quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

FUGA DO FORTE DE PENICHE

(Terceiro e último capítulo)

A Evasão da Fortaleza Prisão de Peniche
Fuga para a Liberdade

FUGA PARA A LIBERDADE - 3º CAPÍTULO

(Por Francisco Martins Rodrigues, um dos dez evadidos)

A fuga

O dia 3 Janeiro de 1960 começou normalmente no Pavilhão C do Forte de Peniche. Despejar os baldes, pequeno-almoço, almoço, recreio… As rotinas habituais. Mas mal disfarçávamos a expectativa ansiosa. A hora fora escolhida depois de uma observação aturada de meses. A seguir ao jantar, naquela época do ano já estava escuro e era quando o guarda ficava sozinho connosco no piso. O pavilhão, considerado de “alta segurança”, estava isolado dos restantes, o que facilitou a fuga. Mas nunca tínhamos garantias de que não acontecesse o imprevisto. Por qualquer razão imponderável, podia um guarda vir trazer uma ordem ao pavilhão e aí…

Pelas 7 horas da noite, acabado o jantar, o guarda Serrado apitou para nos levantarmos e regressar às celas. Em vez de se colocar ao fundo do corredor a observar a nossa entrada nas celas, como mandava o regulamento, vinha caminhando no meio de nós. Ultimamente, o abrandar das ordens rigorosas permitia coisas destas. Descuido imperdoável. De súbito, enrolou-se-lhe uma toalha no pescoço e, antes que pudesse gritar ou reagir, foi forçado a aspirar um pano embebido em clorofórmio. O frasco com clorofórmio fora passado nessa tarde para dentro de uma cela pelo guarda republicano. Cunhal, cuidadoso de que nada desse lugar a acusações de violência escusada, providenciara uma peça metálica especial para evitar o enrolamento da língua, que o poderia sufocar. Ampararam-no na queda. Eu já estava a correr para as celas, a ajudar o Cunhal a tirar os lençóis das camas, amarrá-los uns aos outros…

Fechámos nas suas celas os camaradas que tinham optado por não nos acompanhar. Fugir era escolher a clandestinidade e eles não a queriam: o Borges Coelho e os advogados Humberto Lopes, de Santarém, e Andrade, de Estarreja.

O guarda republicano, no seu passeio regulamentar, chegava junto da porta do piso. Lívido, viu a fila de presos agachados, à espera de vez: “Tantos? Então tinham-me dito que era só o Cunhal e o Chico Miguel! Estou desgraçado!”

Soube-se mais tarde que, em vésperas da fuga, o guarda, cabeça fraca, se aconselhara com um colega: tinham-lhe feito uma proposta, o que é que ele achava? E o outro tinha comentado em plena camarata, cheia de guardas republicanos: “Aqui o Zé Jorge, qualquer dia ainda vai ser um grande herói…” A coisa passou, ninguém mostrou curiosidade em saber porque é que ele iria ser um herói, mas o episódio caricato dá um retrato das debilidades do aparelho repressivo salazarista e também dos imponderáveis que podem deitar a perder a mais bem organizada evasão.

Assim, a um e um, lá  nos fomos escapulindo para debaixo do capote do guarda republicano, já não me lembro por que ordem, o Álvaro Cunhal, o Francisco Miguel, Joaquim Gomes, Guilherme Carvalho, Jaime Serra, Pedro Soares, Carlos Costa, Rogério de Carvalho, José Carlos, e eu próprio. O guarda ia fazendo o seu passeio normalmente, para o outro o ver do seu posto. Chegava ao pé do torreão, no escuro, deixava sair o preso debaixo do capote, voltava, vinha buscar outro.

Descer pelos lençóis foi fácil, passar o fosso, que estava seco, saltar o muro exterior, caminhar na semi--escuridão do terreiro, já na rua… Sensação extraordinária, “estou mesmo a andar na rua?” Dos três carros, o que me cabia estava na rua da igreja, pertíssimo. Ele lá estava. Entrámos sem olhar para quem conduzia, uns vizinhos olham curiosos aquele movimento anormal, o carro arranca.

A mudança fora tão brusca, a distância que parecia intransponível entre a prisão e a liberdade fora franqueada tão facilmente que causava vertigens. Mas tínhamos que nos manter alerta, ainda se podia perder tudo. O carro saiu da vila, o Carlos Costa e o Chico Miguel, à espreita, de pistola em punho, prontos a abrir caminho à força se fosse preciso. À medida que avançamos a caminho de Lisboa, aumenta a euforia. Na passagem em Loures, onde havia um posto da polícia de trânsito, uma última precaução. Saímos do carro, fomos a pé pelas ruas laterais, voltámos a apanhá-lo mais adiante. Agora sim, instala-se a certeza: já ninguém nos vai deter. Soubemos depois que tinha falhado o corte dos fios telefónicos em Peniche.

Diz a história oficial que as operações foram dirigidas pelo Dias Lourenço e o Pires Jorge. Eu ia jurar que nesse dia tinha lá estado o Júlio Fogaça e que o seu nome só foi riscado por causa do que lhe aconteceu depois.

Liberdade?

Calcula-se o choque dos guardas quando, às 9 da noite, foram render o colega e o encontraram amarrado e a dormir, com as portas das celas escancaradas. Descarregaram a fúria em cima dos três que tinham lá ficado. Por essa hora, estava eu a chegar a Lisboa. O carro deixou-me numa casa clandestina em Benfica, onde fui recebido pelo casal da casa e pelo “Montes”. Sem perda de tempo, meteram-me noutro carro, levaram-me para o meu destino, uma tipografia. As ordens eram para nos separarmos todos e nos mantermos escondidos, porque as polícias iam pôr-se em campo para recapturar os evadidos. Soubemos nos dias seguintes que as nossas fotografias foram distribuídas pelas esquadras de polícia em todo o país. Salazar ficara furioso pela inépcia dos carcereiros e queria a todo o custo apanhar algum de volta.

A minha vida em “liberdade”, por assim dizer, começou numa vivenda à Pontinha, onde com um casal e a sua filha de 12 anos fazíamos sem parar jornais e panfletos numa prensa manual. Para os vizinhos eu não podia existir, seria motivo de estranheza. Por isso, não podia pôr o nariz fora de casa, nem vir à janela, tinha que andar pela casa em meias, e falar baixinho. Foram 8 ou 9 meses de prisão rigorosa, bem mais rigorosa que a de Peniche, mas a produzir literatura contra os fascistas e a aperfeiçoar-me na arte de compositor-revisor-impressor, que já tinha iniciado uns anos antes. Que mais podia eu desejar?


Em fins desse ano voltei para tarefas organizativas, depois entrei em divergência com a direcção do partido, abandonei o PCP em Paris, voltei clandestino para Portugal, fui de novo preso, condenado a 19 anos e lá voltei para a mesma cadeia de Peniche. De lá saí novamente, pela porta desta vez, na madrugada de 27 de Abril de 1974.

Esta história acaba com um pormenor caricato. Na visita comemorativa dos 25 anos da fuga, em 6 de Janeiro de 1985, perante uma centena de visitantes do Forte, agora transformado em Museu da Resistência, o orador do PCP mencionou, além do guarda republicano, os nomes de nove fugitivos, esclarecendo que houvera “mais um”, cujo nome não merecia ser referido porque era um “traidor”. Já em 1981, na grande exposição comemorativa dos 60 anos do PCP, no Pavilhão dos Desportos, lá vinham os nomes dos nove fugitivos seguidos por umas comprometidas reticências. Assim, em castigo do meu “esquerdismo”, fui apagado da evasão de Peniche durante umas boas décadas, até que os aparatchiks do PCP percebessem o ridículo da coisa e desistissem de querer corrigir a história.
Fonte: DiárioLiberdade

1 comentário:

  1. A história não se pode apagar senhores do PCP. Devia servir de lição, mas nunca quiseram aprender com os erros do passado. E não foram poucos!

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