«O Abutre»
Ilustração por Farrell
34- «O ABUTRE»
Era um abutre que me dava grandes bicadas nos pés. Tinha já
dilacerado sapatos e meias e penetrava- me a carne. De vez em quando, inquieto,
esvoaçava à minha volta e depois regressava à faina. Passava por ali um senhor
que observou a cena por momentos e me perguntou depois como eu podia suportar o
abutre.
- É que estou sem defesa – respondi. – Ele veio e atacou-me.
Claro que tentei lutar, estrangulá-lo mesmo, mas é muito forte, um bicho
destes! Ia até saltar-me à cara, por isso preferi sacrificar os pés. Como vê,
estão quase despedaçados.
- Mas deixar-se torturar dessa maneira! – disse o senhor. –
Basta um tiro e pronto!
- Acha que sim? – disse eu. – Quer o senhor disparar o tiro?
- Certamente – disse o senhor. – É só ir a casa buscar a
espingarda. Consegue aguentar meia hora?
- Não sei lhe dizer. – respondi.
Mas sentindo uma dor pavorosa, acrescentei:
- De qualquer modo, vá, peço-lhe.
- Bem – disse o senhor. – Vou o mais depressa possível.
O abutre escutara tranquilamente a conversa, fitando-nos
alternadamente. Vi então que ele percebera tudo. Elevou-se com um bater de asas
e depois, empinando-se para tomar impulso, como um lançador de dardo, enfiou-me
o bico pela boca até ao mais profundo do meu ser. Ao cair senti, com que
alívio, que o abutre se engolfava impiedosamente nos abismos infinitos do meu
sangue.
Franz Kafka
Sem comentários:
Enviar um comentário