«Passeio Nocturno I»
Passeio Nocturno com Gaiola
Roberto Chichorro
Roberto Chichorro
68- «PASSEIO NOCTURNO I»
Cheguei em casa carregando a pasta cheia de papéis, relatórios,
estudos, pesquisas, propostas, contratos. Minha mulher, jogando paciência na
cama, um copo de uísque na mesa de cabeceira, disse, sem tirar os olhos das
cartas, você está com um ar cansado. Os sons da casa: minha filha no quarto
dela treinando empostação de voz, a música quadrifónica do quarto do meu
filho. Você não vai largar essa mala?, perguntou minha mulher, tira essa
roupa, bebe um uisquinho, você precisa aprender a relaxar.
Fui para a biblioteca, o lugar da casa onde gostava de ficar
isolado e como sempre não fiz nada. Abri o volume de pesquisas sobre a mesa,
não via as letras e números, eu esperava apenas. Você não pára de trabalhar,
aposto que os teus sócios não trabalham nem a metade e ganham a mesma coisa,
entrou a minha mulher na sala com o copo na mão, já posso mandar servir o
jantar?
A copeira servia à francesa, meus filhos tinham crescido, eu
e a minha mulher estávamos gordos. É aquele vinho que você gosta, ela estalou a
língua com prazer. Meu filho me pediu dinheiro quando estávamos no cafézinho,
minha filha me pediu dinheiro na hora do licor. Minha mulher nada pediu, nós
tínhamos conta bancária conjunta.
Vamos dar uma volta de carro?, convidei. Eu sabia que ela
não ia, era hora da novela. Não sei que graça você acha em passear de carro
todas as noites, também aquele carro custou uma fortuna, tem que ser usado, eu
é que cada vez me apego menos aos bens materiais, minha mulher respondeu.
Os carros dos meninos bloqueavam a porta da garagem,
impedindo que eu tirasse o meu. Tirei os carros dos dois, botei na rua, tirei
o meu, botei na rua, coloquei os dois carros novamente na garagem, fechei a
porta, essas manobras todas me deixaram levemente irritado, mas ao ver os
pára-choques salientes do meu carro, o reforço especial duplo de aço cromado,
senti o coração bater apressado de euforia. Enfiei a chave na ignição, era um
motor poderoso que gerava a sua força em silêncio, escondido no capô
aerodinâmico. Saí, como sempre sem saber para onde ir, tinha que ser uma rua
deserta, nesta cidade que tem mais gente do que moscas. Na avenida Brasil,
ali não podia ser, muito movimento. Cheguei numa rua mal iluminada, cheia de
árvores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher? Realmente não fazia grande
diferença, mas não aparecia ninguém em condições, comecei a ficar tenso, isso
sempre acontecia, eu até gostava, o alívio era maior. Então vi a mulher, podia
ser ela, ainda que mulher fosse menos emocionante, por ser mais fácil. Ela
caminhava apressadamente, carregando um embrulho de papel ordinário, coisas de
padaria ou de quitanda, estava de saia e blusa, andava depressa, havia árvores
na calçada, de vinte em vinte metros, um interessante problema a exigir uma grande
dose de perícia. Apaguei as luzes do carro e acelerei.
Ela só percebeu que eu ia para cima dela quando ouviu o som
da borracha dos pneus batendo no meio-fio.
Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas,
um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto
partindo os dois ossões, dei uma guina da rápida para a esquerda, passei como
um foguete rente a uma das árvores e deslizei com os pneus cantando, de volta
para o asfalto. Motor bom, o meu, ia de zero a cem quilômetros em nove
segundos. Ainda deu para ver que o corpo todo desengonçado da mulher havia ido
parar, colorido de sangue, em cima de um muro, desses baixinhos de casa de
subúrbio.
Examinei o carro na garagem. Corri orgulhosamente a mão de
leve pelos pára-lamas, os pára-choques sem marca. Poucas pessoas, no mundo
inteiro, igualavam a minha habilidade no uso daquelas máquinas.
A família estava vendo televisão. Deu a sua voltinha, agora
está mais calmo?, perguntou minha mulher, deitada no sofá, olhando fixamente o
vídeo. Vou dormir, boa noite para todos, respondi, amanhã vou ter um dia
terrível na companhia.
Rubem Braga
Amanhã - «Passeio Nocturno II»
Poet'anarquista
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