sexta-feira, 14 de outubro de 2011

«CONTOS DO NASCER DA TERRA»

Mia Couto
Escritor Moçambicano

XXXIII CONTO - «O despertar de Jaimão»

«Amante Despertar»
Aída Emart

O DESPERTAR DE JAIMÃO

Ouviu a voz da mulher gotejando. Como se estivesse submerso num tanque de água
e as palavras dela fossem caindo, lágrimas da lua.
- “Graças a Deus, você acordou”.
Jaimão não percebeu o motivo da fala de Elvira. Olhou-se no corpo, horizontal. Os pés, de pé, todos despidos. Se recordava, em cacos de memória. Deitou-se foi num dia, longe.
- “Não deitei calçado, mulher?
- “Deitou, sim”.
Então porquê a ausência dos sapatos? Elvira explicou: tiraram enquanto ele dormia. Foi ideia do vizinho Raimundo: ele sabia que os mortos falam com os dedos dos pés. Essa é maneira de conversarem com os vivos. “Sim, o vizinho disse assim, Jaimão. Tirámos seus sapatos quando já pensávamos que não acordava mais. Você, Jaimão, é o pai mais novo dos meus filhos, você dormiu quinze dias, de fio em novelo. Juro, mando, quinze dias de tempo. Até já pensávamos você tinha chegado ao fim, parado de doença falecível”.
- “Qual dia é hoje?
- “O dia não interessa”, respondeu Elvira, “o que importa é que você acordou”. Jaimão se ergueu no leito, sentou-se com custosos gemidos. “Mineiro que fui, tantos anos, me habituei a descer lá nas funduras, mais fundo que os subterrâneos. Desta vez, Elvira, escavei-me fundo de mais. Demorei foi a chegar à tona do mundo”.
- “Deixa ver seus olhos, Elvira. É que quase não lembro deles”.
Elvira se postou perante o recém-regressado. Jaimão passeou saudades pelo rosto da
mulher. Mas logo ele pousou o olhar no chão.
- “Sonhei que você tinha saído com outro.
- “Com outro?”
O despertado tossiu, saltaram-lhe sangues de dentro. Tentou esconder o vermelho nos lençóis. “Deixa que eu limpo”, sossegou a mulher. Ele desviou-se da intenção dela. Mas ela insistiu:
- “Homem não deve mexer em sangue. Só a mulher.
- “E porquê?
- “Em vocês, homens, o sangue anda junto com a morte.
- “Você fala coisa que nem sabe.
- “A mulher é que pega no sangue e faz nascer uma outra vida.
- “Conversa redonda, Elvira. Mas me diga uma coisa, mulher: todo esse tempo você
não chamou ajuda de ninguém?
- “Ninguém.
- “Mas então o satanhoco do Raimundo não veio me ver, nesse meu estado?”
Sim, ela chamara Raimundo, o vizinho. Isto é, não é bem que chamara. Apenas mostrou ponta de chamamento. “Que eu, marido, não gosto de falar fora assuntos de dentro. No início ele recusou vir. Raimundo até que falou, rindo, assim”:
- “Doente? Isso é manha dele. Eu desautentico esse seu marido, Dona Elvira. O gajo
é mestre da preguiça, lhe conheço desde-desde. O sacana só está fingir do sono, mais nada.
- “O sacana? Raimundo me apelidou mesmo assim?”
Jaimão não cabia em si. “Conta mais, mulher, quero saber bem desse Raimiudinho”.
- “Mas, marido, nem imagina o seu amigo quem é. Não foi que ele me aproveitou?
- “Lhe aproveitou, como?
- “Sim, ele me fez adiantamentos. Que eu era bonita de mais valer, devia era
aproveitar o seu adormecimento.
- “Ai, sim? Raimundo disse isso? Vai ver, traidor. Lhe despromovo, filho de uma
quinhenta, lhe desconto no retroactivo.
- “Foi nesse momento que você, marido, começou a mexer os dedos dos pés. O Raimundo se debruçou todo para assistir ao seu dedilhar. Você movimentava e ele lia seus dedos.- “Não quero ouvir mais essa história, mulher. Chama-me esse sacana. Agora mesmo”.
Elvira sai para ir chamar Raimundo. O vizinho não demora a chegar. Na soleira da porta trocam palavras, ele e a dona da casa. Segredam-se:
- “Você já lhe disse, Elvira?
- “Lhe disse o quê?
- “Que ele vai morrer.
- “Eu não sei como falar essas coisas”...
Do seu leito, o despertado grita: “que fazem vocês aí, aos segredinhos? Não me diga você está escadear na minha mulher?” Elvira se chega ao leito do moribundo, festeja-lhe a fronte, deitando-lhe ternuras. O vizinho também se aproxima, mãos cruzadas no ventre, sinal do respeito. O recém-dormido fala:
- “Então Raimiúdo, eu te mandei estudar, tu és quase da família. E agora me fazes assim de mim, teu pai hierárquico?
- “Fiz o quê, vizinho?
- “Me redemoinhas na mulher. Diga, sinceramente, estamos de homem para homem.
- “Pensava que você já não acordava mais. Mas foi por causa do que você falou.
- “Falei o quê, seu aldrabão?
- “Disse para eu tomar conta das suas heranças... incluindo ela.
- “Mentira, satanhoco!
- “Falou, juro, falou com os dedos dos pés”...
O grande Jaimão espumava as raivas. “Trabalhei anos, deixei meus pulmões nas minas do John. Onde estão meus randes, onde mexeram minhas poupanças?” Súbito, em sua mão se acendeu um brilho de faca. “Respeito, Raimundo, ainda lhe vou naifar essas fuças todas. Não estudou o respeito, lá na escola que lhe mandei? Mas com gente igual a você, não se gasta palavra. Com você a gente se explica com lamina. Daí o motivo da bala,a razão da catana”.
- “Estou pedir grande desculpa, Jaimão.
- “Sabe qual é o castigo? Sabe, não é?”
Enquanto perguntava ia raspando a barriga da faca na pedra do chão. O outro se placava de encontro à parede, milimétrico. “A vida, caro vizinho, a vida é que é muito mortífera”.
- “Não me mate, Jaimão!”
O outro prosseguia com esmero a afiação da lamina. Levantava o punhal, examinava-o à contraluz. Vistoriava o instrumento da punição. Demorava-se só para aumentar o sofrimento do outro? Ou, de contrária maneira: muito tacto, pouco acto? Raimundo, de
joelhos, implorava. Mas Jaimão prosseguia ameaça:
- “Eu vou-lhe deseliminar. Ou você pensa que sou um papagago?”
De repente, o vizinho atrevido se reatreveu e, aos gritos, desatou a arguir:
- “Você, Jaimão, você é que vai morrer de castigo dos xicuembos.
- “Eu?
- “Sim, morrer e de vez. Então, não se lembra? Você estava morto, falou-me, deu-me
as devidas ordens. Agora queria que eu não cumprisse? Sim, não conhece a tradição?
Pedido de morto é ordem.
Jaimão ainda tentou um golpe. A faca lhe saltou da mão, subiu pelos ares mas não
tombou. Estranhamente ficou volteando, em infindável remoinho.
De repente, o Jaimão sentiu um sono pesado, maior que morte. “Escute, Raimundo,vou dormir, agora. Depois, acordo e lhe mato”. E tombou, pesadelento. “Que chão é este, que poeira, que cheiro? Onde estou, afinal? Este escuro em que penetro não é a mina, essa fundura onde me infernei tantos anos? Se estou nas galerias como é que Elvira está atravessando o quarto e se atira nos braços de Raimundo? Se me estou obscurecendo porque motivo Raimundo me está cobrindo meus pés com essa capulana? E porquê esse pano me aparece como se fosse terra, me pesando mais que o inteiro planeta?”

Mia Couto
Até prá semana...
Poet'anarquista

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