«Episódio no Lago de Genebra», por Stefan Zweig.
«Episódio no Lago de Genebra»
Lago de Genebra/ Suíça
982- «EPISÓDIO NO LAGO DE GENEBRA»
Às margens do lago de Genebra, perto da pequena cidade Suíça
de Villeneuve, numa noite de verão do ano de 1918, um pescador, que, remando,
se adiantara pelo lago, avistou um objeto estranho a boiar no meio das águas,
e, chegando mais perto, reconheceu uma embarcação feita de caibros ligados
ligeiramente, que um homem nu, com gestos desajeitados, impelia com uma tabua a
guisa de remo. Surpreso, o pescador aproximou-se, auxiliou o homem a passar
para o seu bote, cobriu-lhe a nudez provisoriamente com redes e procurou falar
com o infeliz, trêmulo de frio, que, tímido e esquivo, se agasalhava num canto
da embarcação. Ele respondia num idioma estranho, do qual nenhuma palavra se
assemelhava às do pescador . Este desistiu então de novos esforços, recolheu as
redes e seguiu, com fortes golpes de remo, para a margem.
À medida que na luz difusa se divisava a margem,
começou a clarear-se o rosto do homem nu, uma risada infantil desabrochou na
curva barbada de sua boca larga, a mão se ergueu num gesto e o desgraçado
balbuciou uma palavra, que soava como Rossiya, com entonação cada vez mais
jubilosa, quanto mais perto a proa se acercava da margem. Finalmente o bote
rangeu na areia da praia; os parentes femininos do pescador, que esperavam a
presa molhada, se espalharam aos gritos, como outrora as criadas de Nausikaa,
ao verem o homem nu na rede de peixe; aos poucos, atraídos pela estranha nova,
reuniram-se os diversos homens da aldeia, aos quais se ajuntou breve, cheio de
si, em plena atividade de sua função, o prefeito. Tinha como certo, deduzido de
sua experiência do tempo de guerra e das varias horas de instrução, que devia
ser um desertor, vindo a nado da margem francesa, e já se preparava para um
interrogatório. Mas essa tentativa circunstancial perdeu breve em valor e
dignidade, pelo fato de que o homem nu (a quem um dos moradores havia atirado
um paletó e uma calça de brim) repetia cada vez mais medroso e inseguro a
exclamação interrogativa “Rossiya?” “Rossiya?” Um pouco aborrecido pelo
insucesso, o prefeito ordenou-lhe com gestos que não permitiam dúvida, que o
seguisse. Cercado, aos gritos, pela entrementes desperta garotada, levaram o
homem molhado de pés descalços, que tremia dentro do paletó e das calças, para,
a casa de banho e lá o detiveram. Ele não se opunha, não dizia palavra; apenas
os seus olhos claros escureceram com a decepção e os seus ombros altos
encolheram-se como sob um golpe receado.
A nova da pescaria humana, entretanto, se espalhara até aos
hotéis mais próximos, e atraídos pelo aprazível episódio, que interrompia a
monotonia do dia, algumas senhoras e cavalheiros, vieram admirar a criatura
selvagem. Uma dama presenteou-o com confeitos, que ele deixou de lado,
desconfiado como um macaco; um senhor tirou um instantâneo fotográfico; todos
tagarelavam e conversavam alegres em redor dele, até que, finalmente, o gerente
de um dos grandes hotéis, que vivera muito tempo no estrangeiro, conhecendo
vários idiomas, dirigiu ao atemorizado palavras em alemão, italiano, inglês, e
finalmente, em russo. Mal ouviu os primeiros sons do seu idioma materno, o
pobre homem ergueu-se de um pulo e um sorriso largo rasgou-lhe o rosto bondoso
de uma orelha a outra e, repentinamente, seguro e franco, relatou toda a sua
história. Era muito comprida e embrulhada nos seus detalhes, nem sempre
compreensíveis ao seu intérprete casual, mas em linhas gerais o destino desse
homem fora o seguinte:
Lutara na Rússia e fora, um belo dia, com milhares de
outros, embarcado em comboios, viajando para muito longe; depois embarcado em
navios, seguindo por mais tempo através de países onde fazia tanto calor, que,
como ele se expressava, os ossos eram assados até amolecer a carne. Finalmente
atracaram em um porto e foram, novamente, embarcados em comboios, e tiveram
repentinamente que tomar uma colina, sobre a qual nada sabia, pois, logo ao
princípio, fora atingido por um balaço na perna. Aos ouvintes, a quem o intérprete
traduzia as perguntas e as respostas, era claro que este fugitivo pertencia
àquela divisão russa na França, que foi mandada através de meio mundo, pela
Sibéria e Vladivostok, até a frente francesa. Além de uma espécie de compaixão,
ele provocou, ao mesmo tempo, a curiosidade de saber o que o teria conduzido a
tentar esta fuga estranha. Com um sorriso meio ingênuo e meio astuto, o russo
contou solicito que, recém-curado, havia perguntado aos enfermeiros onde ficava
a Rússia, e eles lhe haviam indicado a direção, que ele pouco mais ou menos
guardara pela posição do sol e das estrelas, e assim fugira secretamente,
caminhando de noite e de dia, escondendo-se das patrulhas nas medas de feno. Durante
dez dias alimentara-se de frutas e de pão esmolado, até que, finalmente,
chegara a este lago. Agora suas declarações se tornavam menos compreensíveis;
parecia evidente que ele, originário das proximidades do lago Baikal, imaginara
que na margem oposta, cujas linhas movimentadas vira na luz do entardecer,
deveria situar-se a Rússia. Em todo caso, havia roubado de uma choupana dois
caibros, e sobre eles, deitado de barriga, com a ajuda de uma tábua à guisa de
remo, atravessara o lago, onde o achara o pescador. A pergunta tímida com que
terminara a sua exposição pouco clara, era se amanha já poderia estar em casa.
Isso provocou, pela sua ingenuidade, forte gargalhada, que logo cedeu lugar a
uma comovida compaixão. E cada um meteu entre as mãos do pobre, que olhava em
torno, indeciso e desconsolado, algumas moedas, ou notas de banco.
Entretanto, chegava, após um entendimento telefônico com
Montreux, um alto oficial da polícia, que, não com pouco esforço, anotou em
protocolo o ocorrido. Não só o intérprete casual se revelara incompetente, mas
tornava-se também evidente (e para um ocidental, incompreensível) a ignorância
desse homem, cujo conhecimento de si próprio mal ultrapassava o do seu primeiro
nome, Boris, e que de sua aldeia natal apenas tinha uma noção confusa: fora,
com outros, servo do Duque de Hetschersky (ele dizia servo, se bem que há uma
geração a casta tivesse sido abolida) e vivia distante cinquenta verstas do
grande lago, com a mulher e três filhos. Então, começou a deliberação sobre o
seu destino, enquanto ele, com o olhar apático e humilde, permanecia no meio
dos contendores: uns opinavam que se devia envia-lo a legação russa, em Berna,
mas outros receavam, dessa medida, um reenvio para a França; o oficial de
polícia explicava todas as dificuldades da questão, se devia ser tratado como
desertor ou como estrangeiro sem documentos; o escrivão do lugar afastou desde
logo a possibilidade de eles poderem sustentar ou abrigar o estrangeiro. Um
francês gritou, agitado, que não se fizesse tantas cerimônias com esse
miserável desertor: que trabalhasse ou então fosse reenviado; duas mulheres
objetaram violentamente que ele não era culpado de sua infelicidade e que era
um crime tirarem as criaturas de suas terras e dos seus lares para enviá-las a
países estrangeiros. Já ameaçava surgir desse motivo casual uma disputa
política, quando, repentinamente, um senhor de idade, dinamarquês,
intrometeu-se declarando com energia que pagaria o sustento do desconhecido por
oito dias e que, entretanto, as autoridades a justassem com a legação uma
solução qualquer que tanto satisfizesse aos desígnios oficiais como aos
particulares.
Durante a discussão, cada vez mais agitada, o olhar esquivo
se erguia, cada vez mais inquieto, e permanecia preso aos lábios do gerente, o
único neste tumulto, a quem ele podia, tornar compreensível o seu destino.
Parecia sentir vagamente o redemoinho que sua presença provocava, e ainda
inconsciente quando diminuiu o barulho, ergueu implorante, nesse silêncio, as
duas mãos para ele como as mulheres diante de um santo. O comovente desse gesto
atingiu irresistivelmente a todos. O gerente adiantou-se cordialmente para ele
e sossegou-o, dizendo não tivesse medo, pois poderia permanecer ali sem ser
importunado, e pelos primeiros tempos, as suas despesas de hospedagem seriam
custeadas.
O russo queria beijar-lhe a mão, ao que, porém, o outro se
subtraiu, dando um passo para trás. Depois indicou-lhe a casa de um vizinho,
uma pequena estalagem de aldeia, onde teria cama e alimento, e dizendo-lhe
amavelmente mais algumas palavras carinhosas e tranquilizadoras, subiu outra
vez à rua que levava ao hotel.
Imóvel, o fugitivo fitava-o fixamente e a medida que o único
entendedor do seu idioma se afastava, escurecia-se-lhe o rosto, já desanuviado.
Com olhares devoradores seguiu o que se afastava até lá em cima, no hotel,
situado no alto, sem fazer caso das outras pessoas, que o observavam, admiradas
ou a rir dos seus modos estranhos. Quando um deles o tocou compadecido,
apontando para a estalagem, os seus pesados ombros como que se agacharam e de
cabeça inclinada entrou pela porta. Abriram-lhe a sala comum. Ele encostou-se a
mesa, sob a qual a criada depusera um copo de aguardente, como saudação, e
ficou sentado aí toda a manha, imóvel e com os olhos turvos.
Incessantemente os garotos da aldeia espiavam pela janela e
gritavam-lhe qualquer coisa — ele não erguia a cabeça. Os que entravam, olhavam
curiosos; mas ele ficava imóvel, o olhar fixo na mesa, de costas vergadas,
envergonhado e tímido. E quando, ao meio dia, na hora da refeição, uma turma de
gente alegrava o compartimento com risadas, quando centenas de palavras, que o
desconhecido não compreendia, esvoaçavam-lhe em torno, ele reconhecendo o
horror de ser estranho, sentado surdo e mudo no meio do movimento geral, sentia
as mãos lhe tremerem tanto que mal podia erguer a colher com a sopa.
Subitamente uma grossa lagrima correu-lhe pela face, caindo na mesa. Acanhado,
olhou em redor. Os outros o notaram, calaram abruptamente. Ele sentia vergonha:
cada vez mais inclinava a cabeça pesada e desgrenhada sobre a madeira negra.
Até ao anoitecer ficou sentado assim, as mãos pesadamente pousadas sobre a
mesa. Gente ia e vinha mas ele não a sentia como os estranhos também não o
sentiam, Todos o esqueciam e ninguém reparou que, ao escurecer, se ergueu
repentinamente e, bronco como um animal, subiu o caminho para o hotel. Uma hora
ou duas esteve parado a porta, com o gorro respeitosamente na mão, sem tocar
pessoa com o olhar: finalmente, um dos moços de recado reparou nessa figura
rara, que enraizara como um tronco de árvore, estarrecida e negra, diante da
entrada cintilante de luzes do hotel, e chamou o gerente. Novamente um pequeno
clarão nasceu no seu rosto sombrio, quando em seu idioma o saudaram.
– Que queres, Boris?, perguntou o bondoso gerente.
– Perdoa-me… balbuciou o fugitivo. Eu só queria saber… se
posso ir para casa.
– Decerto, Boris, podes ir para casa, sorriu o interpelado.
– Já, amanhã?
Agora, o outro também se tornou sério, o sorriso
desvaneceu-se no seu rosto, tão vivamente foram ditas estas palavras.
– Não, Boris... ainda não. Quando acabar a guerra..
– E quando? Quando acaba a guerra?
– Deus o sabe. Nós homens não o sabemos.
– E, então? Não posso ir antes?
– Não, Boris.
– É tão longe?
– Sim.
– Muitos dias ainda?
– Muitos dias.
– Irei mesmo assim, senhor! Sou forte. Eu não me canso.
– Mas tu não podes, Boris. Há mais uma fronteira no meio.
– Uma fronteira?
Ele olhou torvamente. A palavra lhe era estranha.
Depois disso, novamente, com rara tenacidade:
– Eu irei a nado.
– Não, Boris, isso não pode ser. Uma fronteira é um pais
estranho. Os homens não te deixam passar.
– Mas eu não lhes faço nada! Joguei fora a minha carabina.
Por que não me deixam ir para junto de minha mulher, se lhes peço pelo amor de
Cristo?
O gerente tornou-se cada vez mais sério. Sentiu-se
amargurado.
– Não, disse ele, não te deixarão passar, Boris. Os homens
agora não atendem mais a palavra de Cristo.
– Mas que devo fazer, senhor? Não posso ficar aqui! Os
homens aqui não me entendem e eu não os entendo também.
– Tu o aprenderás, Boris.
– Não, senhor — o russo inclinou a cabeça. — Eu não posso
aprender nada. Só sei trabalhar no campo, fora isso não faço nada. Que devo
fazer aqui? Eu quero ir para casa! Mostre-me o caminho.
– Agora não há caminho, Boris.
– Mas senhor, eles não me podem proibir de voltar para
junto de minha mulher e meus filhos! Já não sou mais soldado!
– Eles te prendem, Boris.
– E o Czar ? perguntou repentinamente, tremulo de
expectativa e respeito.
– O Czar não existe mais, Boris. Os homens o depuseram.
– O Czar não existe mais? E olhou para o outro estupefato.
Um último clarão se apagou no seu olhar, depois disse abatido
– Não posso, pois, ir para casa?
– Ainda não. Temos que esperar, Boris.
– Muito?
– Não sei.
Cada vez mais sombrio tornou-se o rosto no escuro.
– Já esperei tanto tempo! Não posso esperar mais. Mostre-me
o caminho. Quero tentá-lo.
– Não há caminho, Boris. Na fronteira te prendem. Fica aqui,
pois encontraremos trabalho para ti.
– Os homens não me compreendem aqui, e eu não os compreendo
— repetiu teimoso. Não posso viver aqui! Ajude-me senhor.
– Eu não posso, Boris.
– Ajude-me pelo amor de Cristo, senhor. Ajude-me, não o
suporto mais.
– Não posso, Boris. Ninguém te pode ajudar agora.
Pararam mudos, um em frente do outro. Boris girava o gorro
nas mãos.
– Por que me tiraram de casa? Disseram que eu tinha que
defender a Rússia e o Czar. Mas a Rússia está longe daqui, e tu dizes o que
fizeram ao Czar… como dizes ?
– Depuseram-no.
– Depuseram-no. (Sem compreender repetiu a palavra). Que
devo fazer agora, senhor? Tenho que ir para casa. Meus filhos gritam por mim.
Não posso viver aqui! Ajude-me, senhor! Ajude-me!
– Eu não posso, Boris.
– E ninguém pode ajudar-me?
– Agora, ninguém.
O russo abaixou ainda mais a cabeça, depois disse
bruscamente com voz abafada: — Agradecido, senhor, e voltou-se.
Devagar, desceu pelo caminho. O gerente seguiu-o longo tempo
com os olhos e admirou-se de que ele não fosse em direção da estalagem, mas sim
dos degraus que dão para o lago. Soltou um profundo suspiro e entrou para
cuidar do seu trabalho no hotel.
O acaso quis que o mesmo pescador encontrasse na manhã
seguinte o cadáver nu do afogado. Ele tinha deposto cuidadosamente a calça, o
gorro e o paletó presenteados na margem e entrara na água tal como dela saíra.
Registou-se o acontecimento e como não se sabia o nome do desconhecido, foi
colocada uma pequena e barata cruz de madeira na sua sepultura, uma dessas
pequenas cruzes de destinos sem nome, de que a nossa Europa esta coberta de um
lado a outro da superfície
.
Stefan Zweig