Continuação de «Um Conto», de Amadeus Saraband, com a publicação do 2º capítulo. Recordo que a obra do autor é de ficção, e que qualquer semelhança com pessoas ou situações da vida real, será pura coincidência. Falemos do principal personagem desta história - o alentejano Rufino José Potra e suas vivências, que certo dia partiu para terras de África onde acabou por constituir vida e família. Anos mais tarde regressou à sua terra natal, uma pacata vila alentejana não muito distante da vizinha Espanha. Pode ler aqui- «UM
CONTO», POR AMADEUS SARABAND», primeiro de quatro capítulos que teve publicação no dia 18 de Agosto de 2013. Boas leituras!
Poet'anarquista
«UM CONTO», por Amadeus Saraband
2º capítulo
O que verdadeiramente queremos
contar – as andanças de um alentejano por outras paragens – começa aqui.
Aos vinte e três anos o Rufino era,
como muitos outros rapazes dessa idade, um pouco irreflectido e com muito
sangue na guelra. Não deixava que lhe pusessem a pata em cima e, por dá cá
aquela palha, arranjava um sarilho de todo o tamanho. Já se vira envolvido
nalgumas boas brigas e até se dizia que não era preciso muito para o fazer sair
do sério. Os que o conheciam melhor, os que com ele mais de perto lidavam,
diziam que era o feitio do pai a vir ao de cima e o fazia destemperar.
Rufino, envolvido numa Rixa
«N’golo», aguarela de Neves e
Sousa
Todavia, espantava toda a gente com
a assiduidade com que frequentava a igreja.
Ainda em tempo de sua mãe, antes de
começar a correr a região, trabalhando aqui e ali, fizera todas as comunhões,
crismas e catequeses, revelando uma grande devoção, sobretudo por altura das
festas religiosas, transportando os andores e os pendões, quando em dias de procissão.
Tinha, até, opas de propriedade pessoal, que usava consoante o tipo de festa
religiosa em que participava.
Não se lhe conheceram muitas
namoradas, e aquelas que teve, quando os namoros acabavam, não lhe ficavam a
querer mal.
No geral, era um rapaz respeitado,
pese embora a propensão para não levar o trabalho a muito sério. Não que fosse
madraço. Simplesmente, não coalhava emprego.
Resta acrescentar que era um homem
muito bem posto, alto, ombros largos e feições correctas, tendo até algumas
preocupações na forma como se vestia. Outra herança do pai.
Era este o homem que se apresentou
a seu tio na cidade de Luanda, pelos finais de 1944.
O Tio de Rufino Potra
«Camões», por Neves e Sousa
Este, de seu nome Rufino Potra, tal
como o sobrinho, tinha sido dos primeiros comerciantes de Luanda a compreender
o potencial da cidade, e rapidamente se metera nos mais diversos negócios; para
além do estabelecimento que já referimos, tinha negócios de importação e
exportação, nomeadamente de vinhos e bacalhau, assim como de óleos alimentares
dos mais diversos tipos.
O tio de Rufino, que nunca casou
nem tinha qualquer formação académica, era, porém, muito astuto nos negócios, e
quando enriqueceu, sentindo-se velho e doente, cansado e muito só, prestou todo
o apoio ao sobrinho na administração da sua já larga fortuna, antes de se
retirar, definitivamente, para um velho casarão colonial que possuía no bairro
das Ingombotas.
Embora vigiado de muito perto pelo
tio, conseguiu ganhar-lhe a confiança, e começou a dinamizar os negócios da
empresa, ampliando-os muito rapidamente.
Foi nessa altura que conheceu a Ana
Milongo.
Ana Milongo
«Mulher Baluba», por Neves de Sousa
Como já dissemos, o Rufino era
muito religioso e todos os domingos assistia à missa.
Começou por reparar naquela
rapariga negra, alta e desenvolta, com porte atlético, que ocupava sempre um
dos lugares mais perto do altar. Reparou, também, que era uma mulher muito
bonita, elegante, com um cabelo estilo “afro”, do tipo que, muitos anos mais
tarde, viria a ser popularizado por Ângela Davis, outra negra, que do outro
lado do Atlântico, nos Estados Unidos da América, viria a dar muito que falar. As pernas altas, cobertas quase até
aos pés por um vestido muito sóbrio. Um chapéu largo, do qual pendia um véu,
escondia-lhe o rosto quase por completo.
Aquela jovem mulher passou a
constituir uma obsessão para ele.
Pese embora a força da sua fé
católica não lhe exigir tanto, passou a frequentar a igreja todos os dias, pois
descobrira que ela todas as manhãs ia à primeira missa. E como quem está
interessado sempre vai descobrindo mais coisas – basta ir fazendo perguntas – conseguiu
saber que era sobrinha do sacerdote responsável pela paróquia; que pertencia a
uma família católica, da classe média negra de Luanda, se este termo se pode
utilizar para definir a situação social que nessa altura se vivia na capital da
colónia.
Ela, soube ele mais tarde, também
reparara naquele homem que, todos os dias, marcava presença na primeira missa
da manhã.
Um dia chegaram à fala.
Rufino Potra e Ana Milongo perto da Igreja
«Igreja de N.S. do Cabo - Luanda»
Aguarela de Neves e Sousa
Quando ela saiu da igreja,
acompanhada pelo tio, sacerdote, como já dissemos, ele, muito desembaraçado,
disse-lhe que ali ia diariamente porque a sua fé isso lhe ordenava, mas que a
presença dela na igreja, também diariamente, não lhe era indiferente. E com o
devido respeito lhe perguntava, na presença do tio, que muito considerava, se
estaria disposta a falar com ele a fim de se conhecerem melhor. Pedindo
desculpa por isso, também lhe disse que já tirara informações da família dela,
porque Luanda, afinal, era por essa época apenas uma grande uma aldeia. Na sua
posição, precisava de uma mulher a seu lado, precisava de constituir família e
começava a fazer-se tarde para casar, estando disposto a dar todas as
explicações que ela, ou a família dela, achassem por bem pedir-lhe. Assim mesmo. Tudo de rajada. E que
não ficassem dúvidas sobre as suas intenções.
Tio e sobrinha ficaram atónitos com
aquele palavreado.
Ela, levantando o véu que lhe
cobria o rosto, disfarçando a atrapalhação que por momentos a tolheu, disse que
apreciava a maneira frontal como ele se lhe dirigira e que, embora não
estivesse habituada a ser abordada daquela maneira, levaria em conta o pedido
dele e que falariam num dos dias seguintes.
Falaram. Falaram e começaram a
namorar.
Na Luanda de meados dos anos
quarenta, essa não era uma situação normal, sobretudo nos meios em que ambos
viviam. E não só porque a cidade já se habituara a ver em Rufino o herdeiro
duma grande fortuna, mas também porque na família de Ana Milongo, os casamentos
sempre se tinham realizado entre pessoas da mesma cor.
Casaram um ano depois; e quem os
casou foi o sacerdote, tio da noiva.
Foi então que começaram a nascer os
filhos: Primeiro os gémeos, João e Jacinto, assim se chamaram; depois as
gémeas: uma se chamou Rosalía, em homenagem à mãe de Rufino, e a outra, Eva,
como a primeira mulher.
Ana Milongo com um dos Gémeos
Pintura de Neves e Sousa
Por essa altura já o tio de Rufino
tinha falecido, deixando-o como único herdeiro e fazendo dele um dos homens
mais ricos da cidade.
Amadeus Saraband
(continua amanhã...)
Poet'anarquista
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