quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

OUTROS CONTOS

«O Bode Expiatório», por Aldo Lopes de Araújo.

«O Bode Expiatório»
Bode com Chocalho, por Gabriel Arcanjo

66- «O BODE EXPIATÓRIO»

No dia em que Zé Bode foi preso, era o cabo puxando Zé e uma tia de Zé puxando o cabo.
— Se o pai dele fosse vivo, eu queria ver isso acontecer! - dizia a tia, sem parar. E assim foi, da porta de casa até a cadeia, que a autoridade já estava para não aguentar mais. Era a primeira vez que Zé Bode entrava numa delegacia. Moço bom, Zé só tinha um defeito, aliás, dois: ser pobre e feio. Mais feio do que pobre. A bem da verdade, pobre mesmo nunca foi Zé, porque sempre teve de graça e abundante o ar para chupar, o tempo para enfiar a cabeça e muito chão pela frente para andar, andar até onde o juízo lhe mandasse, até onde a consciência lhe tangesse.
No tratante à feiúra, o que mais acabava com Zé era a língua, pois quando ele falava, falava um engrolado, a língua entrava e saía de sua boca sem ele querer, atrapalhando-lhe o palavrear. E ainda tinha os chuviscos de cuspe e o mau hálito, um bafo de bode desgraçado que ele jogava na cara das pessoas. Mas o que mais lhe entediava era aquela eterna falta de dinheiro, pois tudo o que Zé conseguia tinha um destino só: o entre-pernas das raparigas do Café Central. Era pegar em dinheiro e desembestar cego e doido lá para as bandas do fura-couro.
Naquele dia, Zé Bode tinha sido preso sob a acusação de furtar umas criações.
            Quando seu pai sumiu do mapa e deixou os filhos ao léu, Zé ficou zanzando pelos chiqueiros, enjeitado, mas logo arrumou uma mamãe-cabra que o adotou; já que ficara órfão de mãe quando tinha apenas um ano de idade. Zé Bode, cujo nome de pia era José Apolinário Bodeiro Sem-Medo, passou a mamar nas cabras. Nome de pia é o modo de dizer, pois a rigor, pelas leis da Igreja, Zé nunca foi batizado. O seu pai é que fizera, na beira do rio, um arremedo de batismo.
Passava o dia todo pelos chiqueiros e às vezes dormia por lá, no meio dos animais. Não só o rabinho de bode fazia de Zé uma pessoa diferente. Ele também tinha cheiro de bode. E por onde passava os bichos não resistiam e pulavam as cercas, arrebentavam as cordas e corriam para junto dele. E não adiantava tange-los de volta aos seus lugares, aos seus donos. Pedra, vara, grito, susto, nada os fazia voltar. Só as fêmeas o acompanhavam, as fêmeas solteiras ou com filhos. Corria atrás dele a mulherada toda. Os machos — que eram os carneiros reprodutores e os bodes pais-de-chiqueiro — não, estes não davam a mínima para Zé.
No dia de sua prisão, Zé Bode entrou em Perdição com uma espingarda nas costas, um bornal com oito codornizes, quatro rolinhas, um mocó e dezessete preás, além de mil e setecentas cabeças de criação, vivas, contadas a dedo, caminhando atrás dele. Zé não deu a menor importância aos animais, cansado que estava, entrou em casa, trancou-se e caiu na cama, de roupa e tudo, suado e sujo. Os bichos ficaram do lado de fora no maior berreiro, com as ruas empatadas e o povo reclamando providências.
Duas horas depois o cabo chegou com um soldado e mais algumas pessoas que se diziam donas de parte dos animais, bateram na porta e Zé, de sono ferrado, só acordou quando a porta e as duas autoridades já estavam dentro de casa. Tinha ido a uma caçada depois do Gogó-da-Ema e ao passar pela Escorregada, Várzea da Cruz e Cachoeira — obra de mais ou menos umas três léguas — a bicharia toda o acompanhou.
— Eu não tenho culpa dos bichinhos gostarem de mim — disse ele ao delegado.
Castigo. Zé era menino quando uma cigana em Vila Bela leu sua mão e disse que ele ficou assim por castigo. De toda a prole dos Sem-Medo, Zé teria sido o escolhido para a sina do sofrer, pagar as peripécias do avô que morreu com cento e quarenta e oito anos, sete meses e mais uns três ou quatro dias de idade. O velho Bodeiro bateu as botas sem nunca haver conseguido apagar do quengo do povo o pecado que carregava nas costas: a acusação de haver dado causa à morte da própria mãe, e ainda tê-la arrancado da cova por diversas vezes para colocá-la na porta do irmão avarento, só para extorquir dinheiro dele.
Quando o delegado viu Zé Bode nu, ajeitou os óculos para examinar melhor o que jamais enxergara num ser humano. Além do rabo, Zé era muito branco, magro e não tinha um só pêlo no corpo, com exceção dos cabelos ruivos e da barba rala — também ruiva — uma pequena touceira que ia descendo pelo queixo até terminar em ponta, além de uma maçaroca de pentelhos ruivos lhe cobrindo os ovos e a estrovenga. Foi então que o delegado lembrou-se do dia em que o padre estivera na Delegacia e manifestara o desejo de, a todo custo, pôr as mãos no sacrílego que violara o sacrário para cagar dentro dos cálices da eucaristia. O delegado mandou o cabo ir depressa chamar o padre, que veio com os paramentos, os santos óleos e todos os apetrechos do ritual de exorcismo.
Depois de tentar, sem sucesso, uma conversa reservada com Zé Bode, o padre percebeu, enfim, o quanto era fraco de confessionário, chegando inclusive a questionar as virtudes de seu sacerdócio. Teria Deus lhe negado o dom de persuadir as criaturas à confissão e ao arrependimento? Saiu arrasado daquela cafua apertada e quente, onde uma placa na porta dizia que ali era a “sala de investigação”. Lá dentro havia apenas um birô e uma cadeira e ao lado do birô um tonel d’água faltando três dedos para esborrar. O padre percebera tudo nos mínimos detalhes: Zé Bode de cu pra cima, com um pau enfiado no suvaco das pernas e as mãos amarradas, sem falar que nas paredes pendiam uma infinidade de chicotes, cacetes e palmatórias, porretes de todos os tamanhos e formatos, tudo sarrafo de dar em doido, pau para todo tipo de espinhaço.
— É o filho caçula de João Sem-Medo — disse o padre, assim que entrou na sala do delegado, lembrando-se do dia em que se recusara a batizá-lo.
Quando viu o rabinho de bode no menino, pulou para trás. Aquilo só podia ser coisa do Demo. A madrinha se botou para choramingar. Quando João Sem-Medo, o pai, viu a arrumação, se aproximou com toda brabeza.
— Fiquem sabendo que meu filho é gente — disse, arrebatando o menino.
— Espere, eu posso pedir uma autorização ao Bispo.
— Pode deixar, padre, que eu sei onde encontrar Deus! — berrou João, indignado, indo embora com o menino.
Do seu íntimo afluía uma vaga lembrança da ideia de que, sendo o menino imprestável para viver, nada mais justo do que afogá-lo no rio.
Não era assim que faziam os índios? João Sem-Medo tinha sangue de caboclo nas têmporas.
Pensando bem, em que diabos o rabinho de bode do filho ia atrapalhar? Não. Seu filho não era o Diabo, não senhor! Era obra fina e acabada de Deus para fazer prova de que somos irmãos de todos os animais, como dizia São Francisco: irmão bode, irmã cobra, irmão jumento.
E pensando no santo que cochichava no ouvido dos passarinhos, João chegou à beira do Riacho-da-Velha e deitou a criança numa pedra, à sombra de uma árvore. Então arrastou a faca para cortar uns galhos de mato e lhe veio na cabeça a estampa da Sagrada Escritura representando a figura do Pai Abraão quase enfiando a faca no pescoço do filho para oferecê-lo a Deus em sacrifício.
E teria consumado o crime, não fosse a imediata e providencial aparição do anjo. Mas João Sem-Medo acionou seus caiporas interiores, seus anjos guardadores e espantou a figura com um tapa: borboleta marrom-sépia sobrevoando o rosto do neném adormecido.
O movimento brusco do pai despertou o inocente que precisava de fato estar acordado para vê-lo apanhar água do riacho, com a copa do chapéu, e derramar todinha sobre sua cabeça. “Foi nada não, neném”. E nem precisou dizer: “Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” porque o riacho falou por ele, uma fala que contou com o adjutório de muitos anjos do céu que aproveitaram e vieram brincar com as Comadres Fulozinhas, os Avozinhos e mais uns seiscentos mil Caiporas fazendo fuzuê, pagode de remanso e tromba d’água nas correntezas do riacho.
E nesse dia o Riacho-da-Velha gemeu em suas nascentes, trovões secos explodiram os serrotes pelas encostas da Serra do Livramento. E João Sem-Medo deu seu filho por batizado.
O Padre, que já tinha visto o rabo, agora queria ver o cocô do rapaz. Precisava de fato ver o produto de suas necessidades para providenciar uma comparação, ver se era parecido ou não com aquela bosta preta, aquele maldito cagalhão enroscado e grosso encontrado naquele dia, no fundo do vaso sagrado, onde, ali perto, a luzinha de uma candeia de óleo alumiava o Santíssimo, palavra que o herege, achando pouco, ainda foi lá e acendeu o cigarro no rosto da chama sagrada e depois deu um peteleco, que as correntinhas se desprenderam e os cacos se espatifaram pela sacristia.
O delegado cascavilhou um velho armário, esmagou uma dezena de baratas, mas não encontrou vasilhame algum que se prestasse ao fim específico que era aparar a bosta ou, digamos assim, qualquer coisa sólida ou líquida que saísse do cu de uma criatura.
— Traga no seu capacete mesmo! — ordenou ao cabo.
Excitado ante a possibilidade de poder exibir sua autoridade — e da forma mais vil que se podia imaginar — o cabo correu para a “sala de investigações” onde estava o preso, deu-lhe uns quatro gritos e brandiu nos ares um cacete grande e grosso e duro, e o pobre Zé naquelas condições: a calça nos calcanhares, os olhos querendo voar fora da caixa e a veia do pescoço.
Nesse momento foi que o cabo deu por si da humilhação que era alguém fazer cocô no seu capacete de autoridade.
De longe dava pra se ouvir os gritos de Zé Bode. O rapaz pinotava e berrava. Tinha seus direitos de cidadão.
— Peça a ele para maneirar! — intercedeu por fim o padre, moído de remorso.
O delegado deu um assobio. O cabo virou-se e o delegado fez assim com as duas mãos espalmadas, dando a entender que era para o cabo moderar.
Só então foi que ele moderou.
Meia hora depois o cabo entrou na sala do delegado, pediu licença ao padre e foi direto ao assunto:
— Doutor, o homem não quer cagar.
— Esprema esse filho da puta! — gritou o delegado, dando um murro no birô e se esquecendo do padre ali ao lado, para quem logo dirigiu um sorriso amarelo.
Minutos depois, arfando — e com duas placas de suor no entorno das axilas —, lá vinha o cabo trazendo, no fundo do capacete, cinco inodoras bolinhas verdes de cocô. O delegado abaixou a cabeça e o padre fechou a cara, não disse mais uma palavra, apenas apanhou o chapéu e saiu.

Aldo Lopes de Araújo

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