudo cessou, como se alguém tivesse fechado a porta.
Silêncio.
Um som de trovão.
Da neblina, a cem jardas, vinha o Tyranossaurus rex.
— É ele — cochichou Eckels, — é ele... —Psss!
Ele veio sobre grandes pernas, oleosas, resilientes. Erguia-se a trinta pés,
acima da metade das árvores, um grande deus do mal, dobrando suas delicadas
garras de relojoeiro perto de seu peito oleoso, reptílico. Cada pata inferior
era um pistão, mil libras de osso branco, mergulhadas em grossas cordas de
músculos, revestidas por um brilho de uma pele pedregosa, como a malha de um
terrível guerreiro. Cada coxa, uma tonelada de carne, marfim, e aço trançado. E
da grande gaiola arquejante da parte superior do corpo, aqueles dois braços delicados
pendurados para a frente, braços que poderiam erguer e examinar os homens como
brinquedos, enquanto se dobrava o pescoço de serpente. E a cabeça mesmo, uma
tonelada de pedra esculpida, erguida com facilidade contra o céu. Sua boca
escancarava-se, expondo uma cerca de dentes como dardos. Seus olhos rolavam,
ovos de avestruz, vazios de qualquer expressão, excepto fome. Fechava a boca
num sorriso da morte. Corria, seus ossos pélvicos derrubando para os lados
árvores e arbustos, seus pés, com garras, afundando-se na terra húmida,
deixando marcas de seis polegadas de profundidade aonde quer que apoiasse seu
peso. Corria com um passo deslizante de ballet, muito aprumado e equilibrado
para suas dez toneladas. Movia-se, cansado, numa arena ensolarada, suas mãos
lindamente reptilianas tacteando o ar.
— Ora, vejam — Eckels torceu a boca. — Poderia esticar-se e pegar a lua.
— Pssst! — fez Travis, nervoso. — Ele ainda não nos viu.
— Não pode ser morto. — Eckels pronunciou seu veredicto, quieto, como se não
pudesse haver discussão. Tinha avaliado a evidência, e era esta sua abalizada
opinião. O rifle em sua mão parecia uma arma de brinquedo. — Fomos loucos de
ter vindo. Isto é impossível.
— Cale-se! — silvou Travis.
— Pesadelo.
— Dê meia volta — comandou Travis. — Vá em silêncio para a Máquina. Podemos
reembolsar-lhe metade de sua passagem.
— Não percebia como seria grande, — falou Eckels. — Avaliei mal, foi isso. E
agora, quero desistir.
— Ele nos viu!
Lá está a tinta vermelha em seu peito!
O Lagarto Tirano levantou-se. Sua carne de armadura rebrilhava como mil moedas
verdes. As moedas, com uma crosta de lama, ferviam. No lodo, pequenos insectos
esperneavam, de modo que todo o corpo parecia retorcer-se e ondular, mesmo
enquanto o monstro não se movia. Expirou. O cheiro de carne crua foi soprado
pelos ermos.
— Deixe-me sair daqui — disse Eckels. — Nunca foi como isto, agora. Eu sempre
estava certo de que poderia sair vivo. Eu tinha bons guias, bons safaris, e
segurança. Desta vez, enganei-me. Encontrei algo que me supera, e reconheço. É
demais para eu enfrentar.
— Não corra — falou Lesperance. — Dê a volta. Esconda-se na Máquina.
— Sim, — Eckels parecia entorpecido. Olhou para seus pés, como que tentando
fazê-los mover-se.
Deu um grunhido, incapaz.
— Eckels!
Deu alguns passos, piscando, hesitante,
— Não por aí!
O Monstro, ao primeiro movimento, impulsionou-se para a frente com um grito
terrível. Cobriu cem jardas em seis segundos. Os rifles ergueram-se rapidamente
e iluminaram-se, com o fogo. Um vendaval da boca da besta engolfou-os na
fedentina do lodo, e sangue envelhecido. O Monstro rugiu, dentes brilhando ao
sol.
Eckels, sem olhar para trás, caminhou cegamente para a borda do Caminho, sua
arma carregada frouxamente em seus braços, saiu do caminho, e andou,
inadvertidamente, pela floresta. Seus pés afundaram em musgo verde. Suas
pernas o carregavam, e ele se sentia só e afastado dos eventos lá atrás.
Os rifles dispararam de novo. O som perdeu-se no grito e no trovão do lagarto.
O grande volume da cauda do animal lançou-se para cima, e para o lado. Árvores
explodiram em nuvens de folhas e ramos. O Monstro torceu suas mãos de
joalheiro para acariciar os homens, para dobrá-los ao meio, para esmagá-los,
como frutinhas, para empurrá-los para seus dentes e sua garganta ruidosa. Seus
olhos, quais rochedos, estavam ao nível dos homens. Viram-se espelhados.
Dispararam nas pálpebras metálicas e na luminosa íris.
Como um ídolo de pedra, como uma avalanche de montanha, o Tyranossaurus caiu.
Trovejando, agarrou árvores, e puxou-as consigo. Agarrou e cortou o Caminho. Os
homens precipitaram-se para trás, e para longe. O corpo abateu-se, dez
toneladas de carne fria e pedra. Os rifles dispararam. O Monstro brandiu sua
cauda blindada, crispou suas mandíbulas de serpente, e imobilizou-se. Uma fonte
de sangue jorrava de sua garganta. Em algum lugar lá dentro, um saco de fluido
estourou. Borbotões nauseantes inundaram os caçadores. Lá estavam vermelhos,
brilhantes.
O trovão dissipou-se.
A selva estava silenciosa. Depois da avalanche, uma paz verde. Depois do
pesadelo, o amanhecer.
Billings e Kramer praguejavam pesadamente, com seus rifles ainda fumegando.
Na Máquina do Tempo, face abatida, Eckels tremia. Tinha conseguido voltar ao
caminho, e subira na Máquina.
Travis chegou, olhou para Eckels, pegou gaze de algodão e, virou-se para os
outros, que estavam sentados sobre o Caminho.
— Limpem-se.
Limparam o sangue de seus capacetes. Começaram a resmungar, também. O Monstro
jazia ali como uma montanha de carne. Dentro dele, podia-se ouvir os sopros e
murmúrios, enquanto seus recessos iam morrendo, os órgãos parando de funcionar,
líquidos circulando um último instante, de saco para a bolsa, para vesícula,
tudo desligando-se, parando para sempre. Era como ficar perto de uma locomotiva
acidentada, ou uma escavadora a vapor, no momento de desligar, com todas as
válvulas sendo desactivadas. Ossos estalavam; a tonelagem de sua própria carne,
desequilibrada, peso morto, quebrava os delicados braços, do lado de baixo. A
carne se assentava aos tremores.
Outro estalido. Mais acima, um enorme galho de árvore partiu de sua pesada
ancoragem, caiu. Golpeou certeiramente a fera morta.
— Pronto. — Lesperance verificou seu relógio. — Bem na hora. Essa era a grande
árvore que deveria cair e matar este animal, originalmente. — Olhou para os
dois caçadores. — Querem tirar a foto de troféu?
— Quê?
— Não podemos levar o troféu para o Futuro. O corpo deve ficar aqui, aonde
deveria originalmente morrer, de modo que os insetos, pássaros, e bactérias
possam devorá-lo, como devem. Tudo equilibrado. O corpo fica. Mas podemos
tirar uma fotografia de vocês a seu lado.
Os dois homens fizeram força para pensar, mas desistiram, abanando as cabeças.
Deixaram-se guiar ao longo do Caminho de metal. Afundaram cansados, nos
assentos da Máquina. Olharam de novo para o Monstro arruinado, o montículo em
estagnação, aonde já estranhos pássaros reptilianos e insetos dourados estavam
ocupados com a fumegante armadura.
Um som no chão da Máquina do Tempo deixou-os tensos. Eckels estava lá,
tremendo.
— Lamento muitíssimo — disse.
— Levante-se! — gritou Travis. Eckels levantou-se.
— Vá para o Caminho sozinho — falou Travis, com seu rifle apontado. Não vai
voltar para a Máquina. Vamos deixá-lo aqui!
Lesperance agarrou o braço de Travis. — Espere...
— Fique fora disto! — Travis desvencilhou-se de sua mão. — Este louco quase
matou-nos. Mas isso não é tanto assim. Vejam seus sapatos! Vejam! Ele saiu do
Caminho. Isso nos arruína! Seremos multados! Milhares de dólares de seguro!
Garantimos que ninguém deixa o Caminho, e ele o deixou. Ora, o louco! Terei de
informar o Governo.
Poderão cancelar nossa licença para viajar. Quem sabe o que ele fez ao Tempo, à
História!
— Calma, tudo o que ele fez foi pisar em alguma sujeira.
— Como saber? — gritou Travis. — Não sabemos nada! É um mistério! Saia, Eckels!
Eckels mexeu em sua camisa. — Pago qualquer coisa. Mil dólares!
Travis olhou para o talão de cheques de Eckels e cuspiu. — Saia. O Monstro está
perto do Caminho. Afunde os braços até os cotovelos na boca dele. Então poderá
voltar connosco.
— Isto é irrazoável!
— O Monstro está morto, seu idiota. As balas! As balas não podem ser deixadas
para trás. Elas não pertencem ao Passado; poderão mudar alguma coisa. Aqui está
a minha faca. Cave-as!
A selva estava viva de novo, cheia de antigos tremores e do barulho dos
pássaros. Eckels voltou-se lentamente para olhar o monte de carniça primordial,
aquela montanha de pesadelos e terror. Depois de um longo tempo, como um
sonâmbulo, arrastou-se ao longo do Caminho.
Voltou, tremendo, cinco minutos depois, com seus braços ensopados e vermelhos
até os cotovelos. Estendeu as mãos. Cada uma segurava algumas balas de aço.
Então caiu e ficou lá, imóvel.
— Você não precisava obrigá-lo a isso — comentou Lesperance.
— Não? É cedo ainda para dizer. — Travis tocou o corpo, com o pé. — Viverá. Da
próxima vez não vai sair para caçar este tipo de caça. OK. — Ergueu o polegar
para Lesperance. — Dê a partida. Vamos para casa. 1492 . 1776 . 1812 .
Limparam suas mãos e faces. Trocaram de roupa. Eckels estava de pé de novo,
mudo. Travis olhou para ele por dez minutos.
— Não olhe para mim, — exclamou Eckels. — Não fiz nada.
— Quem pode saber?
— Apenas saí do Caminho, foi tudo, um pouco de lama em meus sapatos; que quer
que eu faça? Que me ajoelhe e reze?
— Talvez precisemos disso. Estou lhe avisando, Eckels! Posso matá-lo, ainda.
Minha arma está engatilhada.
— Estou inocente. Não fiz nada! 1999 . 2000 . 2055 .
A Máquina parou.
— Saia — ordenou Travis.
A sala lá estava, tal como quando saíram. Mas não exactamente a mesma. O mesmo
homem atrás da mesma escrivaninha. Mas o mesmo homem não parecia estar sentado
exactamente atrás da mesma escrivaninha.
Travis olhou em volta, depressa. — Tudo em ordem por aqui? — foi logo
perguntando.
— Claro. Bem vindos ao lar!
Travis não relaxou. Parecia estar olhando para os próprios átomos do ar, e
para o modo pelo qual o sol entrava pela janela alta.
— OK, Eckels, saia. E nunca mais volte. Eckels não podia mover-se.
— Ouviu-me, — falou Travis. — Para o quê está olhando? Eckels ficou, cheirando
o ar, e havia algo no ar, uma substância tão ténue, tão subtil, que apenas um
fraco aviso de seus sentidos subliminares avisavam-lhe que estava ali. As
cores, branco, cinza, azul, laranja, na parede, na mobília, no céu, pela
janela, eram... eram... E havia uma sensação. Sua carne crispava-se. Ficou
bebendo aquela estranheza com os poros de seu corpo. Em algum lugar, alguém
devia estar soprando naqueles apitos que só os cães podem ouvir. Seu corpo
gritava silenciosamente, em resposta. Além deste aposento, além desta parede,
além deste homem, que não era exactamente o mesmo homem que estava sentado
àquela mesa, que não era bem a mesma mesa... estava todo um mundo de ruas e
gente. Que espécie de mundo era agora, não havia como dizer. Ele podia
senti-los mover-se ali, além das paredes, quase, como peças de xadrez por um
vento quente...
Mas a coisa mais imediata era o anúncio pintado na parede do escritório, o
mesmo que havia lido hoje ao entrar. De alguma forma, o anúncio havia mudado:
SEFARIS NU TENPO, INC.
SEFARIS PRA QUALQUER ANO PAÇADO.
CÊ DIS QUI ANIMAU.
NÔIS LEVAMOS CÊ LÃ.
CÊOABAT.
Eckels sentiu-se caindo numa cadeira. Ficou mexendo, como louco, na lama em
suas botas. Ergueu um pedaço de algo enlameado, tremendo. — Não, não pode ser, não
uma coisinha assim, não!
Embebida na lama, brilhando em verde e dourado e preto, havia uma borboleta,
muito bela, e muito morta.
Não uma coisa assim! Não uma borboleta! — gritou Eckels.
Caiu ao chão, uma coisa exótica, pequena, que poderia desmanchar equilíbrios e
derrubar uma fila de dominós pequenos, e então grandes dominós, e então dominós
gigantes, por todos os anos através do Tempo. A mente de Eckels turbilhonava.
Não podia mudar as coisas. Matar uma borboleta não podia ser tão importante! Ou
poderia?
Seu rosto estava frio. Sua boca hesitava, ao perguntar: — Quem... quem ganhou a
eleição presidencial ontem?
O homem atrás da escrivaninha riu-se. — Está brincando? Sabe muito bem.
Deutscher, claro! Quem mais? Não aquele maluco pusilâmine do Keith. Temos um
homem de ferro, agora, um homem de peito! — O funcionário parou. — O que há de
errado?
Eckels gemeu. Caiu de joelhos. Examinava a borboleta dourada com dedos
trémulos. — Não podemos — implorava ao mundo, a si mesmo, aos funcionários, à
Máquina. — Não podemos levá-la de volta, não podemos fazê-la viver de novo?
Não podemos recomeçar? Não poderíamos...
Não se moveu. Olhos fechados, esperou, abalado. Ouviu Travis ofegando, na sala;
ouviu Travis apontar o rifle, destravá-lo.
Houve um som de trovão.
Ray Bradbury