«A Porta», por Magda Szabó.
A 19 de Novembro de 2007, morre a escritora húngara Magda Szabó. Romancista, dramaturga, ensaísta e poetisa, começou as suas primeiras publicações ainda antes do início da II Guerra Mundial.
Em 1949 foi laureada com o «Prémio Baumgarten», mas por razões políticas
foi-lhe retirado no mesmo dia em que lhe foi atribuído. Nesse mesmo ano de
1949, foi igualmente demitida do Ministério da Religião e Educação, onde
exercia funções.
Em 2003, foi a grande vencedora do prémio literário
francês, «Prix Femina Étranger», para o melhor romance
estrangeiro.
Poet'anarquista
«A Porta»
Por JPGalhardas
24- «A PORTA»
[Excerto]
Raramente sonho. Se acontece, acordo sobressaltada, banhada
em suor. Então, estico-me, espero que o coração serene, e devaneio sobre o
poder mágico, irresistível, da noite. Na infância ou na juventude, não tinha
nem bons, nem maus sonhos, só a velhice arrasta os aluviões do passado em massa
cada vez mais compacta, num terror petrificado e tanto mais alarmante quanto
mais tenso e trágico, como jamais vivi, pois, na realidade, acordar assim a gritar,
isso comigo nunca aconteceu.
Os meus sonhos são visões que retornam, absolutamente
idênticas: eu tenho sempre o mesmo sonho. Estou à entrada do nosso prédio, ao
fundo das escadas, atrás do portão, em vidro armado inexpugnável, reforçado por
uma armação de ferro, e tento abrir a fechadura. Fora, na rua, há uma
ambulância, e, através dos vidros, são fluidas as silhuetas dos enfermeiros, de
um tamanho sobrenatural, seus rostos inchados rodeiam-se de um halo, como a
Lua. A chave roda. Mas debato-me em vão, não consigo abrir a porta, e, contudo,
tenho de fazer entrar as ambulâncias, ou vão chegar tarde ao doente. Claro, a
fechadura nem dá de si, e assim fica a porta, como se estivesse soldada à
armação de ferro. Grito por socorro, mas nenhum morador dos três pisos me
presta atenção, nem sequer poderia, pois — dou-me conta — limito-me a mexer os
lábios, sem um som, como um peixe, e o pânico atinge o auge quando percebo que
não somente não posso abrir a porta aos socorristas, como ainda fiquei muda. É
nesse instante que o meu grito de terror me acorda, acendo a luz, procuro
combater a asfixia que se apodera de mim após este sonho, rodeada pela mobília,
conhecida, do quarto, e, por cima da nossa cama, a iconografia familiar, os
meus antepassados parricidas, com dólmanes bordados, à maneira do barroco
húngaro, ou Biedermeier, os meus avós, que tudo vêem, e tudo compreendem,
únicos que sabem quantas vezes corri, de noite, a abrir a porta aos
primeiros-socorros, às ambulâncias, quantas vezes imaginei o que aconteceria,
enquanto, através da porta fechada, se ouvia o frufrulhar da ramagem ou os
passos silenciosos dos gatos, em vez do ruído conhecido das ruas silenciosas,
durante o dia, se, alguma vez, lutasse em vão com uma chave, e não desse a
volta.
Os retratos sabem tudo, sobretudo, o que prefiro esquecer, o
que já não é sonho. Pois só uma vez, na minha vida, uma única vez, na
realidade, e não no estado de fraqueza cerebral devida ao sono, uma porta se
abriu diante de mim, que não deveria ter aberto quem se resguardava na sua
solidão e na sua miséria impotente, mesmo se o tecto ardente crepitava já sobre
a sua cabeça. Só eu tinha poder para fazer funcionar essa fechadura: quem
rodava a chave confiava mais em mim do que em Deus, e eu, nesse instante fatal,
julgava ser Deus, sábia, ponderada, boa e racional. Estávamos ambas erradas,
ela, porque acreditava em mim, e eu, porque tinha fé excessiva em mim. Agora,
também já não importava, porque não se podia reparar o que acontecera. Pois que
venham, de tempos a tempos, essas Eríneas de alto coturno em sapatos
confortáveis, máscara trágica sob a touca de enfermeiras, e rodeiem a minha
cama, brandindo as espadas de duplo fio que são meus sonhos. Eu espero-as,
todas as noites, ao apagar a luz, e preparo-me para, no meu sono, ouvir retinir
a campainha que faz avançar horror inominável para a porta que não abrirá
jamais.
A minha religião não conhece a confissão individual, são as
palavras do nosso pastor que nos asseveram sermos pecadores, votados à
condenação, porque pecámos, de todos os modos, contra os mandamentos.
Recebemos, assim, a absolvição, sem que Deus exija de nós explicações ou
pormenores.
Dou-os eu, agora.
Não redigi este livro para Deus, que conhece as minhas
entranhas, nem para as sombras, testemunhas que são de tudo, e me vigiam a cada
instante, nas horas acordadas e dormindo, mas para os homens. Vivi, até hoje,
corajosamente, e assim espero morrer, corajosamente e sem mentir, mas, por isso
mesmo, na condição de dizer: eu matei Emerence. E pouco muda que eu não quisesse
destruí-la, mas salvá-la.
Magda Szabó
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