13- «PERPLEXIDADE»
A criança estava perplexa. Tinha os olhos maiores e mais
brilhantes do que nos outros dias,
e um risquinho novo, vertical, entre as
sobrancelhas breves.
«Não percebo», disse.
Em frente da televisão, os pais. Olhar para o pequeno écran era a maneira de olharem um para o outro. Mas nessa noite, nem isso. Ela fazia tricô, ele tinha o jornal aberto. Mas tricô e jornal eram alibis. Nessa noite recusavam mesmo o écran onde os seus olhares se confundiam. A menina, porém, ainda não tinha idade para fingimentos tão adultos e subtis, e, sentada no chão, olhava de frente, com toda a sua alma. E então o olhar grande, a rugazinha e aquilo de não perceber.
«Não percebo», repetiu.
«O que é que não percebes?» disse a mãe por dizer, no fim da carreira,
«Não percebo», disse.
Em frente da televisão, os pais. Olhar para o pequeno écran era a maneira de olharem um para o outro. Mas nessa noite, nem isso. Ela fazia tricô, ele tinha o jornal aberto. Mas tricô e jornal eram alibis. Nessa noite recusavam mesmo o écran onde os seus olhares se confundiam. A menina, porém, ainda não tinha idade para fingimentos tão adultos e subtis, e, sentada no chão, olhava de frente, com toda a sua alma. E então o olhar grande, a rugazinha e aquilo de não perceber.
«Não percebo», repetiu.
«O que é que não percebes?» disse a mãe por dizer, no fim da carreira,
aproveitando a deixa para rasgar o silêncio ruidoso em que alguém espancava
alguém
com requintes de malvadez.
«Isto, por exemplo.»
«Isto, por exemplo.»
«Isto o quê»
«Sei lá. A vida», disse a criança com seriedade.
O pai dobrou o jornal, quis saber qual era o problema que preocupava tanto a filha de
oito anos, tão subitamente.
O pai dobrou o jornal, quis saber qual era o problema que preocupava tanto a filha de
oito anos, tão subitamente.
Como de costume preparava-se para lhe explicar todos os problemas,
os de
aritmética e os outros.
«Tudo o que nos dizem para não fazermos é mentira.»
«Tudo o que nos dizem para não fazermos é mentira.»
«Não percebo.»
«Ora, tanta coisa. Tudo. Tenho pensado muito e...Dizem-nos para não matar, para não bater.
«Ora, tanta coisa. Tudo. Tenho pensado muito e...Dizem-nos para não matar, para não bater.
Até não beber álcool, porque faz mal. E depois a televisão...Nos
filmes, nos anúncios...
Como é a vida, afinal?»
A mão largou o tricô e engoliu em seco. O pai respirou fundo
Como é a vida, afinal?»
A mão largou o tricô e engoliu em seco. O pai respirou fundo
como quem se prepara para uma corrida difícil.
«Ora vejamos,» disse ele olhando para o tecto em busca de inspiração.
«A vida...»
Mas não era tão fácil como isso falar do desrespeito, do desamor, do absurdo
«Ora vejamos,» disse ele olhando para o tecto em busca de inspiração.
«A vida...»
Mas não era tão fácil como isso falar do desrespeito, do desamor, do absurdo
que ele aceitara como normal e que a filha, aos oito anos,
recusava.
«A vida...», repetiu.
As agulhas do tricô tinham recomeçado a esvoaçar
«A vida...», repetiu.
As agulhas do tricô tinham recomeçado a esvoaçar
como pássaros de asas
cortadas.
Maria Judite de Carvalho
Maria Judite de Carvalho
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