sexta-feira, 8 de julho de 2011

«CONTOS DO NASCER DA TERRA»

Mia Couto
Escritor Moçambicano

XIX CONTO - «Velho com jardim nas traseiras do tempo»

«Homem Velho»
Picasso

VELHO COM JARDIM NAS TRASEIRAS DO TEMPO

No Jardim Dona Berta há um banco. O único que resta. Os outros foram arrancados, vertidos em tábua avulsa para finalidades de lenha. Nesse restante banco mora um velho. Cada noite, os dois se encostam mutuamente, assento e homem, madeira e carne. Dizem que o velho já tem a pele às listas, formatadas no molde das tábuas, seu externo esqueleto. O idoso recebeu um nome: Vlademiro. Ganhou o nome da avenida que ali passa, rasando-lhe a solidão: a Vladimir Lenine.
Soube hoje que vão retirar o banco para ali instalar um edifício bancário. A noticia me desabou: o jardinzinho era o último mundo do meu amigo, seu derradeiro refúgio. Decidi visitar Vlademiro, em missão de coração.
- “Triste? Quem disse?”
Espanto meu: o homem estava eufórico com a noticia. Que um banco, desses das finanças, todo estabelecimentado, era um valor maior. Já lhe haviam dito da sua dimensão, dava bem para ele dormir mais seu bicho de estimação. E mesmo quem sabe ele encontrasse emprego lá? Nem que fosse nos canteiros em volta. Afinal, ele transitava de seu banco de jardim para um jardim de banco.
- “Ando de banco para Banco”.
Risada triste, descolorida. Não tardaria a escurecer. Quando baixasse a noite, Vlademiro se atafundaria em bebida, restos deixados em garrafas. Já bêbado ele atravessaria a noite, a modos de caranguejo. Do outro lado da avenida estão as putas. As prostiputas, como ele chama. Conhece-as a todas pelos nomes. Quando não tem clientes elas se adentram pelo jardim e sentam junto dele. Vlademiro lhes conta suas aldrabices e elas tomam a baboseira dele por cantos de embalar. Às vezes, escuta as nocturnas menininhas gritar. Alguém lhes bate. O velho, impotente, se afunda entre os braços, interdito aos pedidos de socorro enquanto pede contas a Deus.
- “Deus está bom de mais, já não castiga ninguém”.
Vlademiro foi ganhando familiaridades com o todo-potente. Me admira esse tu-cá-tu-lá com o divino. Vlademiro já foi um beato, todo e totalmente. Mas o velho tem explicação: à medida que envelhecemos vamos entrando em intimidades com o sagrado. É que vamos abatendo no medo. Quanto mais sabemos menos cremos? Ele não sabe, nem crê. Às vezes até se pergunta:
- “Deus ficou ateu?”
Será que o velho vive isento de medos? Assim, sozinho, sem morada própria. Ele me contesta, neste ponto:
- “Morada própria? Alguém tem morada mais própria?”
Às vezes, doente, sente a morte rondar o jardim. Mas Vlademiro sabe de truques, troca as voltas àquela que o vem levar. Mesmo batendo o dente, febrilhante, ele canta, voz trémula, faz conta que é mulher. As mulheres, diz, demoram mais para morrer.
- “A morte gosta muito de ouvir cantar. Se distrai de mim e dança”.
E assim em jogo de desagarra-esconde. Até que, um dia, a morte se adiante e cante primeiro. Mas ela terá que insistir para o de aninhar. Vlademiro está bem acolchoado no banco. E clama que ainda não tem idade. Velhos são aqueles que não visitam as suas próprias variadas idades.
No enquanto, Vlademiro vai dormindo leve e pouco. Despertador dele é um sapo. Dorme com o batráquio amarrado pela perna. E adianta, sério: o bicho é amarrado apenas para impedimento de voagem.
- “Sapo não voa porque deixou entrar água no coração”.
Agora, tudo vai terminar. Vão demolir o jardinzinho, a cidade vai ficar mais urbana, menos humana. Esse é o motivo da minha visita ao velho. Regresso ao que ali me levou:
- “Diga-me, sobre isto do banco: você está mesmo contente?”
Vlademiro demora. Está procurando a melhor das verdades. O riso esvanece no rosto.
- “Tem razão. Esta minha alegria é mentira.
- “Porquê, então, você faz de conta?
- “Nunca eu lhe falei de minha falecida?”
Acenei que não. O velho me conta a história de sua mulher que morreu, em lentidão de sofrimento. Doença pastosa, carcomedora. Ele todo o dia se empalhaçava frente a ela, fazia graças para espantar desgraças. A mulher ria, quem sabe com pena da bondade do homem. De noite, quando ela dormia é que ele chorava, desamparado, doido-doído.
- “É como agora: só choro quando o jardim já dormiu”...
Meu braço fala sobre o seu ombro. É adeus. Regresso de mim para um abandono maior. Atrás, fica Vlademiro, a avenida e um jardim onde resta um banco. 
O último banco de jardim.

Mia Couto
Até prá semana...
Poet'anarquista

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