quinta-feira, 31 de agosto de 2017

OUTROS CONTOS

«Encontro», conto poético por Marina Tsvetayeva.

«Encontro»
Poema de Tsvetayeva

1084- «ENCONTRO»

Vou chegar tarde ao encontro marcado,
cabelos já grisalhos. Sim, suponho
ter-me agarrado à primavera, enquanto
via você subir de sonho em sonho.

Vou carregar esse amargo – por largo
tempo e muitos lugares, de penedos
a praças (como Ofélia – sem lámurias)
por corpos e almas – e sem medos!

A mim, digo que viva; à terra, gire
com sangue no bosque e sangue corrente,
mesmo que o rosto de Ofélia me espie
por entre as relvas de cada corrente,

e, amorosa sedenta, encha a boca
de lodo – oh, haste de luz no metal!
Não chega este amor à altura do seu
amor ... Então, enterre-me no céu!

Marina Tsvetayeva

SÁTIRA...

A Tumba
Sátira...

Regresso da Múmia II

«A TUMBA»

A múmia ressuscitou
Em véspera d’eleições…
Atirou-se aos ‘cães’,
Finalmente piou.
A tumba profanou…
Não se fez rogada,
A boca enraivada
Cuspiu baba e ranho…
Junta-se ao rebanho
Da laranja estragada!

POETA

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

SÁTIRA...

Santo Eliseu
Sátira...

«SANTO ELISEU»

- Que diz Santo Eliseu
Do acto violento?
- O gajo joga lento,
Só pisei o camafeu.
Teve o que mereceu…
Justo arquivamento,
Saibam que lamento
O que aconteceu,
Mas ninguém morreu
Até este momento!

ATEOP

SÁTIRA...

Barro à Parede
Sátira...

«BARRO À PAREDE»

Aceito convite d’empresas
Pra viagens ao estrangeiro…
Também aceito dinheiro,
As algibeiras estão tesas.
Portugueses e portuguesas,
Digo sem qualquer pudor:
Não faço juízos de valor
E o sigilo está garantido…
O que vier é bem recebido,
Nem lhe preciso ver a cor!

POETA

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

NINA HAGEN
«Don't Kill the Animals»

Poet'anarquista

  NÃO MATE OS ANIMAIS

  Todos queremos ver através do mistério da vida
  A busca pelo conhecimento é uma atividade natural
  Mas a ciência seja cuidadosa - a ciência seja gentil
  Não podemos seguir fingindo ser cegos
  Essas experiências com animais não fazem sentido
  Você está chegando a lugar nenhum com crueldade e morte
  Eu digo que a ignorância foi alguma desculpa
  Mas uh-uh não agora - você vê que nós temos a prova
  Aa-aanimal testado é um jogo perigoso
  Todos os sistemas são diferentes - não somos os mesmos
  É um risco terrível - então, nenhuma surpresa
  Recebemos resultados errados - ei, e sobre a Talidomida
  Abusa-se de sua própria vontade
  Se machucar - fica alto - entra em perigo
  Mas não arraste os animais para essa bagunça

  Não há mais tortura!  Os animais são livres
  O mesmo com mexer com energia atómica
  Ei, ouviu, doutor - reencarnação
  Gostaria de voltar como um rato de laboratório?
  Aqui estamos enrolados como uma cobra dormindo
  Temos que expandir o potencial
  Pelo amor de Deus
  Se quisermos evitar essa crueldade humana sem fim
  Por que não começamos mudando nossa dieta
  A vida é para viver - os animais concordam
  Se eles deveriam ser comidos
  Eles estariam crescendo em árvores
  Então, não há mais tortura de nossos amigos peludos
  Em nome de alimentos ou fins científicos
  A pressão está ligada - seja antivírus!

  Todos os nossos cientistas estão desordenando - eles não conseguem
  Deixe os psíquicos contar o que os espíritos pensam que precisamos
  Nossos super amigos de outros planetas querem dar conselhos
  Mas o negócio orientado para o dinheiro não acha que é legal

  Vamos, vamos educar a raça humana mutada
  Pelo super poder da graça maravilhosa
  O elo perdido da evolução humana
  É sexualidade - precisa de uma revolução espiritual
  Minha identidade de deus individual
  É o que você precisa conhecer
  É o ritmo da batida

  Não mate os animais
  Não mate os animais
  Os animais são livres

Nina Hagen
Intérprete e Compositora Germânica

terça-feira, 29 de agosto de 2017

SÁTIRA...

Cheias
Sátira...

«CHEIAS»

- Diz aqui no jornal
Inundações em Lisboa…
- Vês?... não falei à toa,
O Tonho começou mal.
Chuva fora do normal
Na rentrée política,
Meteu água em bica
No primeiro discurso…
- Fez figura d’urso
A múmia paralítica!

POETA

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

SÁTIRA...

Ataque ao Topo
Sátira...

«ATAQUE AO TOPO»

Dragão em primeiro
Sem saber até quando...
Não está só no mando,
Há Leão nesse poleiro.
A Águia no galinheiro
Acabou de ser galada,
O Ave deu bicada
E o Rio transbordou...
Um penálti desaguou,
Surgiu vindo do nada!

POETA

SÁTIRA...

Um Penálti Que Veio Do Céu
HenriCartoon

«UM PENÁLTI QUE VEIO DO CÉU»

Estava de bico pró ar
Em pose astuta…
Um penálti cai à bruta,
Veio do céu a voar.
Acabou de me salvar
Da primeira derrota,
Estava quase morta
Mas fui recompensada…
A falta veio do nada,
Deu-se a cambalhota!

POETA

SEM VOLTA A DAR/ CIGANICE

A décima dar volta
É tarefa complicada…
Está a Cigana* irada,
Mas sem língua solta.
Águia meio revolta
Quase a estrebuchar,
Penálti pra empatar
E salvar a disputa…
Árbitro filho da ‘fruta’
Resolveu inventar!

ATEOP

*Cigana- amiga Luísa Valente

SÁTIRA...

Calamidade Pública
Sátira...

«CALAMIDADE PÚBLICA»

- Foge sem deixar pistas…
Maria, corre pé ante pé!
- Que aconteceu, Zé,
Acaso vêm terroristas?
- Pior, são oportunistas
Na rentrée política!
- Mas que hora fatídica!…
Por esta não esperava (?)
- Nem ao Diabo lembrava
O regresso da paralítica!!

POETA

OUTROS CONTOS

«O Palhaço», conto poético por Janet Frame.

«O Palhaço»
Poema de Janet Frame

1083- «O PALHAÇO»

A sua cara está manchada por lágrimas maquilhadas.
Eu e os outros aplaudimo-lo, sabendo
que é de bom tom aprovar quando um palhaço chora
e de mau tom  quando o faz uma cara persistentemente
dorida sejam ou não pintadas as suas lágrimas.

Também é de bom tom, entre guerras,
dizer que o ódio é amor e o amor é ódio,
argumentar que tudo é mais complexo do que sonhámos
e depois dizer que não o sonhámos
sempre o soubemos e somos sensatos.

Caro palhaço choroso caro velho infantil
caro assassino gentil caro e inocente culpado
cara simplicidade odeio-vos por causarem que eu finja
que há vários mundos para uma verdade quando
eu sei, eu sei que não há. Pessoas como eu e vocês, meus caros,
que têm mau hálito, que adormecem e de intestinos ruidosos que controlam a fé
que chegam à casa vazia ou entre a família,
cara família, caro homem solitário no mundo despedaçado de ninguém,
será para essa desolação que acumulámos palavras durante tantos
milhões de anos, desde o primeiro, gememos e olhamos para as estrelas.
Oh oh o céu é demasiado amplo para dormir debaixo!

Janet Frame

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

THE STRANGLERS - «No More Heroes»

Poet'anarquista

NÃO MAIS HERÓIS

O que aconteceu com Leon Trotsky?
Ele tem um picador de gelo
Isso fez com que seus ouvidos queimem

O que aconteceu com o velho Lenny?
A Felícia grande, e Sancho Pança?
O que aconteceu com os heróis?

O que aconteceu com todos os heróis?
Todos os Shakespeares?
Eles assistiram à queima de Roma
O que aconteceu com os heróis?

Não mais heróis não mais

O que aconteceu com todos os heróis?
Todos os Shakespeares?
Eles assistiram a queima de Roma
O que aconteceu com os heróis?

Não mais heróis não mais

The Stanglers
Banda Britânica

domingo, 27 de agosto de 2017

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

THE WATERBOYS - «Spirit»

Poet'anarquista

ESPÍRITO

O homem se cansa
Espírito não
Homem se rende
O espírito, jamais
O homem rasteja
Espírito voa
O espírito sobrevive
Quando o homem morre

O homem se parece
Espírito é
Homem sonha
O espírito vive
O homem é aprisionado
Espírito livre
O que o espírito é
O homem pode ser

The Waterboys
Banda Escocesa

OUTROS CONTOS

«Virá a Morte e Terá os Teus Olhos», conto poético por Cesare Pavese.

«Virá a Morte e Terá os Teus Olhos»
Poema de Cesare Pavese

1082- «VIRÁ A MORTE E TERÁ OS TEUS OLHOS»

Virá a morte e terá os teus olhos -
esta morte que nos acompanha
de manhã à noite, insone,
surda, como um velho remorso
ou um vício absurdo. Os teus olhos
serão uma palavra inútil,
um grito calado, um silêncio.
Assim os vês em cada manhã
quando sobre ti só te inclinas
ao espelho. Ó querida esperança,
nesse dia saberemos também nós,
que és a vida e és o nada.

Para todos a morte tem um olhar.

Virá a morte e terá os teus olhos.
Será como largar um vício,
como ver ressurgir
no espelho um rosto morto,
como escutar lábios fechados.
Desceremos o remoinho mudos. 

Cesare Pavese

SÁTIRA...

De Barriga Cheia
Sátira...

«DE BARRIGA CHEIA»

O Mister não precisa
Ficar em 'Buncarestes'…
Chapa cinco das pestes,
No final analisa.
A falar improvisa…
Pra ninguém é surpresa,
A língua portuguesa
Sai sempre a perder…
Quando se faz entender
É uma grande proeza!

POETA

sábado, 26 de agosto de 2017

SÁTIRA...

Ou Sim Ou Sopas
Sátira...

«OU SIM OU SOPAS»

- Mister, será fácil vencer
E conseguir apuramento?
‘Muita defícil’ de momento,
O Steaua não quer ‘parder’.
- Se isso vier a suceder,
Que é que o Mister augura?
- Se ‘parder’ já ando à ‘précura’
De casa em ‘Buncarestes’…
Livro-me daquelas pestes,
E dedico-me à ‘linteratura’!

POETA

OUTROS CONTOS

«Meu Amor!...», conto poético por Manel d' Sousa.

«Meu Amor!...»
Soneto de Manel d' Sousa

1081- «MEU AMOR!...»

Se eu morrer dum estranho mal
Meu amor, rasga minha poesia!…
Joga as palavras em cova fria
Na mesma hora do meu funeral.

Não penses adiar para outro dia
O que podes julgar irracional…
Ver cumprir este desejo formal,
Era tudo quanto eu mais queria.

Meu amor, de ti espero afinal
Que este meu pedido especial
Seja atendido como pretendia…

Rasga meus versos!, ponto final. (…)
Mas não esqueças como eu sentia
As palavras doces que te escrevia.

Manel d’ Sousa

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

O LARÁPIO

O Larápio
Poema de Norberto Lopes

O LARÁPIO

Aquele que diz ter comprado
o que adquiriu roubando
adora parecer honrado
para iludir o desgraçado
mas já foi chefe de bando

Anda de dorso curvado
a roubar o sol ao chão
num gesto há muito estudado
para esconder o mau olhado
dos seus olhos de ladrão

-Tu não sabes mas eu digo-
Diz ele, com seu ar matreiro...
Aleivoso, trapaceiro,
mais sinistro do que o perigo,
sempre a fazer-se de amigo,
no seu jeito traiçoeiro.

Quando for a enterrar
irá de algibeira lisa;
Os sinos a repicar
é que nos irão dizer
que o gusano não precisa
de ser pago p'ra comer

Norberto Lopes

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

ELVIS COSTELLO - «Beyond Belief»

Poet'anarquista

ALÉM DA CRENÇA

A história repete os velhos conceitos
As respostas simplistas as mesmas derrotas
Mantenha o dedo sobre questões importantes
Com lágrimas de crocodilo e um bolso cheio de tecidos

Eu sou apenas a mancha oleosa
No mundo conclusão do tique nervoso
Em um casebre muito elegante

Eu ando morrendo de vontade de ser torturado
Você nunca vai estar sozinho no osso do pomar
Essa batalha com a garrafa não é nada tão novo

Então, neste palácio de gin quase vazio
Através de um vidro de duas vias olhando
Você vê a sua Alice

Você sabe que ela não tem pecados
Para todo o seu ciúme
Em certo sentido, ela ainda sorri docemente

Acusado de insultos e lisonjas
Seu corpo se move com malícia
Você tem que ser tão cruel para ser insensível

E agora você acha que se encaixam nesse semblante completamente
Você diz que não tem segredos
E depois sai discretamente

Eu poderia da Califórnia fazer culpa
Ser bloqueado no cofre mais profundo de Genebra
Assim como os canais de Marte e da grande barreira de corais
Eu venho a vocês para além da crença

Minhas mãos astuciosas estavam húmidas
Ela tem sido adequadamente deslumbrante
Mas eu sei que não há uma esperança no Hades
Todos e todas na chamada de gato e assobio
Chamados os senhores e senhoras
Luta de cão como rosa e cardo

Eu tenho um sentimento
Vou ter um monte de dor
Uma vez que isso parecia tão atraente
Agora estou além da crença

Elvis Costello
Guitarrista, Cantor e Compositor Britânico

OUTROS CONTOS

«Palavras que Metem Medo», conto poético por Manel d' Sousa.

«Palavras que Metem Medo»
Êxodo/ Lasar Segall

1080- «PALAVRAS QUE METEM MEDO»

A minha poesia é do povo,
Não me pertence a mim…
Quando chegar o meu fim,
Podem rescrevê-la de novo.
Com a escrita me comovo
Nas palavras que invento,
Há de chegar o momento
De revelar tal segredo…
Palavras que metem medo
Pra meu descontentamento.

Manel d’ Sousa

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

THE ALAN PARSONS PROJECT
«One More River»

Poet'anarquista

MAIS UM RIO

Nem olhe pra trás porque ainda tem mais um rio
Nem vire as costas porque você ainda tem mais um rio pra atravessar
Chega de lutas e chega de mortes
Chega de trapaças e chega de mentiras

Nem olhe pra trás porque ainda tem mais um rio
Nem vire as costas porque você ainda tem mais um rio pra atravessar
Nem pergunte qual o sentido ou a razão
Mas também não se segure porque é a hora certa

Mais um quilômetro e mais uma estrada
A última ponte e uma estrada a menos
Mais um rio
Nem olhe pra trás porque ainda tem mais um rio
Nem vire as costas porque você ainda tem mais um rio pra atravessar

Nem pergunte qual o sentido ou a razão
Mas também não se segure porque é a hora certa
Mais um quilómetro e mais uma estrada
A última ponte e uma estrada a menos
Mais um rio
Mais um rio

The Alan Parsons Project
Banda Britânica

OUTROS CONTOS

«A Lua no Cinema», conto poético por Paulo Leminski.

«A Lua no Cinema»
Pintura de Marc Chagall

1079- «A LUA NO CINEMA»

A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.

Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.

A lua ficou tão triste
com aquela história de amor
que até hoje a lua insiste:
— Amanheça, por favor!

Paulo Leminski

MANCHAS, A MÃE DA MIA

Manchas
A Mãe da Mia

Aí está ela, a nova inquilina cá de casa e único animal que restava no canil do município...

Manchas, a mãe da Mia.

FAMÍLIA:

Olá, Conceição...

Olá, Carlos...

Olá, Bomer...

Olá, Molas...

Gosto muito de estar com vocês.

Obrigado por todos os carinhos que partilharam com a minha filha Mia....

Ela nunca vos esquecerá!

Agora, vamos todos ser felizes cá em casa.

Manchas, a mãe da Mia

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

OUTROS CONTOS

«Os Crânioclastas», conto proso-poético por João Palma-Ferreira.

«Os Crânioclastas»
Pequeno Excerto

1078- «OS CRÂNIOCLASTAS»

[Excerto]

“Foi quando nós entrámos. A luz abafada do fogo que morria pintava sombras na sala de frio.

Mas volto-me e vejo-o ainda sentado nos degraus do Monumento. O padre, de bronze, faz um aceno qualquer que ninguém decifrará, o gesto da estatuária inútil, a mesma que anda por aí há séculos abandonada em livros de antiquário. Vejo-o confusamente, como na sala do casino, como na praia nos vemos ou sob a amplidão fora do vidro fosco que sufoca ou abafa o nosso hálito. Curva-se interiormente no meu cérebro acompanhando a exacta concavidade dos ossos. Tento, em desespero, neste dormir opaco, tocá-lo, leve que seja, para lhe dizer como as palavras são necessárias entre os homens. Mas ele apenas se inclina com maior gravidade, recosta-se no cadeirão para escutar as frases estrangeiras que cavam túneis de horror pelo silêncio. Sinto, nos olhos, a prisão do tecto e do zimbório que cresce, de vidro, na torre em funil por onde as frases se escoam; logo, reflectidas, regressam à obsessão de que partiram.

Fujo. Voo pelo descampado até à praia. Sigo uma onda de viés, nos folhos da espuma, mar que varre toda a costa mais rápido do que eu. Em liberdade, grito-lhe palavras de júbilo (não há crime ainda) e projecto o som por entre nuvens, ecos em rosas de jardim ou murmúrios em memórias do quintal; falo da humidade nos recantos da casa e do silêncio cortado pelo pingar da água. No pano verde de todos os prados lanço, em glória, o prazer das apostas, reis e valetes, ases e espadas, copas e oiros. Desfecho, na serra, pela boca fria da espingarda, as dez balas de chumbo que retinem perdidas pelas fragas.

É quando chego, fatigado, a altas horas da noite. É a mesma porta, sempre. Os batentes castanhos. É quando rodo a chave. É quando entro. Aqui. É quando subo a rampa ao encontro da mulher de fogo e ácido que me espera, no chão varrido de neve, atrás do laranjal.”

João Palma-Ferreira

terça-feira, 22 de agosto de 2017

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

U2 - «Discotheque»

Poet'anarquista

DISCOTECA

Você pode alcançar, mas não pode pegar
Você não pode segurar, controlar
Você não pode embrulhar

Você pode empurrar, mas não pode direccionar
Circular, regular, oh não
Você não pode estabelecer conexões

Você sabe que está mascando chiclete
Você sabe o que é isso, mas ainda quer um pouco
Você não se cansa daquela coisa agradável

Você fica confuso, mas você sabe
É, você machuca por isso, trabalha por isso, amor
Você nem sempre o mostra, amor

Vamos, vamos lá discoteca
Vamos, vamos lá, discoteca

Procurando a pessoa especial
Mas você sabe que está em outro lugar
Eu quero ser a canção
A canção que você ouve na sua cabeça
Amor, amor, amor, amor

Não é truque, você não pode aprender
É o modo como você não paga, é ok
Por que você não pode ganhar - amor

Você sabe que está mascando chiclete
Você sabe o que é
Mas ainda quer um pouco
Você não se cansa daquela coisa agradável

Vamos, vamos lá discoteca
Vamos, vamos lá, discoteca

Procurando a pessoa especial
Mas você sabe que está em outro lugar
Eu quero ser a canção
A canção que você ouve na sua cabeça
Amor, amor, amor

Mas você aceita o que pode conseguir
Porque é tudo que você pode encontrar
Ah, você sabe que há algo a mais
Mas esta noite, esta noite, esta noite
Bum cha, bum cha, bum cha discoteca

U2
Banda Irlandesa

OUTROS CONTOS

«Um Som de Trovão», por Ray Bradbury.

«Um Som de Trovão»
Conto de Ray Bradbury

1077- «UM SOM DE TROVÃO»

SAFARIS NO TEMPO, INC.
SAFARIS PARA QUALQUER ANO DO PASSADO
VOCÊ DIZ QUE ANIMAL.
NÓS O LEVAMOS LÁ.
VOCÊ O ABATE.

Uma flegma quente acumulou-se na garganta de Eckels; engoliu e empurrou-a para baixo. Os músculos ao redor de sua boca forma­ram um sorriso enquanto ele estendeu sua mão lentamente pelo ar, e naquela mão, balançava-se um cheque de dez mil dólares, para o ho­mem atrás da escrivaninha.

— Este safari garante que eu volte vivo?

— Não garantimos nada — falou o funcionário — excepto os dinos­sauros. — Voltou-se. — Este é o Sr. Travis, seu Guia, no safari ao passado. Ele vai dizer-lhe o que e aonde atirar. Se ele disser para não ati­rar, não se atira. Se desobedecer às instruções, há uma pesada multa de mais de dez mil dólares, mais um possível processo do governo, quando voltar.

Eckels olhou, através do amplo escritório, numa completa confusão disforme, de fios entrelaçados e caixas de aço zumbindo, para uma aurora que agora reluzia laranja, então prateada, e então, azul. Havia um som como uma descomunal pira queimando todo o Tempo, todos os anos e todos os calendários, todas as horas empilhadas e incendiadas.

Um toque da mão e esta queima, instantaneamente, se reverteria lindamente. Eckels lembrou-se literalmente das palavras da propaganda. De carvões e cinzas, da poeira e das brasas, como salamandras douradas, os velhos tempos, os anos jovens, podem saltar; rosas suavizando o ar; cabelo branco enegrecendo-se, rugas desaparecendo; tudo, voltando totalmente à origem, fugir à morte, precipitar-se para o começo de tudo, o sol nascendo nos céus ocidentais, e pondo-se gloriosamente no leste, luas devorando-se a si mesmas no sentido oposto ao costumeiro, e tudo se sobrepondo, como caixas chinesas, coelhos em cartolas, tudo e todos retornando à morte viva, a morte da semente, a morte verde, ao tempo de antes do começo. O toque da mão poderia fazê-lo, o mero toque da mão.

— Inacreditável. — Eckels respirava, com a luz da Máquina sobre seu rosto fino. — Uma verdadeira Máquina do Tempo. — Abanou a cabeça. — É de fazer pensar. Se a eleição tivesse ido mal ontem, eu poderia estar agora me afastando dos resultados. Felizmente Keith ganhou. Será um bom presidente para os Estados Unidos.

— Sim — falou o homem por trás da mesa. — Temos sorte. Se Deutscher tivesse ganho, teríamos a pior ditadura. Há sempre um homem anti-tudo, um militarista, um anti-Cristo, anti-humano, anti-intelectual. O povo nos requisitou, sabe, como que brincando, mas a sério. Diziam que se Deutscher se tornasse presidente, queriam viver em 1492. Claro, não é o nosso negócio conduzir Fugas, mas organizar Safaris. De qualquer maneira, Keth é o presidente, agora. Tudo com que precisa preocupar-se agora é...

— Caçar meu dinossauro — Eckels acabou para ele.

— Um Tyranossaurus rex. O Lagarto Tirano, o monstro mais inacreditável de toda a história. Assine este termo. O que quer que aconteça com você, não somos responsáveis. Esses dinossauros são muito vorazes.

Eckels animou-se, nervoso. — Tentando assustar-me!

— Francamente, sim. Não queremos que vá alguém que entre em pânico ao primeiro tiro. Seis lideres de safari foram mortos no ano passado, e uma dúzia de caçadores. Estamos aqui para dar-lhe a maior emoção que um caçador de verdade jamais almejou. Mandá-lo de volta sessenta milhões de anos, para pegar a maior caça de to­dos os tempos. Seu cheque ainda está aqui. Pode rasgá-lo.

O Sr. Eckels olhou para o cheque. Seus dedos retorceram-se.

— Boa-sorte — falou o homem atrás da escrivaninha. — Sr. Tra­vis, ele é todo seu.

Moveram-se silenciosamente, atravessando a sala, levando suas armas com eles, em direcção à Máquina, rumo ao metal prateado e às luzes gritantes.

Primeiro, um dia e então uma noite e então um dia e então uma noite, e então era dia-noite-dia-noite-dia. Uma semana, um mês, um ano. uma década! 2 055 a. D., 2 019 a. D., 1 999! 1 957! Partida! A máquina rugia.

Puseram suas máscaras de oxigénio e testaram os intercomunicadores.

Eckels inclinou-se no assento estofado, rosto pálido, maxilar enrijecido. Sentia o tremor em seus braços, olhou para baixo e achou suas mãos firmes no novo rifle. Haviam quatro outros homens na Máquinas. Travis, o líder do Safari, seu assistente, Lesperance, e mais dois outros caçadores, Billings e Kramer. Sentavam-se olhando uns para os outros, e os anos ardiam à volta deles.

— Estas armas podem dar conta de um dinossauro? — Eckels sentiu sua boca dizendo.

— Se os acertar direito — disse Travis pelo rádio do capacete. — Alguns dinossauros têm dois cérebros, um na cabeça e outro no fim da espinha. Ficamos longe destes. É abusar da sorte. Atire as duas primeiras vezes nos olhos, se puder, e cegue-os, e volte a atirar no cérebro.

A Máquina bramia. O Tempo era um filme passado ao contrário. Os sóis voavam e dez milhões de luas, atrás deles. — Pense só — disse Eckels. — Todos os caçadores que jamais viveram nos inveja­riam hoje. Isto faz a África parecer com o Illinois.

A Máquina desacelerou; seu grito caiu para um sussurro. A Máquina parou.

O sol parou no céu.

A névoa que envolvera a Máquina dissipou-se e estavam num tempo antigo, muito antigo mesmo, três caçadores e dois chefes de safari com suas armas metálicas sobre os joelhos.

— Cristo ainda não nasceu — disse Travis. — Moisés ainda não foi à montanha, para falar com Deus. As pirâmides ainda estão na terra, esperando para serem recortadas e montadas. Lembrem-se disso. Ale­xandre; César; Napoleão; Hitler; nenhum deles existe.

O homem fez que sim.

— Aquilo. — Apontou o Sr. Travis — é a selva de sessenta milhões dois mil e cinquenta e cinco anos antes do presidente Keith.

Mostrou o caminho de metal que cruzava o verde selvagem, sobre um amplo pântano, por entre fetos e palmeiras.

E aquele — disse — é o Caminho, colocado por Safaris no Tempo, para seu uso. Flutua a seis polegadas acima da terra. Não toca senão no máximo uma grama, flor ou árvore. É um metal anti-gravitacional. Seu propósito é evitar que vocês toquem, de qualquer maneira que seja, este mundo do passado. Fiquem no Caminho. Não saiam dele. Repito. Não saiam. Por qualquer razão que seja! Se caírem, serão multados. E não disparem em nenhum animal que não aprovemos.

— Por quê? — perguntou Eckels.

Sentaram-se, na floresta antiga. Gritos distantes de pássaros vieram com o vento, e o cheiro de alcatrão e de um velho oceano salgado, grama húmida, e flores da cor de sangue.

— Não queremos mudar o Futuro. Não pertencemos ao Passado. O governo não gosta de nós aqui. Temos que pagar muita propina para garantir nossa licença. A Máquina do Tempo é um negócio extremamente delicado. Sem saber, poderíamos matar um animal importante, um pequeno pássaro, uma barata; mesmo uma flor, assim destruindo um elo importante, numa espécie em evolução.

— Isso não fica muito claro, — falou Eckels.

— Está bem — continuou Travis, — suponhamos que acidentalmente matemos um rato, aqui. Isso quer dizer que todos as futuras famílias deste rato, em particular, serão destruídas, certo?

— Certo.

— E todas as famílias das famílias, daquele rato! Com um pisão de seu pé, você aniquila primeiro um, então uma dúzia, então mil, um milhão, um bilião de ratos, possivelmente!

— Então estarão mortos; e daí?

— E daí? — Travis torceu o nariz. — Bem, e as raposas que precisariam daqueles ratos para sobreviver? Para cada dez ratos a menos, morre uma raposa. Para cada dez raposas a menos, um leão morre de fome. Para cada leão a menos, insectos, abutres, infinitos biliões de formas de vida são lançados ao caos e à destruição. Eventualmente, tudo recai no seguinte: cinquenta e nove milhões de anos depois, um troglodita, um, de uma dúzia no mundo inteiro, vai caçar javalis ou tigres de dentes de sabre para comer. Mas você, amigo, pisou em todos os tigres daquela região. Pisando num só rato. Assim o troglodita morre de fome. E este homem das cavernas, note bem, não é qualquer um dispensável, não senhor! Ele é toda uma nação futura. Dele, teriam saído dez filhos. E destes, mais cem, e assim por diante, até a civilização. Destruindo este único homem, destrói-se uma raça, um povo, toda uma história. É comparável a matar um neto de Adão. O pisão de seu pé, num rato, poderia principiar um terremoto, cujos efeitos poderiam abalar nossa terra e destinos pelo Tempo afo­ra, até seus alicerces. Com a morte daquele troglodita, um bilhão de outros ainda não nascidos são mortos no útero. Talvez Roma nunca se erga sobre suas sete colinas. Talvez a Europa fique para sempre uma floresta espessa, e apenas a Ásia cresça, forte e saudável. Pise num rato e esmagará as Pirâmides. Pise num rato e deixará sua mar­ca, como um Grand Canyon, pela Eternidade. A rainha Elizabete poderá nunca nascer. Washington poderá não cruzar o Delaware, po­derá nunca haver Estados Unidos. Portanto, seja cuidadoso. Fique no caminho. Nunca pise fora!

— Percebo — comentou Eckels. — Então não poderíamos nem tocar a grama?

— Exacto. Esmagar certas plantas poderia causar somas infinitesimais. Um erro mínimo seria multiplicado por sessenta milhões de anos, desmesuradamente. Claro, talvez nossa teoria esteja errada. Talvez o Tempo não possa ser alterado por nós. Ou talvez só possa ser alterado de maneiras subtis. Um rato morto aqui causa um desequilíbrio dos insectos ali, uma desproporção populacional mais tarde, uma colheita má mais adiante, uma depressão, fome, e finalmente uma mudança no temperamento social em países remotos. Algo muito mais subtil, como isso. Talvez algo ainda muito mais subtil. Talvez apenas uma respiração, um sussurro, um cabelo, um pólen no ar, uma mudança tão levezinha que se olhasse atentamente, não notaria. Quem sabe? Quem pode dizer que realmente sabe? Não sabemos. Estamos só adivinhando. Mas até que tenhamos certeza, se nossos passeios pelo Tempo podem fazer um barulhão ou um barulhinho na História, seremos cuidadosos… Esta Máquina, este Caminho, suas rou­pas e corpo, foram esterilizados, como sabem, antes da viagem. Usamos estes capacetes de oxigénio de modo que não possamos introduzir bactérias nesta atmosfera primitiva.

— Como sabemos que animais abater?

— Estão marcados com tinta vermelha — explicou Travis. — Ho­je, antes da viagem, mandamos Lesperance aqui com a Máquina. Ele veio a esta época em particular e seguiu certos animais.

— Estudando-os?

— Isso — falou Lesperance. — Sigo-os por toda sua vida, observando quais vivem mais. Quantas vezes se acasalam. Poucas vezes. A sua vida é curta. Quando vejo que algum vai morrer com uma árvore caindo em cima dele, ou um que se afoga num poço de alcatrão, anoto a hora, minuto, e segundos exactos. Disparo um revólver de tinta. Deixa uma marca vermelha em seus flancos. Não podemos nos enganar. Então correlaciono com a chegada ao Caminho, de modo que encontremos o monstro a não mais de dois minutos de sua morte, inevitável. Desta forma, matamos apenas animais sem futuro, que nunca vão se acasalar de novo. Vê como somos cuidadosos?

— Mas se esta manhã você voltou no tempo, deve ter cruzado connosco mesmos, nosso safari! Como nos saímos? Tivemos sucesso? Conseguimos voltar todos... vivos?

Travis e Lesperance entreolharam-se.

— Isso seria um paradoxo, — falou este último. — O tempo não permite esse tipo de confusão; um homem encontrando a si mesmo. Quando há o risco de tais situações, o tempo desvia-se. Como um avião passando por um vácuo. Sentiu a Máquina pular antes de pararmos? Éramos nós passando por nós mesmos, a caminho do Futuro. Não vimos nada. Não há meio de dizer se esta expedição teve suces­so; se pegamos nosso monstro, ou se todos nós, isto é, o senhor, Sr. Eckels, saiu vivo.

Eckels sorriu, palidamente.

— Parem com essa conversa — interrompeu Travis. — Todos de pé!

Estavam prontos para deixar a Máquina.

A selva era alta, a selva era larga, e a selva era todo o mundo, pa­ra sempre. Sons como música, e sons como tendas voando, encheram o ar, e eram pterodátilos planando com cavernosas asas cinzentas, morcegos gigantescos de delírio e febre noturna. Eckels, equilibrado no estreito Caminho, apontou seu rifle, bem-humorado.

— Pare! — falou Travis. — Não aponte nem mesmo por brinca­deira, idiota! Se a arma dispara...
Eckels enrubesceu. — Aonde está nosso Tyranossaurus?

Lesperance checou seu relógio de pulso. — Logo à frente. Vamos estar no caminho dele em sessenta segundos. Atenção para a tinta vermelha! Não atire até que eu mande. Fique no caminho. Fique no Caminho!

Moveram-se adiante, pelo vento da manhã.

Estranho — murmurou Eckels. — Lá adiante, daqui a sessenta milhões de anos, fim das eleições. Keith presidente. Todos celebrando. E aqui estamos, perdidos num milhão de anos, e eles não existem ainda. As coisas que nos preocuparam por meses, por uma vida inteira, nem nasceram nem foram idealizadas, ainda.

— Soltar as travas, todos! — ordenou Travis. Você dá o primeiro tiro, Eckels, Billings o segundo, e Kramer o terceiro.

— Já cacei tigre, javali, búfalo, elefante, mas agora, isto é incomparável — disse Eckels. — Estou tremendo como uma criança.

— Ah — fez Travis. Todos pararam.

Travis ergueu a mão. — À frente — falou, em voz baixa. — Na neblina. Lá está ele. Ali está Sua Majestade Real, agora.

A selva era ampla, e cheia de gorjeios, farfalhares, murmúrios e suspiros.

Subitamente, tudo cessou, como se alguém tivesse fechado a porta.

Silêncio.

Um som de trovão.

Da neblina, a cem jardas, vinha o Tyranossaurus rex.

— É ele — cochichou Eckels, — é ele... —Psss!

Ele veio sobre grandes pernas, oleosas, resilientes. Erguia-se a trinta pés, acima da metade das árvores, um grande deus do mal, dobrando suas delicadas garras de relojoeiro perto de seu peito oleoso, reptílico. Cada pata inferior era um pistão, mil libras de osso branco, mergulhadas em grossas cordas de músculos, revestidas por um brilho de uma pele pedregosa, como a malha de um terrível guerreiro. Cada coxa, uma tonelada de carne, marfim, e aço trançado. E da grande gaiola arquejante da parte superior do corpo, aqueles dois braços delicados pendurados para a frente, braços que poderiam erguer e examinar os homens como brinquedos, enquanto se dobrava o pescoço de serpente. E a cabeça mesmo, uma tonelada de pedra esculpida, erguida com facilidade contra o céu. Sua boca escancarava-se, expondo uma cerca de dentes como dardos. Seus olhos rolavam, ovos de avestruz, vazios de qualquer expressão, excepto fome. Fechava a boca num sorriso da morte. Corria, seus ossos pélvicos derrubando para os lados árvores e arbustos, seus pés, com garras, afundando-se na terra húmida, deixando marcas de seis polegadas de profundidade aonde quer que apoiasse seu peso. Corria com um passo deslizante de ballet, muito aprumado e equilibrado para suas dez toneladas. Movia-se, cansado, numa arena ensolarada, suas mãos lindamente reptilianas tacteando o ar.

— Ora, vejam — Eckels torceu a boca. — Poderia esticar-se e pegar a lua.

— Pssst! — fez Travis, nervoso. — Ele ainda não nos viu.

— Não pode ser morto. — Eckels pronunciou seu veredicto, quieto, como se não pudesse haver discussão. Tinha avaliado a evidência, e era esta sua abalizada opinião. O rifle em sua mão parecia uma arma de brinquedo. — Fomos loucos de ter vindo. Isto é impossível.

— Cale-se! — silvou Travis.

— Pesadelo.

— Dê meia volta — comandou Travis. — Vá em silêncio para a Máquina. Podemos reembolsar-lhe metade de sua passagem.

— Não percebia como seria grande, — falou Eckels. — Avaliei mal, foi isso. E agora, quero desistir.

— Ele nos viu!

Lá está a tinta vermelha em seu peito!

O Lagarto Tirano levantou-se. Sua carne de armadura rebrilhava como mil moedas verdes. As moedas, com uma crosta de lama, ferviam. No lodo, pequenos insectos esperneavam, de modo que todo o corpo parecia retorcer-se e ondular, mesmo enquanto o monstro não se movia. Expirou. O cheiro de carne crua foi soprado pelos ermos.

— Deixe-me sair daqui — disse Eckels. — Nunca foi como isto, agora. Eu sempre estava certo de que poderia sair vivo. Eu tinha bons guias, bons safaris, e segurança. Desta vez, enganei-me. Encontrei algo que me supera, e reconheço. É demais para eu enfrentar.

— Não corra — falou Lesperance. — Dê a volta. Esconda-se na Máquina.

— Sim, — Eckels parecia entorpecido. Olhou para seus pés, como que tentando fazê-los mover-se. 

Deu um grunhido, incapaz.

— Eckels!

Deu alguns passos, piscando, hesitante,

— Não por aí!

O Monstro, ao primeiro movimento, impulsionou-se para a fren­te com um grito terrível. Cobriu cem jardas em seis segundos. Os rifles ergueram-se rapidamente e iluminaram-se, com o fogo. Um vendaval da boca da besta engolfou-os na fedentina do lodo, e sangue envelhecido. O Monstro rugiu, dentes brilhando ao sol.

Eckels, sem olhar para trás, caminhou cegamente para a borda do Caminho, sua arma carregada frouxamente em seus braços, saiu do caminho, e andou, inadvertidamente, pela floresta. Seus pés afundaram em musgo verde. Suas pernas o carregavam, e ele se sentia só e afastado dos eventos lá atrás.

Os rifles dispararam de novo. O som perdeu-se no grito e no trovão do lagarto. O grande volume da cauda do animal lançou-se para cima, e para o lado. Árvores explodiram em nuvens de folhas e ramos. O Monstro torceu suas mãos de joalheiro para acariciar os homens, para dobrá-los ao meio, para esmagá-los, como frutinhas, para empurrá-los para seus dentes e sua garganta ruidosa. Seus olhos, quais rochedos, estavam ao nível dos homens. Viram-se espelhados. Dispararam nas pálpebras metálicas e na luminosa íris.

Como um ídolo de pedra, como uma avalanche de montanha, o Tyranossaurus caiu. Trovejando, agarrou árvores, e puxou-as consigo. Agarrou e cortou o Caminho. Os homens precipitaram-se para trás, e para longe. O corpo abateu-se, dez toneladas de carne fria e pedra. Os rifles dispararam. O Monstro brandiu sua cauda blindada, crispou suas mandíbulas de serpente, e imobilizou-se. Uma fonte de sangue jorrava de sua garganta. Em algum lugar lá dentro, um saco de fluido estourou. Borbotões nauseantes inundaram os caçadores. Lá estavam vermelhos, brilhantes.

O trovão dissipou-se.

A selva estava silenciosa. Depois da avalanche, uma paz verde. Depois do pesadelo, o amanhecer.
Billings e Kramer praguejavam pesadamente, com seus rifles ain­da fumegando.

Na Máquina do Tempo, face abatida, Eckels tremia. Tinha conseguido voltar ao caminho, e subira na Máquina.

Travis chegou, olhou para Eckels, pegou gaze de algodão e, virou-se para os outros, que estavam sentados sobre o Caminho.

— Limpem-se.

Limparam o sangue de seus capacetes. Começaram a resmungar, também. O Monstro jazia ali como uma montanha de carne. Dentro dele, podia-se ouvir os sopros e murmúrios, enquanto seus recessos iam morrendo, os órgãos parando de funcionar, líquidos circulando um último instante, de saco para a bolsa, para vesícula, tudo des­ligando-se, parando para sempre. Era como ficar perto de uma locomotiva acidentada, ou uma escavadora a vapor, no momento de desligar, com todas as válvulas sendo desactivadas. Ossos estalavam; a tonelagem de sua própria carne, desequilibrada, peso morto, quebrava os delicados braços, do lado de baixo. A carne se assentava aos tremores.

Outro estalido. Mais acima, um enorme galho de árvore partiu de sua pesada ancoragem, caiu. Golpeou certeiramente a fera morta.

— Pronto. — Lesperance verificou seu relógio. — Bem na hora. Essa era a grande árvore que deveria cair e matar este animal, originalmente. — Olhou para os dois caçadores. — Querem tirar a foto de troféu?

— Quê?

— Não podemos levar o troféu para o Futuro. O corpo deve ficar aqui, aonde deveria originalmente morrer, de modo que os inse­tos, pássaros, e bactérias possam devorá-lo, como devem. Tudo equilibrado. O corpo fica. Mas podemos tirar uma fotografia de vocês a seu lado.

Os dois homens fizeram força para pensar, mas desistiram, aba­nando as cabeças.

Deixaram-se guiar ao longo do Caminho de metal. Afundaram cansados, nos assentos da Máquina. Olharam de novo para o Monstro arruinado, o montículo em estagnação, aonde já estranhos pássaros reptilianos e insetos dourados estavam ocupados com a fumegante armadura.

Um som no chão da Máquina do Tempo deixou-os tensos. Eckels estava lá, tremendo.

— Lamento muitíssimo — disse.

— Levante-se! — gritou Travis. Eckels levantou-se.

— Vá para o Caminho sozinho — falou Travis, com seu rifle apontado. Não vai voltar para a Máquina. Vamos deixá-lo aqui!

Lesperance agarrou o braço de Travis. — Espere...

— Fique fora disto! — Travis desvencilhou-se de sua mão. — Este louco quase matou-nos. Mas isso não é tanto assim. Vejam seus sapatos! Vejam! Ele saiu do Caminho. Isso nos arruína! Seremos multados! Milhares de dólares de seguro! Garantimos que ninguém deixa o Caminho, e ele o deixou. Ora, o louco! Terei de informar o Governo.

Poderão cancelar nossa licença para viajar. Quem sabe o que ele fez ao Tempo, à História!

— Calma, tudo o que ele fez foi pisar em alguma sujeira.

— Como saber? — gritou Travis. — Não sabemos nada! É um mistério! Saia, Eckels!

Eckels mexeu em sua camisa. — Pago qualquer coisa. Mil dóla­res!

Travis olhou para o talão de cheques de Eckels e cuspiu. — Saia. O Monstro está perto do Caminho. Afunde os braços até os cotovelos na boca dele. Então poderá voltar connosco.

— Isto é irrazoável!

— O Monstro está morto, seu idiota. As balas! As balas não podem ser deixadas para trás. Elas não pertencem ao Passado; poderão mudar alguma coisa. Aqui está a minha faca. Cave-as!

A selva estava viva de novo, cheia de antigos tremores e do barulho dos pássaros. Eckels voltou-se lentamente para olhar o monte de carniça primordial, aquela montanha de pesadelos e terror. Depois de um longo tempo, como um sonâmbulo, arrastou-se ao longo do Caminho.

Voltou, tremendo, cinco minutos depois, com seus braços ensopados e vermelhos até os cotovelos. Estendeu as mãos. Cada uma segurava algumas balas de aço. Então caiu e ficou lá, imóvel.

— Você não precisava obrigá-lo a isso — comentou Lesperance.

— Não? É cedo ainda para dizer. — Travis tocou o corpo, com o pé. — Viverá. Da próxima vez não vai sair para caçar este tipo de caça. OK. — Ergueu o polegar para Lesperance. — Dê a partida. Vamos para casa. 1492 . 1776 . 1812 .

Limparam suas mãos e faces. Trocaram de roupa. Eckels estava de pé de novo, mudo. Travis olhou para ele por dez minutos.

— Não olhe para mim, — exclamou Eckels. — Não fiz nada.

— Quem pode saber?

— Apenas saí do Caminho, foi tudo, um pouco de lama em meus sapatos; que quer que eu faça? Que me ajoelhe e reze?

— Talvez precisemos disso. Estou lhe avisando, Eckels! Posso matá-lo, ainda. Minha arma está engatilhada.

— Estou inocente. Não fiz nada! 1999 . 2000 . 2055 .

A Máquina parou.

— Saia — ordenou Travis.

A sala lá estava, tal como quando saíram. Mas não exactamente a mesma. O mesmo homem atrás da mesma escrivaninha. Mas o mesmo homem não parecia estar sentado exactamente atrás da mesma escrivaninha.

Travis olhou em volta, depressa. — Tudo em ordem por aqui? — foi logo perguntando.

— Claro. Bem vindos ao lar!

Travis não relaxou. Parecia estar olhando para os próprios átomos do ar, e para o modo pelo qual o sol entrava pela janela alta.

— OK, Eckels, saia. E nunca mais volte. Eckels não podia mover-se.

— Ouviu-me, — falou Travis. — Para o quê está olhando? Eckels ficou, cheirando o ar, e havia algo no ar, uma substância tão ténue, tão subtil, que apenas um fraco aviso de seus sentidos su­bliminares avisavam-lhe que estava ali. As cores, branco, cinza, azul, laranja, na parede, na mobília, no céu, pela janela, eram... eram... E havia uma sensação. Sua carne crispava-se. Ficou bebendo aquela estranheza com os poros de seu corpo. Em algum lugar, alguém devia estar soprando naqueles apitos que só os cães podem ouvir. Seu corpo gritava silenciosamente, em resposta. Além deste aposento, além desta parede, além deste homem, que não era exactamente o mesmo homem que estava sentado àquela mesa, que não era bem a mesma mesa... estava todo um mundo de ruas e gente. Que espécie de mundo era agora, não havia como dizer. Ele podia senti-los mover-se ali, além das paredes, quase, como peças de xadrez por um vento quente...

Mas a coisa mais imediata era o anúncio pintado na parede do escritório, o mesmo que havia lido hoje ao entrar. De alguma forma, o anúncio havia mudado:

SEFARIS NU TENPO, INC.
SEFARIS PRA QUALQUER ANO PAÇADO.
CÊ DIS QUI ANIMAU.
NÔIS LEVAMOS CÊ LÃ.
CÊOABAT.

Eckels sentiu-se caindo numa cadeira. Ficou mexendo, como louco, na lama em suas botas. Ergueu um pedaço de algo enlameado, tremendo. — Não, não pode ser, não uma coisinha assim, não!

Embebida na lama, brilhando em verde e dourado e preto, havia uma borboleta, muito bela, e muito morta.

Não uma coisa assim! Não uma borboleta! — gritou Eckels.

Caiu ao chão, uma coisa exótica, pequena, que poderia desman­char equilíbrios e derrubar uma fila de dominós pequenos, e então grandes dominós, e então dominós gigantes, por todos os anos através do Tempo. A mente de Eckels turbilhonava. Não podia mudar as coisas. Matar uma borboleta não podia ser tão importante! Ou poderia?

Seu rosto estava frio. Sua boca hesitava, ao perguntar: — Quem... quem ganhou a eleição presidencial ontem?

O homem atrás da escrivaninha riu-se. — Está brincando? Sabe muito bem. Deutscher, claro! Quem mais? Não aquele maluco pusilâmine do Keith. Temos um homem de ferro, agora, um homem de peito! — O funcionário parou. — O que há de errado?

Eckels gemeu. Caiu de joelhos. Examinava a borboleta dourada com dedos trémulos. — Não podemos — implorava ao mundo, a si mesmo, aos funcionários, à Máquina. — Não podemos levá-la de volta, não podemos fazê-la viver de novo? Não podemos recomeçar? Não poderíamos...

Não se moveu. Olhos fechados, esperou, abalado. Ouviu Travis ofegando, na sala; ouviu Travis apontar o rifle, destravá-lo.

Houve um som de trovão.

Ray Bradbury