terça-feira, 21 de janeiro de 2014

OUTROS CONTOS

«O Abate de um Elefante», por George Orwell.

«O Abate de um Elefante»
Conto de George Orwell

71- «O ABATE DE UM ELEFANTE»

Em Moulmen, na Baixa Birmânia, eu era detestado por um grande número de pessoas – a única vez na vida que fui importante o suficiente para isso acontecer comigo. Eu era policial de subdivisão na cidade e, de maneira mesquinha e aleatória, o sentimento antieuropeu era bastante acrimonioso. Ninguém tinha coragem de se amotinar, mas, se uma mulher europeia andasse pelos bazares, sozinha, alguém provavelmente lhe cuspiria suco de bétel no vestido.
Como policial, eu era um alvo óbvio, importunado toda vez que podiam fazer isso com segurança. Quando um ágil birmanês me passou uma rasteira no campo de futebol e o juiz (outro birmanês) desviou o olhar, a multidão explodiu numa gargalhada revoltante. Isso aconteceu mais de uma vez.
No fim, os rostos amarelos e sarcásticos dos jovens que me encaravam em toda parte, os insultos que gritavam para mim quando eu me achava a uma distância segura, tudo me dava nos nervos. Os jovens sacerdotes budistas eram os piores. Havia milhares deles na cidade e davam a impressão de que nada tinham a fazer a não ser ficar parados nas esquinas, zombando dos europeus.
Tudo isso era desconcertante e perturbador porque, naquela época, eu já tinha concluído que o imperialismo era algo maligno e que quanto antes eu renunciasse ao emprego e saísse dali, tanto melhor. Na teoria – e, claro, no íntimo – eu era a favor dos bimaneses e contra os opressores, os britânicos.
Quanto ao trabalho, eu o detestava mais profundamente do que talvez seja capaz de expressar. Os infelizes prisioneiros que se comprimiam nas fétidas celas das prisões, os rostos pardos e assustados dos condenados a longo prazo, os traseiros marcados com cicatrizes dos homens açoitados com bambus – tudo isso me oprimia com uma sensação de culpa insuportável.
Mas eu não conseguia ver as coisas com clareza. Era jovem, mal informado e tinha que pensar em meus problemas, no silêncio total imposto a todo inglês no Oriente. Nem sequer sabia que o Império Britânico estava agonizando, muito menos que era bem melhor do que impérios mais recentes que caminhavam para substituí-lo.
Sabia apenas que estava empatado entre o ódio pelo império que eu servia e minha ira contra os brutos perversos que tentavam tornar meu trabalho impossível. Com um lado da cabeça, eu pensava que a soberania britânica era uma tirania inquebrantável, algo imposto, in saecula saeculorum, contra a vontade dos povos humilhados; com o outro lado, pensava que o maior prazer do mundo seria enterrar uma baioneta nas entranhas dos sacerdotes budistas.
Sentimentos como esses são consequências normais do imperialismo; pergunte a qualquer oficial anglo-indiano, se encontrar um de folga.
Um dia, aconteceu uma coisa que, de maneira indireta, foi reveladora. Um incidente insignificante, mas que me deu uma ideia melhor da verdadeira natureza do imperialismo – dos verdadeiros motivos pelos quais governos despóticos agem.
Numa manhã, bem cedinho, o sub-inspetor de uma delegacia do outro lado da cidade me telefonou para dizer que um elefante estava a destruir um bazar. Poderia eu ir até lá e fazer alguma coisa? Eu não sabia o que poderia fazer, mas, querendo verificar o que ocorria, montei num pônei e rumei para lá. Levei comigo meu fuzil, um velho Winchester calibre quarenta e quatro, muito pequeno para matar um elefante, mas achei que o barulho seria útil in terrorem.
Vários birmaneses me pararam no caminho e me contaram sobre as ações do elefante. Não era, claro, um elefante selvagem, e sim, um elefante domesticado “enfurecido”. Tinha sido acorrentado, como sempre ocorre com elefantes domesticados quando estão prestes a se enfurecer, porém, na noite anterior, arrebentara as correntes e escapara.
Seu condutor, a única pessoa capaz de dominá-lo naquele estado, saíra em sua busca, mas havia seguido na direção errada e agora se achava a uma distância de doze horas de jornada – e, de manhã, o elefante reaparecera de repente na cidade.
A população birmanesa não possuía armas e estava indefesa. Ele já havia destruído uma choupana de bambu, matado uma vaca, atacado uma barraca de frutas e devorado todo o seu estoque; havia ainda topado com a camionete coletora de lixo e, depois de o motorista saltar para fora e sair correndo, tombara a camionete e a golpeara com violência.
O sub-inspetor birmanês e alguns guardas indianos me esperavam no bairro em que o elefante fora visto. Era um bairro bastante pobre, um labirinto de choupanas miseráveis de bambu, cobertas com folhas de palmeira, que serpenteavam numa encosta íngreme. Lembro-me que era uma manhã saturada de nuvens, no princípio das chuvas.
Começamos a perguntar às pessoas para onde o elefante havia ido – e, como de costume, não obtivemos nenhuma informação clara. Isso é o que invariavelmente ocorre no Oriente; uma história sempre parece clara à distância, mas, quanto mais nos aproximamos do lugar dos acontecimentos, mais vaga ela vai ficando.
Algumas pessoas disseram que o elefante havia ido numa direção, outras disseram que havia ido em outra, algumas afirmaram não ter sequer ouvido falar de um elefante. Eu estava quase chegando à conclusão de que a história toda não passava de uma grande mentira, quando ouvimos gritos não muito longe dali.
Soou um berro escandalizado e alto de “Saia daqui, menino! Vá embora já!” – e uma velha de chicote na mão surgiu dando a volta no canto de uma choupana, a enxotar, furiosa, um bando de crianças sem roupa. Outras mulheres apareceram, estalando a língua e vociferando; sem dúvida, havia alguma coisa lá que as crianças não deveriam ver.
Dei a volta no canto da choupana e vi o corpo de um homem morto estendido no barro. Era um indiano, um cule dravidiano pardo, quase nu, morto não mais do que alguns minutos antes. As pessoas disseram que o elefante o atacara de surpresa no canto da choupana, pegara-o com a tromba, pusera a pata sobre suas costas e o prensara contra o chão.
Era a estação das chuvas, a terra estava fofa e o rosto dele abrira uma vala de uns trinta centímetros de profundidade – e o corpo, uma de uns dois metros de comprimento. Estava de bruços, com os braços abertos, a cabeça bruscamente virada para o lado. O rosto estava coberto de barro, os olhos arregalados, os dentes arreganhados, com uma expressão de agonia insuportável.
(A propósito, nunca me diga que um morto parecia tranquilo. A maioria dos cadáveres que vi parecia diabólica.) A fricção da pata do enorme animal arrancara a pele das costas do homem de maneira tão perfeita, como se tira a pele de um coelho.
Assim que vi o morto, mandei um ordenança à casa de um amigo para tomar emprestado um fuzil capaz de abater um elefante. Eu já tinha enviado o pônei de volta, por não querer que enlouquecesse de medo e me derrubasse, caso farejasse o elefante.
O ordenança voltou dali a alguns minutos com um fuzil e cinco cartuchos. Nesse ínterim, alguns birmaneses haviam chegado, contando-nos que o elefante estava nos arrozais, a apenas uns cem metros dali.
Quando comecei a caminhar, praticamente todos os habitantes do bairro saíram aos bandos das casas e me seguiram num tropel danado. Tinham visto o fuzil e, excitados, seguiam, aos gritos de que eu iria matar o elefante. Não tinham mostrado grande interesse no elefante quando este se limitava a arrasar os lugares e suas casas, mas agora era diferente, pois ele iria ser morto a tiros. Eles teriam um pouco de diversão, assim como seria para uma multidão inglesa; além disso, queriam a carne.
Isso me deixou vagamente perturbado. Eu não tinha intenção de atirar no elefante – trouxera o fuzil simplesmente para me defender, se necessário – e é sempre enervante ter uma multidão seguindo você.
Enfiei-me colina abaixo, observando e me sentindo um tolo, com o fuzil nos meus ombros e um exército cada vez maior de pessoas se amontoando nos meus calcanhares. Lá em baixo, quando as choupanas já haviam ficado para trás, havia uma reluzente estrada de pedras e, além dela, um arrozal lodoso e abandonado, de quase um quilômetro de extensão, ainda sem ser arado, mas encharcado das primeiras chuvas e povoado de ervas daninhas.
O elefante estava a umas oito jardas da estrada, com seu flanco esquerdo voltado para nós.
Ele não deu a mínima para a chegada da multidão. Arrancava montes de ervas, batendo-as no joelho para limpá-las e enfiando-as na boca.
Eu hesitei no caminho. Assim que vi o elefante, soube, com uma certeza perfeita, que não devia atirar nele. É uma questão séria atirar num elefante de utilidade – algo comparável com destruir uma máquina grande e cara – e, obviamente, não era certo fazer o que seria possível evitar. Ainda por cima, a alimentar-se pacificamente, àquela distância, o elefante não parecia mais perigoso do que uma vaca.
Pensei, então – e ainda penso -, que esse seu ataque de “precisão” já estava passando; caso em que ele iria somente vaguear sem grandes danos até que seu tratador voltasse e o levasse.
Além do mais, eu não queria, no fim, atirar nele. Decidi que iria olhá-lo por um momento, para ter certeza de que ele não se tornaria furioso novamente – e, daí, eu iria para casa.
Mas, naquele momento, dei uma olhada em torno da multidão que havia me seguido. Era uma turba imensa, uns dois mil pelo menos, e crescia a cada minuto. Bloqueava a estrada por uma longa distância, dos dois lados.
Olhei o mar de rostos amarelos por sobre os trajes bizarros – suas faces tão felizes e excitadas com esse naco de entretenimento, todos certos de que o elefante ia ser baleado. Olhavam-me como se olha um mágico prestes a fazer um truque. Eles não gostavam de mim, mas, com o fuzil mágico nas mãos, eu era, por um momento, algo que valia a pena ver.
E, de repente, me dei conta de que, afinal, teria que atirar no elefante. As pessoas esperavam isso de mim e eu tinha que fazer; eu sentia aqueles dois mil desejos me empurrando de forma irresistível.
E foi nesse momento, em que eu parei ali com o fuzil nas mãos, que captei pela primeira vez o vazio, a futilidade do domínio do homem branco no Oriente. Ali estava eu, o homem branco com seu fuzil, diante da multidão desarmada de nativos – como um protagonista de uma peça; mas, na realidade, eu era uma marionete absurda manipulada pela vontade daqueles rostos amarelos atrás de mim.
Percebi, naquele instante, que quando o homem branco se torna tirano, é a sua própria liberdade que ele destrói. Ele se torna uma espécie de boneco, oco e afetado, a figura estereotipada de um sahib. Pois tal é a condição de seu governo que ele passará a vida toda tentando impressionar os “nativos” e, assim, a cada crise, ele terá de fazer o que os “nativos” esperam dele. Ele enverga uma máscara – e seu rosto tem que se moldar dentro dela.
Eu tinha que balear o elefante. Havia me comprometido comigo mesmo fazer isso, quando mandei buscar o fuzil. Um sahib tem que agir como um sahib; tem que parecer decidido, conhecer sua própria mente e ter atitudes definidas. Ter percorrido todo esse caminho com o fuzil nas mãos, duas mil pessoas marchando nos meus calcanhares e depois sair-me dessa sem mais, sem fazer nada – não, isso era impossível. A multidão iria rir-se de mim.
E a minha vida toda, a vida de cada homem branco no Oriente, era um esforço imenso para evitar esse riso.
Mas eu não desejava atirar no elefante. Olhava-o batendo os feixes de capim contra os joelhos, com aquele ar de avó preocupada que os elefantes têm. A mim, parecia-me um assassínio abatê-lo. Naquela idade, eu não tinha escrúpulos em matar animais, porém nunca havia abatido um elefante e nunca desejara.
(De certa forma, sempre parece pior matar um animal grande.)
Além disso, havia que levar em consideração o dono do animal. Vivo, o elefante valia no mínimo cem libras esterlinas; morto, teria apenas o valor das presas – cinco libras esterlinas, talvez.
Contudo, eu precisava agir rápido. Virei-me para uns birmaneses aparentemente experientes que estavam lá quando cheguei e perguntei como o elefante havia se comportado. Todos disseram a mesma coisa: ele não prestaria atenção na gente se o deixássemos em paz, mas atacaria se chegássemos muito perto.
Ficou bastante claro para mim o que eu deveria fazer. Deveria me aproximar do elefante e pôr à prova seu comportamento. Se atacasse eu poderia atirar. Se não prestasse atenção em mim, seria seguro deixá-lo até que o condutor voltasse.
Porém eu também sabia que não faria isso. Era pouco hábil com um fuzil – e o chão era de um barro mole em que se afundava a cada passo. Se o elefante atacasse e eu errasse o alvo, teria a mesma chance de escapar que a de um sapo sob um rolo compressor.
Mesmo assim, não pensava na minha pele em especial, somente nos rostos amarelos atentos, atrás de mim. Porque, naquele momento, com a multidão a me observar, não sentia um medo comum, como sentiria se estivesse sozinho. Um branco não deve demonstrar medo na frente dos “nativos”; e assim, em geral, não tem medo. O único pensamento em minha cabeça era que, se algo desse errado, aqueles dois mil birmaneses me veriam perseguido, pego, esmagado e reduzido a um cadáver de dentes arreganhados como aquele indiano no topo da colina.
E, se isso ocorresse, seria bem provável que alguns deles rissem. Isso não poderia ser.
Havia apenas uma alternativa. Meti os cartuchos no depósito do fuzil e me deitei na estrada para poder mirar melhor. A multidão se imobilizou e inúmeras gargantas soltaram um suspiro profundo, baixo e feliz, como de pessoas que vêem a cortina do teatro enfim se erguer. Teriam, afinal, um pouco de diversão.
O fuzil era um belo objeto alemão com um ponto de mira de retículo de fios cruzados. Naquele momento, eu não sabia que, ao abater um elefante, se deve atirar para cortar uma barra imaginária que vai de um ouvido a outro. Deveria, portanto, uma vez que o elefante estava de lado, ter mirado o ouvido; na verdade, mirei vários centímetros à frente dele, achando que o cérebro estaria mais adiante.
Quando puxei o gatilho, não ouvi o estrondo nem senti o coice – nunca se sente quando se atinge o alvo -, mas ouvi o barulho infernal de alegria que estourou da multidão.
Naquele instante, num espaço de tempo bem curto, mesmo para um projétil chegar lá, uma mudança terrível e misteriosa se deu no elefante. Ele não se agitou nem tombou, mas cada traço de seu corpo sofreu uma transformação. Parecia de repente ferido, contraído, extremamente velho, como se o espantoso impacto do projétil o tivesse paralisado sem derrubar. Por fim, depois do que pareceu muito tempo – devem ter sido uns cinco segundos -, ele cedeu, fraco, sobre os joelhos. A boca babou. Uma enorme senilidade pareceu tomar conta dele. Era possível imaginá-lo com mil anos de idade.
Atirei de novo, no mesmo ponto.
No segundo tiro, ele não caiu, mas se firmou com desesperada lentidão sobre as patas e se manteve em pé, combalido, as pernas fraquejando e a cabeça pendendo.
Atirei uma terceira vez. Foi o tiro de misericórdia. Era possível ver a agonia sacudir-lhe o corpo inteiro e arrancar-lhe das pernas o último resquício de força. Mas, ao tombar, pareceu por um momento que se levantava, porque, quando as pernas traseiras cederam, ele deu a impressão de se elevar como uma enorme pedra, a tromba erguendo-se em direção ao céu como uma árvore.
Ele barriu pela primeira e última vez. E, em seguida, caiu, a barriga voltada para mim, com um estrondo que pareceu estremecer até mesmo o chão em que eu estava deitado.
Levantei-me. Os birmaneses já passavam correndo pelo barro. Era evidente que o elefante jamais voltaria a erguer-se, mas não estava morto. Respirava de forma cadenciada, com longos arquejos estrondosos, o volumoso flanco a expandir-se e retrair dolorosamente. A boca estava escancarada – pude enxergar em seu interior cavernas de uma garganta rosa claro.
Esperei um longo tempo que ele morresse, mas a respiração não enfraquecia. Afinal, disparei os dois projéteis restantes no ponto em que pensei que o coração deveria estar. O sangue grosso jorrou dele como veludo vermelho e, ainda assim, ele não morreu. O corpo nem sequer se contraiu, quando os projéteis o atingiram, a respiração torturada prosseguiu sem uma pausa.
Estava morrendo muito devagar e numa grande agonia, porém em algum mundo distante de mim, em que nem mesmo um projétil poderia mais lhe fazer mal.
Senti que tinha de pôr um fim àquele barulho medonho. A mim, parecia horrendo ver um animal enorme deitado lá, sem forças para se mexer e, no entanto, sem forças para morrer, sem que eu fosse capaz de matá-lo.
Mandei buscar meu fuzil pequeno e despejei projétil atrás de projétil em seu coração e em sua garganta. Eles pareciam não ter efeito. Os arquejos torturados continuaram com a mesma regularidade de um ponteiro de relógio.
No fim, não consegui suportar mais e fui embora. Soube, depois, que levou meia hora para ele morrer. Os birmaneses chegaram com dah e cestas, antes mesmo de eu ir, e me contaram que, à tarde, tinham pelado o corpo quase até os ossos.
Depois, claro, ocorreram discussões intermináveis sobre o abate do elefante. O dono ficou furioso, mas era apenas um indiano e nada podia fazer. Além do mais, legalmente, eu fizera a coisa certa, pois um elefante enfurecido deve ser morto como um cão raivoso, se o dono não o controlar.
Entre os europeus, a opinião se dividiu. Os mais velhos disseram que eu estava certo; os mais jovens, que era uma lástima terrível abater um elefante por ele ter matado um cule, pois um elefante vale bem mais do que um maldito cule de Coringhee.
E, mais tarde, fiquei contente de que o cule estivesse morto; fornecia-me a razão legal e pretexto suficiente para que eu tivesse abatido o elefante.
Muitas vezes me perguntei se alguém percebeu que fiz o que fiz unicamente para evitar parecer um bobo.

George Orwell

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