«Esta é a segunda narrativa das três que fazem parte da “Trilogia do Guadiana”.
«Garrafa com Manuscritos»
Encontrada em Açude no Guadiana
Lembramos que estes escritos foram encontrados dentro de uma
garrafa por um pescador do rio, Maurício de seu nome, em 1990. A garrafa estava
encalhada num açude de azenha. Os manuscritos estavam em língua castelhana e
não vinham assinados. Os títulos e a tradução são da minha responsabilidade.»
Eveline Sambraz
BADAJOZ
Quando Rufino Potra, em Madrid, chegou à estação do Levante,
naquela manhã de Abril de 1936, tinha acabado de chegar o comboio de Valência.
Ia esperar Largo Maltese, um amigo doutro amigo, a quem ele tinha prometido
ajudar na busca dum mapa antigo que estaria na biblioteca municipal de Badajoz.
Esse mapa, por absoluto acaso do destino, fora parar a essa biblioteca por via
da herança de um antigo navegador do século XIX que, depois de passar grande
parte da sua vida nas colónias espanholas da América Central, acabara os seus
dias em Badajoz, legando à cidade todo o seu espólio. Esse espólio estaria
ainda por classificar e jazia há dezenas de anos nas caves do magnífico
edifício que albergava a biblioteca municipal. O amigo de Largo Maltese, também
amigo de Rufino, sabendo que este era natural de Cheles e que tinha feito os
estudos preparatórios em Badajoz, conhecendo a cidade muito bem, não achara
melhor solução que entregar-lhe o recém chegado.
«Comboio»
Hugo Pratt
A Madrid de 1936 fervilhava de vida e boatos. A vitória da
Frente Popular dois meses antes, em eleições muito disputadas, tinha dado à
capital espanhola um movimento inusitado. Havia sempre muita gente a chegar,
muita gente a partir e os comboios, apesar dos tradicionais atrasos dos
caminhos de ferro espanhóis, andavam sempre apinhados. Excepcionalmente, a
composição vinda de Valência tinha chegado dentro do horário. Foi preciso
esperar um bom pedaço de tempo antes que se desfizesse a confusão dos que
chegavam e dos que partiam, entre os gritos dos bagageiros que ofereciam os
seus serviços e o resfolgar das locomotivas.
«Corto Maltese»
Hugo Pratt
Quando aquela balbúrdia acalmou, Rufino, vislumbrou ao fundo
do cais um homem que nunca mais esqueceria. Não tanto pelo aspecto físico, mas
sobretudo pelos problemas porque iriam passar juntos nos próximos dias. Era um
homem alto, fisicamente bem constituído, muito moreno e exibia um farto bigode
que lhe caía aos cantos da boca. As feições pareciam indicar que era mestiço,
mesmo que a mistura de sangues se tivesse dado há várias gerações. A verdade é
que os lábios cheios e o cabelo anelado, embora longo e caído sobre os ombros,
indiciavam a presença de antepassados negros na sua família. Estava vestido
como os marinheiros sempre se vestem em terra: Calças largas, botas de couro
muito flexível, grossa camisola de malha com gola alta e casacão azul muito
escuro. Ao ombro, como bagagem, trazia um grande saco de lona.
Hugo Pratt
Vale a pena falar um pouco mais deste homem já que a sua
participação nesta narrativa será de muita importância. Cidadão espanhol, tinha
nascido em Cuba no fim século dezanove, quando aquela ilha ainda era uma
colónia espanhola. A guerra hispano-americana apanhara-o ainda criança e
mudara-se com a família para o México no início do século vinte. Aí, tivera uma
vida aventurosa, sempre tendo o mar como cenário. O mar das Caraíbas, mais
propriamente. Vinha em busca do tal mapa porque nele estaria assinalada a
localização de um tesouro escondido pelos espanhóis quando estes ainda
dominavam o México. Um aventureiro, como facilmente se vê. Irmão, ou meio
irmão, segundo Rufino julgava saber, de Corto Maltese, outro aventureiro.
«Corto Maltese»
Hugo Pratt
Quando se encontraram frente a frente e Rufino se
apresentou, trocaram um vigoroso aperto de mão, tendo o recém chegado informado
que tinha quarto reservado num hotel do centro da cidade, mas que apenas
tencionava demorar-se em Madrid o tempo estritamente necessário. Tinha
igualmente reservado um automóvel e queria partir para Badajoz o mais
rapidamente possível. O hotel, um dos melhores da cidade, reconheceu Rufino,
tinha realmente um quarto reservado e um automóvel pronto a partir. Combinaram
partir no dia seguinte mal o sol nascesse. Também se ajustou a dormida de
Rufino no hotel para evitar demoras de última hora. Parecia não faltar dinheiro
nos bolsos do visitante.
Hugo Pratt
SOULCONCIOUS
La Victoria del Frente Popular Español
«Elecciones Demócráticas del 16 de Febrero de 1936»
Poet'anarqquista
Convém, para melhor se entender o que vem a seguir, dar uma explicação do ambiente que se vivia em Madrid por essa época. Os espanhóis tinham ido às urnas no dia 6 de Fevereiro passado, Domingo de Carnaval. As eleições tinham sido ganhas pela Frente Popular que, entretanto, já tinha formado governo. O primeiro-ministro, don Manuel Azaña, líder do partido republicano, desdobrava-se em esforços, não só para dar um novo rumo ao país, como para harmonizar as posições dos partidos de esquerda que compunham a coligação. Os vários partidos das direitas, que não aceitavam a derrota eleitoral e conspiravam abertamente contra o governo, todos os dias pediam a intervenção dos militares. Os tiroteios entre os falangistas, já apostados numa guerra civil, e as várias orientações de esquerda, eram diários. A cidade fervilhava de boatos sobre assassinatos políticos e levantamentos militares. Todos os quartéis de Madrid estavam de prevenção. O clima social e político da capital de Espanha era de cortar à faca. Dizia-se que os partidos das direitas estavam a armar os seus militantes e que estaria iminente um golpe de estado contra a República.
«Corto Maltese»
Hugo Pratt
Foi esta cidade que os nossos dois conhecidos deixaram para
trás naquele fim de Abril quando tomaram o caminho de Badajoz. Ao fim do dia,
já instalados nesta cidade da Extremadura espanhola, recolheram cedo à pensão
onde se hospedaram, pois tencionavam começar a procurar o mapa logo pela manhã.
Munidos das respectivas autorizações do Ayuntamiento da cidade, onde Largo
Maltese se apresentou como historiador de assuntos relacionados com as antigas
colónias de Espanha, começaram a vasculhar os caixotes do espólio a que já
fizemos referência. Não encontraram nada. Do mapa, nem sombra. Por mais que uma
vez passaram a pente fino todo o espólio, mas sem qualquer resultado positivo.
Ainda falaram com o responsável da biblioteca que, muito assustado e sem motivo
aparente para tanta agitação, os informou que os caixotes estavam naquela cave
há mais de cinquenta anos sem nunca terem sido abertos.
Ilustração de Hugo Pratt
Desanimado mas conformado com o resultado da pesquisa, Largo
Maltese disse a Rufino que teria que continuar a busca noutros lugares, pois
tinha a certeza que o mapa existia. E o tesouro, por suposto, também. E ele,
agora mais do que nunca, estava disposto a deitar-lhe a mão. Fariam uma última
tentativa no dia seguinte. Depois, fosse qual fosse o resultado, regressariam a
Madrid. No dia seguinte voltaram a passar em revista todo o espólio, chegando à
mesma conclusão: O mapa não se encontrava ali.
Hugo Pratt
Foi nessa altura que repararam em vários outros caixotes que
também se encontravam na cave, embora um pouco afastados daqueles que lhes tinham
sido indicados como sendo os que procuravam. Os caixotes em causa pareciam em
melhor estado de conservação que os anteriores, decerto não se encontravam
naquela cave há tanto tempo. Rufino, que estava muito desiludido com o
resultado da busca, por raiva e descargo de consciência, meteu a alavanca às
tábuas e retirou a tampa. Surpreendido, verificou que o caixote estava cheio de
metralhadoras e carregadores de munições. As armas eram novas e de modelo
relativamente recente. Depois de chamar Largo Maltese, que se encontrava junto
dos caixotes do espólio que os tinha levado a Badajoz, procurando ainda no seu
interior, abriram os restantes caixotes e confirmaram aquilo que já lhes
parecia óbvio: Todos continham o mesmo tipo de armas e munições.
Hugo Pratt
Quando saíram da biblioteca foram de imediato para o quartel
do comando militar da cidade e falaram com o responsável sobre o seu achado.
Ainda se demoraram mais dois dias na cidade. O suficiente para saberem que
aquelas armas estavam a entrar clandestinamente em Badajoz, vindas de Portugal,
e se destinavam a armar os militantes falangistas. Apenas esperavam que se
desse o levantamento militar de que todos falavam.
O levantamento militar deu-se em 17 de Julho de 1936.
Quanto aos nossos dois intervenientes, Largo Maltese e
Rufino Potra, depois de se despedirem em Madrid, no dia 4 de Maio de 1936,
nunca mais se encontraram ou souberam um do outro.
Hugo Pratt
Rufino Potra nunca soube se Largo Maltese chegou a encontrar
o tesouro que buscava. E Largo Maltese nunca teve conhecimento dos trabalhos de
Rufino Potra durante a Guerra Civil Espanhola, que se iniciou, precisamente, em
17 de Julho de 1936.
De autor desconhecido
Maio de 1990
Com tradução do espanhol de Eveline Sambraz
Com tradução do espanhol de Eveline Sambraz
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