terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

SÁTIRA...

Mentes Brilhantes
Sátira...

«MENTES BRILHANTES»

Eu minto, tu mentes
E ele também mente…
O verbo não desmente
Nenhum dos agentes.
Nós mentimos cientes...
Não nos inocentem,
Verdades não inventem
Vós mentis a seguir…
Plural do verbo mentir:
Tanto que eles mentem!

POETA

OUTROS CONTOS

«Espírito Carnavalesco», por Moacyr Scliar.

«Espírito Carnavalesco»
Carnaval/ Cândido Portinari

987- «ESPÍRITO CARNAVALESCO»

Cansado, ele dormia a sono solto, quando foi bruscamente despertado pela esposa, que o sacudia violentamente.

– Que aconteceu? – resmungou ele, ainda de olhos fechados.

– Não posso dormir. – queixou-se ela.

– Não pode dormir? E por quê?

– Por causa do barulho – ela, irritada: - Será possível que você não ouça?

Ele prestou atenção. De fato, havia barulho. O barulho de uma escola de samba ensaiando para o carnaval: pandeiros, tamborins… Não escutara antes por causa do sono pesado. O que não era o caso da mulher. Ela exigia providências.

– Mas o que quer você que eu faça? perguntou e, agora, também irritado.

– Quero que você vá lá e mande eles pararem com esse barulho.

– De jeito nenhum – disse ele. – Não sou fiscal, não sou policial. Eu não vou lá.
Virou-se para o lado, com o propósito de conciliar de novo o sono. O que a mulher não permitiria: logo estava a sacudi-lo de novo.

Ele acendeu a luz, sentou na cama:

– Escute, mulher. É carnaval, esta gente sempre ensaia no carnaval, e não vão parar o ensaio porque você não consegue dormir. É melhor você colocar tampões nos ouvidos e esquecer esta história.

Ela começou a chorar.

– Você não me ama – dizia, entre soluços: – Se você me amasse, iria lá e acabaria com a farra.

Com um suspiro, ele levantou-se da cama, vestiu-se e saiu, sem uma palavra.
Ela ficou à espera, imaginando que em dez ou quinze minutos a batucada cessaria.
Mas não cessava. Pior: o marido não voltava. Passou-se meia hora, passou-se uma hora: nada. Nem sinal dele.

E aí ela ficou nervosa. Será que tinha acontecido alguma coisa ao pobre homem? Será que – por causa dela – ele tinha se metido numa briga? Teria sido assassinado? Mas neste caso, por que continuava a batucada? Ou seria aquela gente tão insensível que continuava a orgia carnavalesca mesmo depois de ter matado um homem? Não aguentando mais, ela vestiu-se e foi até o terreiro da escola de samba, ali perto.

Não, o marido não tinha sido agredido e muito menos assassinado. Continuava vivo, e bem vivo: no meio de uma roda, ele sambava, animadíssimo.

Ela deu meia-volta e foi para casa. Convencida de que o espírito carnavalesco é imbatível e fala mais alto do que qualquer coisa.

Moacyr Scliar

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

CHICO BUARQUE - «Vai Passar»

Poet'anarquista

VAI PASSAR

Vai passar
Nessa avenida um samba popular
Cada paralelepípedo
Da velha cidade
Essa noite vai
Se arrepiar
Ao lembrar
Que aqui passaram sambas imortais
Que aqui sangraram pelos nossos pés
Que aqui sambaram nossos ancestrais

Num tempo
Página infeliz da nossa história
Passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações
Dormia
A nossa pátria mãe tão distraída
Sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas transações

Seus filhos
Erravam cegos pelo continente
Levavam pedras feito penitentes
Erguendo estranhas catedrais
E um dia, afinal
Tinham direito a uma alegria fugaz
Uma ofegante epidemia
Que se chamava carnaval
O carnaval, o carnaval
(Vai passar)

Palmas pra ala dos barões famintos
O bloco dos napoleões retintos
E os pigmeus do bulevar
Meu Deus, vem olhar
Vem ver de perto uma cidade a cantar
A evolução da liberdade
Até o dia clarear

Ai, que vida boa, olerê
Ai, que vida boa, olará
O estandarte do sanatório geral vai passar
Ai, que vida boa, olerê
Ai, que vida boa, olará
O estandarte do sanatório geral
Vai passar

Chico Buarque
Músico, Cantor e Compositor Brasileiro

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

SÁTIRA HOLLYWODESCA...

O Óscar Que Ninguém Quis
Sátira Hollywoodesca...

«O ÓSCAR QUE NINGUÉM QUIS»

Óscar que ninguém quis?
É só mais uma estatueta…
Prá Casa Branca foi eleita
A Trampa do vosso país!
Chega a mostarda ao nariz
Com o que calhou em sorte,
Grande América-do-Norte
Caiu num sono profundo…
Pergunta então o mundo,
Quem foi acordar a morte?

POETA

SÁTIRA CARNAVALESCA...

A Rainha do Carnaval
Sátira Carnavalesca...

«A RAINHA DO CARNAVAL»

Carnaval do A’Núncio
Rainha dos vilões,
Voaram milhões
Nas barbas do Abrúncio.
Ao jeito de prenúncio:
Entrudo é brincadeira,
A culpa morre solteira
Ninguém a quer desposar…
Offshores pra ensacar,
Muita folia e bandalheira!

POETA

OUTROS CONTOS

«Boas Noites!», por Machado de Assis.

«Boas Noites!»
Carnaval em São Fidélis

986- «BONS NOITES!»

Ei-lo que chega... Carnaval à porta!... Diabo! aí vão palavras que dão ideia de um começo de recitativo ao piano; mas outras posteriores mostram claramente que estou falando em prosa; e se prosa quer dizer falta de dinheiro (em cartaginês, está claro) então é que falei como um Cícero.

Carnaval à porta. Já lhe ouço os guizos e tambores. Aí vêm os carros das ideias... Felizes ideias, que durante três dias andais de carro! No resto do ano ides a pé, ao sol e à chuva, ou ficais no tinteiro, que é ainda o melhor dos abrigos. Mas lá chegam os três dias, quero dizer os dois, porque o de meio não conta; lá vêm, e agora e a vez de alugar a berlinda, sair e passear.

Nem isso, ai de mim, amigas, nem esse gozo particular, único cronológico, marcado, combinado e acertado, me é dado saborear este ano. Não falo por causa da febre amarela; essa vai baixando. As outras febres são apenas companheiras. . . Não; não é essa a causa.

Talvez não saibam que eu tinha uma ideia e um plano [...]

Mas a falta de dinheiro (prosa, em língua púnica) não me permite pôr esta ideia na rua. Sem dinheiro, sem ânimo de o pedir a alguém, e, com certeza, sem ânimo de o pagar, estou reduzido ao papel de espectador. Vou para a turbamulta das ruas e das janelas; perco-me no mar dos incógnitos.

Já alguém me aconselhou que fosse vestido de tabelião. Redargui que tabelião não traz ideia; e depois, não há diferença sensível entre o tabelião e o resto do universo. Disseram-me que, tanto há diferença, que chega a havê-la entre um tabelião e outro tabelião.

– Não leu o caso do tabelião que foi agora assassinado, não sei em que vila do interior? Foi assassinado diante de cinquenta pessoas, de dia e na rua, sem perturbação da ordem pública. Veja se há de nunca acontecer coisa igual ao Cantanheda...

– Mas que é que fez o tabelião assassinado?

– É o que a notícia não diz, nem importa saber. Fez ou não fez aquela escritura. Casou com a sobrinha de um dissidente político. [...] Vista-se você de tabelião da roça, com um tiro de garrucha varando-lhe as costelas.

– Mas como hei de significar o tiro?

– Isto agora é que é ideia; procure uma ideia. Há de haver uma ideia qualquer que significa um tiro. Leve à orelha uma pena, na mão uma escritura para mostrar que é tabelião; mas como é tabelião político, tem de exprimir a sua opinião política. E outra ideia Procure duas ideias, a da opinião e a do tiro.

Fiquei alvoroçado, o plano era melhor que o outro, mas esbarrava sempre na falta de dinheiro para a berlinda, e agora no tempo para arranjar as ideias. Estava nisto, quando o meu interlocutor me disse que ainda havia ideia melhor.

– Melhor?

– Vai ver: comemorar a tomada da Bastilha, antes de 14 de julho.

– Trivial.

– Vai ver se é trivial. Não se trata de reproduzir a Bastilha, o povo parisiense e o resto, não senhor. Trata-se de copiar São Fidélis...

– Copiar São Fidélis?

– O povo de São Fidélis tomou agora a cadeia, destruiu-a, sem ficar porta, nem janela, nem preso, e declarou que não recebe o subdelegado que para lá mandaram. Compreende bem, que esta reprodução de 1789, em ponto pequeno, cá pelo bairro é uma boa ideia.

– Sim, senhor, é ideia... Mas então tenho de escolher entre a morte pública do tabelião e a tomada da cadeia! Se eu empregasse as duas?

– Eram duas ideias.

– Com umas brochadas de anarquia social, mental, moral, não sei mais qual?

– Isso então é que era um cacho de ideias... Falta-lhe só a berlinda.

– Falta-me prosa, que é como os soldados de Aníbal chamavam ao dinheiro. Uba sacá prosa nanupacatu. Em português: "Falta dinheiro aos heróis de Cartago para acabar com os romanos. "Ao que respondia Aníbal: Tunga loló. Em português: Boas noites.

Machado de Assis

domingo, 26 de fevereiro de 2017

OUTROS CONTOS

«Elegia do Entrudo», conto poético por Luís d'Oliveira Guimarães.

(Ilustrações de Rafael Bordalo Pinheiro)

«Elegia do Entrudo»
Rafael Bordalo Pinheiro

985- «ELEGIA DO ENTRUDO»

Já Entrudo não sou! À' lama escura
Meu estro foi parar desfeito em vento…
Eu o mundo ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a sepultura!

Conheço agora quão triste figura
De mil maneiras fiz - que louco intento! -
Máscara!... Tivera algum merecimento
Se a linha da razão seguisse pura!

Eu me arrependo: a língua quase fria
Brade em alto pregão sobre a cidade
Que atrás de mim fantástica corria:

Já não sou quem fui... Nem sei que quero...
Rapazes do meu tempo! Ó' mocidade!
Vou para o Outro-Mundo - e lá os espero…

Pela deturpação.

Luís d’Oliveira Guimarães

Rafael Bordalo Pinheiro
Ilustrações/ Carnaval

sábado, 25 de fevereiro de 2017

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

CESÁRIA ÉVORA
«Carnaval de São Vicente»

Poet'anarquista

CARNAVAL DE SÃO VICENTE

J'a'm conchia São Vicente
Na sê ligria na sê sabura
Ma 'm ca pud fazê ideia
S'na carnaval era mas sab

São Vicente é um brasilin
Chei di ligria chei di cor
Ness três dia di loucura
Ca ten guerra ê carnaval
Ness morabeza sen igual

Nô ten un fistinha mas sossegod
Ca bô exitá bô podê entrá
Coque e bafa ca ta faltá
Hôje é dia di carnaval

São Vicente é um brasilin
Chei di ligria chei di cor
Ness três dia di loucura
Ca ten guerra ê carnaval
Ness morabeza sen igual

Cesária Évora
Cantora Cabo-Verdiana

OUTROS CONTOS

«Conto Curto de Carnaval», por Manoel Bandeira.

«Conto Curto de Carnaval»
Samba/ Mulatos de San Cristobal/ Di Cavalcanti

984- «CONTO CURTO DE CARNAVAL»

Havia uma crescente ideia fixa em partir para o litoral. Afinal, no litoral “os biquínis estão cada vez menores e o consumo de cerveja, cada vez, maior”. Salve jau! No litoral os shortinhos curtos desfilam deslumbrantemente por beiras de praia e praças iluminadas e sonorizadas. É Carnaval.

“Quero beber! Cantar asneiras
No esto brutal das bebedeiras
Que tudo emborca e faz um caco…
Evoé Baco! ”

Manoel Bandeira

SÁTIRA...

O Regresso da Múmia
Sátira...

O REGRESSO DA MÚMIA

A Múmia regressou
Ao ecrã da TV…
Ninguém sabe porquê,
Quinta-feira ressuscitou.
Não foi desta que falou…
Faltam os outros dias,
Se não houver anomalias
Entra muda e sai calada…
Tem a cabeça bloqueada
Com graves avarias!

POETA

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

SÁTIRA...

A Queixinhas
Sátira...

«A QUEIXINHAS»

- Você não é pra todos igual…
Vou queixar-me ao Martelo!
- Queixe-se ao Velho do Restelo,
Eu sou integralmente parcial!
- Eu afirmo que você é imparcial…
Como explica a indumentária?
- Não seja dromedária,
Sua queixinhas birrenta!
- Eu sou uma mulher isenta,
Totalmente apartidária… (?)

POETA

OUTROS CONTOS

«Restos do Carnaval», por Clarice Lispector.

«Restos do Carnaval»
Conto de Clarice Lispector

983- «RESTOS DO CARNAVAL»

Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.

No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.

E as máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.

Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça – eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável – e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.

Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com as quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.

Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga – talvez atendendo a meu apelo mudo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel – resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.

Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas – à ideia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua, morreríamos previamente de vergonha – mas ah! Deus nos ajudaria! Não choveria! Quanto ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola.

Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo, eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! Chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.

Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge – minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa – mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil – fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.

Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.

Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos, de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.

Clarice Lispector

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

JOSÉ AFONSO - «Ao Vivo no Coliseu»

Poet'anarquista

José Afonso
Músico, Poeta, Cantor e Compositor Português

SÁTIRA...

A Grande Descoberta
Sátira...

«A GRANDE DESCOBERTA»

Alô?... senhor presidente??
A NASA descobriu sete planetas,
E pelas silhuetas
Iguais à terra seguramente!
Agora a notícia deprimente:
Como primeira estampa
Seis têm um Donald Trampa,
Esse personagem execrável…
Só um deles é habitável,
Aos restantes já dei tampa!!

POETA

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

OUTROS CONTOS

«Episódio no Lago de Genebra», por Stefan Zweig.

«Episódio no Lago de Genebra»
Lago de Genebra/ Suíça

982- «EPISÓDIO NO LAGO DE GENEBRA»

Às margens do lago de Genebra, perto da pequena cidade Suíça de Villeneuve, numa noite de verão do ano de 1918, um pescador, que, remando, se adiantara pelo lago, avistou um objeto estranho a boiar no meio das águas, e, chegando mais perto, reconheceu uma embarcação feita de caibros ligados ligeiramente, que um homem nu, com gestos desajeitados, impelia com uma tabua a guisa de remo. Surpreso, o pescador aproximou-se, auxiliou o homem a passar para o seu bote, cobriu-lhe a nudez provisoriamente com redes e procurou falar com o infeliz, trêmulo de frio, que, tímido e esquivo, se agasalhava num canto da embarcação. Ele respondia num idioma estranho, do qual nenhuma palavra se assemelhava às do pescador . Este desistiu então de novos esforços, recolheu as redes e seguiu, com fortes golpes de remo, para a margem.

À medida que na luz difusa se divisava a margem, começou a clarear-se o rosto do homem nu, uma risada infantil desabrochou na curva barbada de sua boca larga, a mão se ergueu num gesto e o desgraçado balbuciou uma palavra, que soava como Rossiya, com entonação cada vez mais jubilosa, quanto mais perto a proa se acercava da margem. Finalmente o bote rangeu na areia da praia; os parentes femininos do pescador, que esperavam a presa molhada, se espalharam aos gritos, como outrora as criadas de Nausikaa, ao verem o homem nu na rede de peixe; aos poucos, atraídos pela estranha nova, reuniram-se os diversos homens da aldeia, aos quais se ajuntou breve, cheio de si, em plena atividade de sua função, o prefeito. Tinha como certo, deduzido de sua experiência do tempo de guerra e das varias horas de instrução, que devia ser um desertor, vindo a nado da margem francesa, e já se preparava para um interrogatório. Mas essa tentativa circunstancial perdeu breve em valor e dignidade, pelo fato de que o homem nu (a quem um dos moradores havia atirado um paletó e uma calça de brim) repetia cada vez mais medroso e inseguro a exclamação interrogativa “Rossiya?” “Rossiya?” Um pouco aborrecido pelo insucesso, o prefeito ordenou-lhe com gestos que não permitiam dúvida, que o seguisse. Cercado, aos gritos, pela entrementes desperta garotada, levaram o homem molhado de pés descalços, que tremia dentro do paletó e das calças, para, a casa de banho e lá o detiveram. Ele não se opunha, não dizia palavra; apenas os seus olhos claros escureceram com a decepção e os seus ombros altos encolheram-se como sob um golpe receado.

A nova da pescaria humana, entretanto, se espalhara até aos hotéis mais próximos, e atraídos pelo aprazível episódio, que interrompia a monotonia do dia, algumas senhoras e cavalheiros, vieram admirar a criatura selvagem. Uma dama presenteou-o com confeitos, que ele deixou de lado, desconfiado como um macaco; um senhor tirou um instantâneo fotográfico; todos tagarelavam e conversavam alegres em redor dele, até que, finalmente, o gerente de um dos grandes hotéis, que vivera muito tempo no estrangeiro, conhecendo vários idiomas, dirigiu ao atemorizado palavras em alemão, italiano, inglês, e finalmente, em russo. Mal ouviu os primeiros sons do seu idioma materno, o pobre homem ergueu-se de um pulo e um sorriso largo rasgou-lhe o rosto bondoso de uma orelha a outra e, repentinamente, seguro e franco, relatou toda a sua história. Era muito comprida e embrulhada nos seus detalhes, nem sempre compreensíveis ao seu intérprete casual, mas em linhas gerais o destino desse homem fora o seguinte:

Lutara na Rússia e fora, um belo dia, com milhares de outros, embarcado em comboios, viajando para muito longe; depois embarcado em navios, seguindo por mais tempo através de países onde fazia tanto calor, que, como ele se expressava, os ossos eram assados até amolecer a carne. Finalmente atracaram em um porto e foram, novamente, embarcados em comboios, e tiveram repentinamente que tomar uma colina, sobre a qual nada sabia, pois, logo ao princípio, fora atingido por um balaço na perna. Aos ouvintes, a quem o intérprete traduzia as perguntas e as respostas, era claro que este fugitivo pertencia àquela divisão russa na França, que foi mandada através de meio mundo, pela Sibéria e Vladivostok, até a frente francesa. Além de uma espécie de compaixão, ele provocou, ao mesmo tempo, a curiosidade de saber o que o teria conduzido a tentar esta fuga estranha. Com um sorriso meio ingênuo e meio astuto, o russo contou solicito que, recém-curado, havia perguntado aos enfermeiros onde ficava a Rússia, e eles lhe haviam indicado a direção, que ele pouco mais ou menos guardara pela posição do sol e das estrelas, e assim fugira secretamente, caminhando de noite e de dia, escondendo-se das patrulhas nas medas de feno. Durante dez dias alimentara-se de frutas e de pão esmolado, até que, finalmente, chegara a este lago. Agora suas declarações se tornavam menos compreensíveis; parecia evidente que ele, originário das proximidades do lago Baikal, imaginara que na margem oposta, cujas linhas movimentadas vira na luz do entardecer, deveria situar-se a Rússia. Em todo caso, havia roubado de uma choupana dois caibros, e sobre eles, deitado de barriga, com a ajuda de uma tábua à guisa de remo, atravessara o lago, onde o achara o pescador. A pergunta tímida com que terminara a sua exposição pouco clara, era se amanha já poderia estar em casa. Isso provocou, pela sua ingenuidade, forte gargalhada, que logo cedeu lugar a uma comovida compaixão. E cada um meteu entre as mãos do pobre, que olhava em torno, indeciso e desconsolado, algumas moedas, ou notas de banco.

Entretanto, chegava, após um entendimento telefônico com Montreux, um alto oficial da polícia, que, não com pouco esforço, anotou em protocolo o ocorrido. Não só o intérprete casual se revelara incompetente, mas tornava-se também evidente (e para um ocidental, incompreensível) a ignorância desse homem, cujo conhecimento de si próprio mal ultrapassava o do seu primeiro nome, Boris, e que de sua aldeia natal apenas tinha uma noção confusa: fora, com outros, servo do Duque de Hetschersky (ele dizia servo, se bem que há uma geração a casta tivesse sido abolida) e vivia distante cinquenta verstas do grande lago, com a mulher e três filhos. Então, começou a deliberação sobre o seu destino, enquanto ele, com o olhar apático e humilde, permanecia no meio dos contendores: uns opinavam que se devia envia-lo a legação russa, em Berna, mas outros receavam, dessa medida, um reenvio para a França; o oficial de polícia explicava todas as dificuldades da questão, se devia ser tratado como desertor ou como estrangeiro sem documentos; o escrivão do lugar afastou desde logo a possibilidade de eles poderem sustentar ou abrigar o estrangeiro. Um francês gritou, agitado, que não se fizesse tantas cerimônias com esse miserável desertor: que trabalhasse ou então fosse reenviado; duas mulheres objetaram violentamente que ele não era culpado de sua infelicidade e que era um crime tirarem as criaturas de suas terras e dos seus lares para enviá-las a países estrangeiros. Já ameaçava surgir desse motivo casual uma disputa política, quando, repentinamente, um senhor de idade, dinamarquês, intrometeu-se declarando com energia que pagaria o sustento do desconhecido por oito dias e que, entretanto, as autoridades a justassem com a legação uma solução qualquer que tanto satisfizesse aos desígnios oficiais como aos particulares.

Durante a discussão, cada vez mais agitada, o olhar esquivo se erguia, cada vez mais inquieto, e permanecia preso aos lábios do gerente, o único neste tumulto, a quem ele podia, tornar compreensível o seu destino. Parecia sentir vagamente o redemoinho que sua presença provocava, e ainda inconsciente quando diminuiu o barulho, ergueu implorante, nesse silêncio, as duas mãos para ele como as mulheres diante de um santo. O comovente desse gesto atingiu irresistivelmente a todos. O gerente adiantou-se cordialmente para ele e sossegou-o, dizendo não tivesse medo, pois poderia permanecer ali sem ser importunado, e pelos primeiros tempos, as suas despesas de hospedagem seriam custeadas.

O russo queria beijar-lhe a mão, ao que, porém, o outro se subtraiu, dando um passo para trás. Depois indicou-lhe a casa de um vizinho, uma pequena estalagem de aldeia, onde teria cama e alimento, e dizendo-lhe amavelmente mais algumas palavras carinhosas e tranquilizadoras, subiu outra vez à rua que levava ao hotel.

Imóvel, o fugitivo fitava-o fixamente e a medida que o único entendedor do seu idioma se afastava, escurecia-se-lhe o rosto, já desanuviado. Com olhares devoradores seguiu o que se afastava até lá em cima, no hotel, situado no alto, sem fazer caso das outras pessoas, que o observavam, admiradas ou a rir dos seus modos estranhos. Quando um deles o tocou compadecido, apontando para a estalagem, os seus pesados ombros como que se agacharam e de cabeça inclinada entrou pela porta. Abriram-lhe a sala comum. Ele encostou-se a mesa, sob a qual a criada depusera um copo de aguardente, como saudação, e ficou sentado aí toda a manha, imóvel e com os olhos turvos.

Incessantemente os garotos da aldeia espiavam pela janela e gritavam-lhe qualquer coisa — ele não erguia a cabeça. Os que entravam, olhavam curiosos; mas ele ficava imóvel, o olhar fixo na mesa, de costas vergadas, envergonhado e tímido. E quando, ao meio dia, na hora da refeição, uma turma de gente alegrava o compartimento com risadas, quando centenas de palavras, que o desconhecido não compreendia, esvoaçavam-lhe em torno, ele reconhecendo o horror de ser estranho, sentado surdo e mudo no meio do movimento geral, sentia as mãos lhe tremerem tanto que mal podia erguer a colher com a sopa. Subitamente uma grossa lagrima correu-lhe pela face, caindo na mesa. Acanhado, olhou em redor. Os outros o notaram, calaram abruptamente. Ele sentia vergonha: cada vez mais inclinava a cabeça pesada e desgrenhada sobre a madeira negra. Até ao anoitecer ficou sentado assim, as mãos pesadamente pousadas sobre a mesa. Gente ia e vinha mas ele não a sentia como os estranhos também não o sentiam, Todos o esqueciam e ninguém reparou que, ao escurecer, se ergueu repentinamente e, bronco como um animal, subiu o caminho para o hotel. Uma hora ou duas esteve parado a porta, com o gorro respeitosamente na mão, sem tocar pessoa com o olhar: finalmente, um dos moços de recado reparou nessa figura rara, que enraizara como um tronco de árvore, estarrecida e negra, diante da entrada cintilante de luzes do hotel, e chamou o gerente. Novamente um pequeno clarão nasceu no seu rosto sombrio, quando em seu idioma o saudaram.

– Que queres, Boris?, perguntou o bondoso gerente.

– Perdoa-me… balbuciou o fugitivo. Eu só queria saber… se posso ir para casa.

– Decerto, Boris, podes ir para casa, sorriu o interpelado.

– Já, amanhã?

Agora, o outro também se tornou sério, o sorriso desvaneceu-se no seu rosto, tão vivamente foram ditas estas palavras.

– Não, Boris... ainda não. Quando acabar a guerra..

– E quando? Quando acaba a guerra?

– Deus o sabe. Nós homens não o sabemos.

– E, então? Não posso ir antes?

– Não, Boris.

– É tão longe?

– Sim.

– Muitos dias ainda?

– Muitos dias.

– Irei mesmo assim, senhor! Sou forte. Eu não me canso.

– Mas tu não podes, Boris. Há mais uma fronteira no meio.

– Uma fronteira?

Ele olhou torvamente. A palavra lhe era estranha.

Depois disso, novamente, com rara tenacidade:

– Eu irei a nado.

– Não, Boris, isso não pode ser. Uma fronteira é um pais estranho. Os homens não te deixam passar.

– Mas eu não lhes faço nada! Joguei fora a minha carabina. Por que não me deixam ir para junto de minha mulher, se lhes peço pelo amor de Cristo?

O gerente tornou-se cada vez mais sério. Sentiu-se amargurado.

– Não, disse ele, não te deixarão passar, Boris. Os homens agora não atendem mais a palavra de Cristo.

– Mas que devo fazer, senhor? Não posso ficar aqui! Os homens aqui não me entendem e eu não os entendo também.

– Tu o aprenderás, Boris.

– Não, senhor — o russo inclinou a cabeça. — Eu não posso aprender nada. Só sei trabalhar no campo, fora isso não faço nada. Que devo fazer aqui? Eu quero ir para casa! Mostre-me o caminho.

– Agora não há caminho, Boris.

– Mas senhor, eles não me podem proibir de voltar para junto de minha mulher e meus filhos! Já não sou mais soldado!

– Eles te prendem, Boris.

– E o Czar ? perguntou repentinamente, tremulo de expectativa e respeito.

– O Czar não existe mais, Boris. Os homens o depuseram.

– O Czar não existe mais? E olhou para o outro estupefato. Um último clarão se apagou no seu olhar, depois disse abatido

– Não posso, pois, ir para casa?

– Ainda não. Temos que esperar, Boris.

– Muito?

– Não sei.

Cada vez mais sombrio tornou-se o rosto no escuro.

– Já esperei tanto tempo! Não posso esperar mais. Mostre-me o caminho. Quero tentá-lo.

– Não há caminho, Boris. Na fronteira te prendem. Fica aqui, pois encontraremos trabalho para ti.

– Os homens não me compreendem aqui, e eu não os compreendo — repetiu teimoso. Não posso viver aqui! Ajude-me senhor.

– Eu não posso, Boris.

– Ajude-me pelo amor de Cristo, senhor. Ajude-me, não o suporto mais.

– Não posso, Boris. Ninguém te pode ajudar agora.

Pararam mudos, um em frente do outro. Boris girava o gorro nas mãos.

– Por que me tiraram de casa? Disseram que eu tinha que defender a Rússia e o Czar. Mas a Rússia está longe daqui, e tu dizes o que fizeram ao Czar… como dizes ?

– Depuseram-no.

– Depuseram-no. (Sem compreender repetiu a palavra). Que devo fazer agora, senhor? Tenho que ir para casa. Meus filhos gritam por mim. Não posso viver aqui! Ajude-me, senhor! Ajude-me!

– Eu não posso, Boris.

– E ninguém pode ajudar-me?

– Agora, ninguém.

O russo abaixou ainda mais a cabeça, depois disse bruscamente com voz abafada: — Agradecido, senhor, e voltou-se.

Devagar, desceu pelo caminho. O gerente seguiu-o longo tempo com os olhos e admirou-se de que ele não fosse em direção da estalagem, mas sim dos degraus que dão para o lago. Soltou um profundo suspiro e entrou para cuidar do seu trabalho no hotel.

O acaso quis que o mesmo pescador encontrasse na manhã seguinte o cadáver nu do afogado. Ele tinha deposto cuidadosamente a calça, o gorro e o paletó presenteados na margem e entrara na água tal como dela saíra. Registou-se o acontecimento e como não se sabia o nome do desconhecido, foi colocada uma pequena e barata cruz de madeira na sua sepultura, uma dessas pequenas cruzes de destinos sem nome, de que a nossa Europa esta coberta de um lado a outro da superfície

Stefan Zweig

SÁTIRA...

Tiro ao Lado
Sátira...

«TIRO AO LADO»

- Porra!... matei uma codorniz!!
- E esperavas matar o quê?
- Então o amigo não lê
O que a imprensa diz?...
Mas afinal, vive em que país??...
Eu esperava caçar os passarões
Que roubaram dez mil milhões,
Para offshores no estrangeiro…
Gamaram todo o dinheiro
Esses grandes ladrões!!!

POETA

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

SÁTIRA...

O Imparcial
Sátira...

«O IMPARCIAL»

- Porque acha absurda
Uma nova comissão,
E à Caixa pôr questão?...
Que saiba, não é muda!
- A Assembleia está surda
Na quadra de Carnaval…
- Não creio ser imparcial,
Como acabo de constatar.
- Em SMS a confirmar...
A Geringonça de Portugal!

POETA

OUTROS CONTOS

«O Don Silencioso», por Mikhail Sholokhov.

«O Don Silencioso»
Romance de Mikhail Sholokhov

981- «O DON SILENCIOSO»

[Excertos]

- Cale-se, mujique!

- E os mujiques não são homens, como você?

- São mujiques, feitos de casca de árvore e recheados de mato.

Cerca de quatro dias mais tarde, os vagões vermelhos dos trens carregados de tropas levavam os regimentos de cossacos e suas baterias para a fronteira russo-austríaca.

"Guerra"…

Os vagões zumbiam de conversas e canções. Olhares inquisitivos e benevolentes saudavam os cossacos nas estações, e o povo contemplava as listras das calças dos soldados.

"Guerra…"

Mulheres acenavam com lenços, sorriam e atiravam cigarros e doces para os soldados. Uma vez, pouco antes que o trem chegasse a Voronej, um velho ferroviário enfiou a cabeça no vagão, onde estava Piotr Melekhov com mais vinte e nove camaradas e perguntou:

- Estão indo?

- Sim. Entre e venha connosco, avozinho - respondeu um dos cossacos.

- Meu rapaz... bois para o matadouro! - disse o velho, sacudindo a cabeça em tom de reprovação.

- Então você é um bolchevista? - perguntou.

- O nome não importa - respondeu Lagutin. - Não é uma questão de nomes, mas do que está certo. O povo quer os seus direitos, mas estes lhe são sempre negados.

- É óbvio que os bolchevistas estão ensinando você! Não perdeu tempo na companhia.

- Ah, capitão, é a própria vida que tem ensinado às pessoas pacientes, os bolchevistas apenas puseram fogo no pavio.

Estava completamente exausto devido à guerra. Queria virar as costas ao mundo incompreensível, tempestuoso, hostil, cheio de ódio. 

(Narração sobre Grigóri Melekhov ao voltar pra casa)

É uma vida estranha, Aleksei! Os homens caminham às apalpadelas, como se fossem cegos; juntam-se e se separam de novo, às vezes se espezinhando uns aos outros… Aqui estamos, vivendo à beira da morte, e só podemos nos perguntar selvaticamente por que tudo isso? Acho que não há nada mais terrível no mundo do que os seres humanos. Faça o que fizer, você não chegará ao fundo deles… 

Aqui estou eu a seu lado e não sei o que você está pensando e nunca soube, e também não sei que tipo de vida você leva. Você tampouco sabe sobre a minha vida… Talvez eu esteja querendo matá-lo agora, e aí está você me dando um biscoito, sem qualquer ideia do que estou pensando… As pessoas sabem pouco sobre si mesmas. 

(Micha Kochevoi)

 Não. Sou forte. Não pense que haja homens feitos de aço. Somos forjados de um só material. Na vida real não há um homem que não tema a batalha, assim como não há nenhum que possa matar pessoas sem carregar… sem se sentir moralmente arranhado. 

(Iliá Buntchuk para sua namorada Ana Pogudko)

Mikhail Sholokhov

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

MEIO-TERMO

Meio-Termo
[No comment]

MEIO-TERMO

A poesia é o que sobeja...
Falta o que a alma deseja.

Manel d' Sousa

OUTROS CONTOS

«Código Morse», conto poético por Manel d' Sousa.

«Código Morse»
Décima

980- «CÓDIGO MORSE»

Entrei eu sossegadinho
Numa casa de alterne…
Não sei se me governe
Com uma taça de vinho.
Encontrei lá o vizinho
Que se estava a babar,
Arripou-me ao chegar
E eu sem saber que fazer…
O melhor é esquecer,
A saliva há de parar!

Manel d' Sousa

SÁTIRA...

«O Defunto»
Sátira...

«O DEFUNTO»

- Centeio, amigo da onça…
(O homem parece que está
Politicamente numa má…)
Ainda o crânio desengonça!
- E gasosa para a geringonça?
- Mal ele pensa…
Telemóvel prá dispensa
E ele direito na vertical…
- Sorriso nos lábios angelical,
O povo nem nota a diferença!

POETA

OUTROS CONTOS

«Os Três Astronautas», por Umberto Eco.

«Os Três Astronautas»
Conto de Umberto Eco

979- «OS TRÊS ASTRONAUTAS»

Era uma vez a Terra.

E era uma vez Marte.

Estavam muito longe um do outro, no meio do céu, e ao redor havia milhões de planetas e galáxias.

Os homens que habitavam a Terra queriam chegar a Marte e aos outros planetas, mas eles estavam muito longe!

De qualquer maneira, começaram a trabalhar. Primeiro lançaram satélites que giravam dois dias ao redor da Terra e logo regressavam.

Depois lançaram foguetes que davam voltas ao redor da Terra, mas, ao invés de regressar, ao final fugiam da atracção terrestre e partiam para o espaço infinito.

No começo, nos foguetes, colocaram cachorros, mas os cachorros não sabiam falar, e através do rádio transmitiam só "au-au" . E os homens não podiam entender o que tinham visto nem onde tinham chegado.

Ao final encontraram homens valentes que quiseram ser astronautas. O astronauta era assim denominado porque partia para explorar os astros no cosmos, que dizer, o espaço infinito, com os planetas, as galáxias e tudo o que nos rodeia.

Os astronautas, ao partirem, ignoravam se poderiam regressar. Queriam conquistar as estrelas para que um dia todos pudessem viajar de um planeta a outro, porque a Terra havia-se tornado muito pequena e os homens cresciam diariamente.

Um belo dia partiram da Terra, saindo de três pontos diferentes, três foguetes.

No primeiro ia um americano, que assobiava muito alegre um trecho de jazz.

No segundo ia um russo, que cantava com uma voz grave: 'Volga, Volga' .

No terceiro ia um negro que sorria feliz, com os dentes muito brancos em sua cara negra. De facto, naqueles tempos, os habitantes da África, que finalmente eram livres, tinham-se demonstrado tão hábeis quanto os brancos para construir cidades, máquinas e, naturalmente, para ser cosmonautas.

Os três queriam chegar primeiro a Marte para demonstrar quem era o mais valente. O americano, com efeito, não gostava do russo e o russo não gostava do americano. E tudo porque o americano para dizer bom dia dizia "how do you do" e o russo dizia "zgpabctbyutge".

Por isso não se compreendiam e se achavam diferentes.

Os dois, além do mais, não queriam saber do negro porque ele tinha uma cor diferente.

Por isso não se compreendiam.

Como os três astronautas eram muito valentes, chegaram a Marte quase ao mesmo tempo.

Chegou a noite. Havia em torno deles um silêncio esquisito, e a Terra brilhava no céu como se fosse uma estrela longínqua.

Os astronautas se sentiam tristes e perdidos e o americano, no escuro, chamou a mãe dele.

Disse: "Mamie".

E o russo disse: "Mama".

E o negro disse: "Mbamba".

Mas logo compreenderam que estavam dizendo a mesma coisa e que tinham os mesmos sentimentos. Foi assim que sorriram entre si, aproximaram-se, juntos acenderam um bom foguinho, e cada um cantou canções de seu país. Então armaram-se de coragem e, enquanto esperavam o amanhecer, aprenderam a conhecer-se.

Por fim, fez-se o dia. Fazia muito frio. De repente, de um grupinho de árvores saiu um marciano. Era realmente horrível vê-lo! Era todo verde, tinha duas antenas no lugar das orelhas, uma tromba e seis braços.

Olhou para eles e disse: "Grrrr!"

Em seu idioma queria dizer: "Mãezinha querida! Quem são esses seres tão horríveis?"

Mas os terráqueos não o compreenderam e pensaram que seu grito era um rugido de guerra.

Foi assim que decidiram matá-lo com seus desintegradores atómicos.

Mas de repente, no meio do enorme frio do amanhecer, um passarinho marciano, que evidentemente tinha fugido do ninho, caiu no chão tremendo de frio e medo. Piava desesperado, mais ou menos como um passarinho terráqueo. Dava muita pena. O americano, o russo e o negro olharam para ele e não puderam conter uma lágrima de compaixão.

Nesse momento, aconteceu algo muito esquisito. Também o marciano aproximou-se do passarinho, olhou para ele e deixou escapar dois fios de fumaça da tromba. E os terráqueos, naquele instante, compreenderam que o marcianinho estava chorando, a sua maneira, como choram os marcianos..

Depois viram que se inclinava sobre o passarinho e o carregava entre seus seis braços tratando de aquecê-lo.

O negro, que em outros tempos tinha sido perseguido porque tinha pele negra e por isso mesmo sabia como são as coisas, disse a seus dois amigos terráqueos:

"Vocês viram? Pensávamos que este monstro era diferente de nós, mas ele também ama os animais, sabe comover-se, tem um coração e sem dúvida um cérebro! Vocês ainda pensam que temos que matá-lo?"

Não era necessário fazer tal pergunta.

Os terráqueos já haviam aprendido a lição. Duas pessoas serem diferentes não significa que elas devam ser inimigas.

Portanto, aproximaram-se do marciano e estenderam a mão. E ele, que tinha seis, deu a mão aos três ao mesmo tempo, enquanto fazia gestos de cumprimentos com as mãos que ficavam livres.

E apontando para a Terra, distante no céu, fez entender que desejava viajar até lá, para conhecer outros habitantes e estudar junto com eles a forma de fundar uma grande república espacial na qual todos se amassem e estivessem de acordo. Os terráqueos disseram que sim entusiasmados.

Haviam compreendido que, tanto na Terra como em outros planetas, cada um tem seus próprios costumes, sendo necessário somente compreender-se mutuamente.

Umberto Eco