«O Casamento da Emília», por Monteiro Lobato.
«O Casamento da Emília»
Casamento na Roça/ Cândido Portinari
1166- «O CASAMENTO DA EMÍLIA»
Durou uma semana o noivado de Emília. Todas as tardes,
trazido à força por Pedrinho, aparecia o Marquês de Rabicó para visitar a
noiva, e tinha de ficar meia hora na sala, contando casos e dizendo palavras de
amor.
Mas apesar de noivo o Rabicó não perdia os seus
instintos. Logo que entrava punha-se a farejar a sala, na sua eterna
preocupação de descobrir o que comer. Além disso, não prestava a menor atenção
à conversa. Não havia nascido para aquelas cerimônias.
Uma tarde, Pedrinho zangou-se e resolveu substituí-lo por um
representante.
– Rabicó não vale a pena – disse ele aborrecido. – Não sabe
brincar, não se comporta. O melhor é isto, querem ver? – e saiu.
Foi ao quintal e trouxe um vidro vazio de óleo de rícino que
andava jogado por lá.
– Esta aqui. De agora em diante o noivo será representado
por este vidro azul, e o tal Marquês de Rabicó vai passear – concluiu pregando
um pontapé no noivo.
Rabicó raspou-se gemendo três coins , e desde esse dia,
enquanto fossava a terra no pomar atrás da tal minhoca de anel na barriga, quem
noivava por ele, de cartola na cabeça, era o senhor Vidro Azul.
Emília comportava-se muito bem embora de vez em quando
viesse com impertinências.
– Eu já disse a Narizinho: caso, mas com uma condição.
– Eu sei qual é! – adivinhou o senhor Vidro Azul. – Não quer
morar na casa do Marquês, com certeza porque não se dá bem com o futuro sogro,
os Visconde de Sabugosa.
– Isso não! Até gosto muito do senhor Visconde. O que não
quero é sair daqui. Estou muito acostumada.
– O senhor Vidro Azul coçou o gargalo.
– Sim, mas…
– Não tem mas, nem meio mas! Quem manda neste casamento sou
eu. O Marquês fica por lá e eu fico por cá – declarou Emília, toda
espevitadinha e de nariz torcido.
O representante do noivo suspirou.
– Que pena! O Senhor Marquês já mandou construir um castelo
tão bonito, de ouro e marfim, com um grande lago na frente…
Emília deu uma risada.
– Eu conheço os lagos do Marquês! São como aquele célebre
“lago azul” que certa vez prometeu à Libelinha lá do Reino das Abelhas.
O senhor Vidro Azul atrapalhou-se. Viu que
Emília não era nada tola e não se deixava
enganar facilmente. Procurou remendar.
– Sim, um lago. Não digo um grande lago, mas um pequeno
lago, um tanque…
– Uma lata d’água, diga logo! – completou Emília mordendo os
beiços.
Narizinho interveio, repreensiva.
– Você esta aqui para noivar, Emília, para dizer coisas
bonitas e amáveis, e não para brigar com o representante do Marquês. Veja lá,
hein?
E dirigindo ao representante:
– O Senhor Marquês não escreveu ainda uns versos para a sua
amada noivinha?
– Escreveu, sim – respondeu o Vidro Azul, metendo a mão no
gargalo e sacando um papelzinho. – Aqui estão eles.
E recitou:
Pirulito que bate bate,
Pirulito que já bateu,
Quem adora o Marquês é ela.
Quem adora Emília sou eu.
– Bravos! – exclamou Narizinho batendo palmas. – São lindos
esses versos! O Marquês é um grande poeta!…
Emília, porém, torceu o nariz e até ficou meio danadinha.
– O verso esta todo errado! Vou casar-me com Rabicó mas não
“adoro” coisa nenhuma. Tinha graça eu “adorar” um leitão!
Narizinho bateu o pé e franziu a testa.
– Emília, tenha modos! Não é assim que se trata um poeta.
Você vai ser marquesa, vai viver em salões e precisa saber fingir, ouviu?
Depois, voltando-se para o representante:
– Peço-lhe mil desculpas, senhor Vidro Azul! Emília tem a
mania de ser franca. Nunca viveu em sociedade e ainda não sabe
mentir. Não é aqui como o nosso Visconde de Sabugosa, que fala, fala e ninguém
sabe nunca o que ele realmente esta pensando, não é verdade?
O Visconde fez um gesto que tanto podia ser sim como não.
Desse modo conversavam todas as noites, longo tempo, até que
vinha o chá. Chá de mentira com torradas de mentira. Depois do chá, se
despediam.
Passada uma semana, a menina queixou-se a Dona Benta:
– Este noivado esta me acabando com a vida, vovó. Todas as
noites, tenho de fazer sala para os noivos. Como isto cansa!…
– Mas que é que esta faltando para o casamento, menina?
– Os doces, vovó…
– Já sei. Já sei. Pois tome lá estes níqueis e mande vir os
doces.
Como era justamente aquilo que Narizinho queria, lá se foi
aos pinotes, com os níqueis cantando na mão.
Chegou afinal o grande dia e vieram os grandes doces: seis
cocadas, seis pé-de-moleque e uma rapadura, doce mais que suficiente para uma
festa em quase todos os convidados ia comer de mentira.
Pedrinho armou a mesa da festa debaixo de uma laranjeira do
pomar e botou em redor todos os convivas.
Lá estavam Dona Benta, Tia Nastácia e vários conhecidos e
parentes, todos representados por pedras, tijolos e pedaços de pau. O inspetor
de quarteirão, um velho amigo de Dona Benta que às vezes aparecia pelo Sítio do
Picapau Amarelo, era figurado por um toco de pau com uma dentadura de casca de
laranja na boca.
Chegou a hora. Vieram vindo os noivos. Emília, de vestido
branco e véu; Rabicó, de cartola e faixa de seda em torno do pescoço. Vinha
muito sério, mas assim que se aproximou da mesa e sentiu o cheiro das cocadas,
ficou de água na boca, assanhadíssimo. Não viu mais nada.
Logo depois veio o padre e casou-os. Narizinho abraçou
Emília e chorou lágrima de verdade, dando-lhe muitos conselhos. Depois, como a
boneca não tivesse dedos, enfiou-lhe no braço um anelzinho seu. Pedrinho fez o
mesmo com o Marquês; enfiou-lhe no braço uma aliança de laranja, que Rabicó por
duas vezes tentou comer.
Os outros animais do Sítio, as cabras, as galinhas e os
porcos, também assistiram à festa, mas de longe. Olhavam, olhavam, sem
compreenderem coisa nenhuma.
Terminada a festa. Narizinho disse:
– E agora, Pedrinho?
– Agora – respondeu ele – só falta a viagem de núpcias.
Mas a menina estava cansada e não concordou. Propôs outra
coisa. Puseram-se a discutir e esqueceram de tomar conta da mesa de doces.
Rabicó aproveitou a ocasião. Foi se chegando para perto das cocadas e de
repente – nhoc! Deu um bote na mais bonita.
– Acuda os doces, Pedrinho! – berrou a menina.
Pedrinho virou-se e, vendo a feia ação do pirata, correu
para cima dele, furioso. Agarrou o inspetor de quarteirão e arrumou uma valente
inspetorada no lombo do porquinho…
– Cachorro! Ladrão! Marquês duma figa!…
Rabicó deu um berro espremido e disparou pelo campo, mas sem
largar a cocada.
Como era de prever, não podia dar bom resultado aquele
casamento. O génios não se combinavam e, além disso, a boneca não podia
consolar-se do logro que levara.
Narizinho ainda tentou convencê-la de que Rabicó era
realmente príncipe e Pedrinho só dissera aquilo porque estava danado. Não houve
meio. Quando Emília desconfiava, era toda a vida. E desse modo ficou casada com
Rabicó, mas dele separada para sempre.
– Esta aí o que você fez! – costumava dizer em voz queixosa.
– Casou-me com um príncipe de mentira e agora, esta aí, esta aí…
Narizinho dava-lhe esperanças.
– Tudo se arruma. Um dia, ele morre e eu caso você com o
Visconde ou outro qualquer.
Monteiro Lobato