sexta-feira, 14 de outubro de 2016

OUTROS CONTOS

«O Passa-Paredes», por Marcel Aymé.

«O Passa-Paredes»
Por Marcel Aymé

898- «O PASSA-PAREDES»

[Pequeno Excerto]

“Havia em Montmartre, no terceiro andar do 75-A da Rua d’Orchampt, um excelente homem chamado Dutilleul que possuía o dom singular de passar através das paredes sem o menor incómodo. Usava lunetas, uma pequena barbicha preta, e era funcionário de terceira classe no Ministério dos Registos. No Inverno ia para o emprego de autocarro, e quando chegava o bom tempo fazia o trajecto a pé, sob o seu chapéu de coco.

Dutilleul acabara de entrar no quadragésimo-terceiro ano quando teve a revelação do seu poder. Certa noite, surpreendido no vestíbulo do pequeno apartamento de solteiro por uma curta falha de electricidade, pôs-se a tactear nas trevas e, assim que a corrente voltou, viu-se no patamar do terceiro andar. Como a porta estava fechada por dentro, o incidente fê-lo reflectir e, desafiando as objecções da razão, decidiu-se a entrar como tinha saído, passando através da parede. Esta estranha faculdade, que parecia não responder a nenhuma das suas aspirações, não deixou de o contrariar um pouco e, no sábado seguinte, aproveitando a semana inglesa, foi ver um médico do bairro para lhe expor o caso. O médico pôde verificar ser verdade o que lhe dizia e, depois de o ter examinado, descobriu a causa do mal num endurecimento helicoidal do revestimento estrangular do corpo tiroideu. Receitou-lhe o excesso de trabalho e, à razão de dois comprimidos por ano, a absorção de pó de pireta tetravalente, mistura de farinha de arroz e de hormona de centauro.

Depois de tomar um primeiro comprimido, Dutilleul guardou o medicamento numa gaveta e não pensou mais no caso. Quanto ao excesso de trabalho, a sua actividade de funcionário regulava-se por usos que em nada se prestavam a qualquer excesso, e as horas livres, consagradas à leitura do jornal e à colecção de selos, tão-pouco o obrigavam a um imoderado dispêndio de energia. Ao fim de um ano, tinha pois mantido intacta a faculdade de passar através das paredes, mas nunca a utilizava, a não ser por inadvertência, sendo pouco dado a aventuras e refractário aos transportes da imaginação. Não lhe aflorava sequer a ideia de entrar em casa de outro modo que não fosse pela porta e só depois de devidamente aberta com intervenção da fechadura. Poderia talvez ter envelhecido na paz dos seus hábitos sem sentir a tentação de pôr à prova os seus dons, não fosse um acontecimento extraordinário ter vindo subitamente perturbar-lhe a existência. O Sr. Mouron, sub-chefe da repartição, chamado a outras funções, foi substituído por um tal Sr. Lécuyer, que tinha a palavra breve e um bigode à escovinha. Desde o primeiro dia, o novo sub-chefe não viu com bons olhos que Dutilleul usasse lunetas de corrente e barbicha preta, e tratava-o ostensivamente como uma velharia importuna e algo indecorosa. Mas o mais grave é que se propôs introduzir no serviço reformas de uma certa envergadura e destinadas a perturbar a quietude do subordinado. Havia já vinte anos que Dutilleul começava as cartas pela fórmula seguinte: “Em referência à estimada carta de Vª Exª de tantos do corrente e tendo presente a nossa troca de correspondência anterior, tenho o prazer de informar Vª Exª…” Fórmula essa que o Sr. Lécuyer entendeu substituir por outra com um ar mais americano: “Em resposta à sua carta de tantos do tal, temos a informar que…” Dutilleul não pôde acostumar-se a estes termos epistolares. Mau grado seu, voltava à sua maneira tradicional, com uma obstinação maquinal que lhe valeu a inimizade crescente do sub-chefe. A atmosfera do Ministério dos Registos tornava-se-lhe quase penosa. De manhã, dirigia-se para o trabalho apreensivo, e à noite, na cama, acontecia-lhe frequentemente ficar a meditar um quarto de hora inteiro antes de pegar no sono.

Desalentado por esta determinação retrógrada que comprometia o sucesso das suas reformas, o Sr. Lécuyer relegara Dutilleul para um cubículo meio às escuras, contíguo ao seu gabinete. Tinha por entrada uma porta baixa e estreita que dava para o corredor e que exibia ainda em letras maiúsculas a inscrição: Arrecadação. Dutilleul aceitara de ânimo resignado esta humilhação sem precedentes, mas em casa, ao ler no jornal o relato de um qualquer episódio sanguinolento, surpreendeu-se a imaginar o Sr. Lécuyer como sendo a vítima.”

(…)

Marcel Aymé

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