«O Abate de um Elefante»
Conto de George Orwell
71- «O ABATE DE UM ELEFANTE»
Em Moulmen, na Baixa Birmânia, eu era detestado por um
grande número de pessoas – a única vez na vida que fui importante o suficiente
para isso acontecer comigo. Eu era policial de subdivisão na cidade e, de
maneira mesquinha e aleatória, o sentimento antieuropeu era bastante
acrimonioso. Ninguém tinha coragem de se amotinar, mas, se uma mulher europeia
andasse pelos bazares, sozinha, alguém provavelmente lhe cuspiria suco de bétel
no vestido.
Como policial, eu era um alvo óbvio, importunado toda vez que podiam fazer isso
com segurança. Quando um ágil birmanês me passou uma rasteira no campo de
futebol e o juiz (outro birmanês) desviou o olhar, a multidão explodiu numa
gargalhada revoltante. Isso aconteceu mais de uma vez.
No fim, os rostos amarelos e sarcásticos dos jovens que me encaravam em toda
parte, os insultos que gritavam para mim quando eu me achava a uma distância
segura, tudo me dava nos nervos. Os jovens sacerdotes budistas eram os piores.
Havia milhares deles na cidade e davam a impressão de que nada tinham a fazer a
não ser ficar parados nas esquinas, zombando dos europeus.
Tudo isso era desconcertante e perturbador porque, naquela época, eu já tinha
concluído que o imperialismo era algo maligno e que quanto antes eu renunciasse
ao emprego e saísse dali, tanto melhor. Na teoria – e, claro, no íntimo – eu
era a favor dos bimaneses e contra os opressores, os britânicos.
Quanto ao trabalho, eu o detestava mais profundamente do que talvez seja capaz
de expressar. Os infelizes prisioneiros que se comprimiam nas fétidas celas das
prisões, os rostos pardos e assustados dos condenados a longo prazo, os
traseiros marcados com cicatrizes dos homens açoitados com bambus – tudo isso
me oprimia com uma sensação de culpa insuportável.
Mas eu não conseguia ver as coisas com clareza. Era jovem, mal informado e
tinha que pensar em meus problemas, no silêncio total imposto a todo inglês no
Oriente. Nem sequer sabia que o Império Britânico estava agonizando, muito
menos que era bem melhor do que impérios mais recentes que caminhavam para
substituí-lo.
Sabia apenas que estava empatado entre o ódio pelo império que eu servia e
minha ira contra os brutos perversos que tentavam tornar meu trabalho
impossível. Com um lado da cabeça, eu pensava que a soberania britânica era uma
tirania inquebrantável, algo imposto, in saecula saeculorum, contra a vontade
dos povos humilhados; com o outro lado, pensava que o maior prazer do mundo
seria enterrar uma baioneta nas entranhas dos sacerdotes budistas.
Sentimentos como esses são consequências normais do imperialismo; pergunte a
qualquer oficial anglo-indiano, se encontrar um de folga.
Um dia, aconteceu uma coisa que, de maneira indireta, foi reveladora. Um
incidente insignificante, mas que me deu uma ideia melhor da verdadeira natureza
do imperialismo – dos verdadeiros motivos pelos quais governos despóticos agem.
Numa manhã, bem cedinho, o sub-inspetor de uma delegacia do outro lado da
cidade me telefonou para dizer que um elefante estava a destruir um bazar.
Poderia eu ir até lá e fazer alguma coisa? Eu não sabia o que poderia fazer,
mas, querendo verificar o que ocorria, montei num pônei e rumei para lá. Levei
comigo meu fuzil, um velho Winchester calibre quarenta e quatro, muito pequeno
para matar um elefante, mas achei que o barulho seria útil in terrorem.
Vários birmaneses me pararam no caminho e me contaram sobre as ações do
elefante. Não era, claro, um elefante selvagem, e sim, um elefante domesticado
“enfurecido”. Tinha sido acorrentado, como sempre ocorre com elefantes domesticados
quando estão prestes a se enfurecer, porém, na noite anterior, arrebentara as
correntes e escapara.
Seu condutor, a única pessoa capaz de dominá-lo naquele estado, saíra em sua
busca, mas havia seguido na direção errada e agora se achava a uma distância de
doze horas de jornada – e, de manhã, o elefante reaparecera de repente na
cidade.
A população birmanesa não possuía armas e estava indefesa. Ele já havia
destruído uma choupana de bambu, matado uma vaca, atacado uma barraca de frutas
e devorado todo o seu estoque; havia ainda topado com a camionete coletora de
lixo e, depois de o motorista saltar para fora e sair correndo, tombara a camionete
e a golpeara com violência.
O sub-inspetor birmanês e alguns guardas indianos me esperavam no bairro em que
o elefante fora visto. Era um bairro bastante pobre, um labirinto de choupanas
miseráveis de bambu, cobertas com folhas de palmeira, que serpenteavam numa
encosta íngreme. Lembro-me que era uma manhã saturada de nuvens, no princípio
das chuvas.
Começamos a perguntar às pessoas para onde o elefante havia ido – e, como de
costume, não obtivemos nenhuma informação clara. Isso é o que invariavelmente
ocorre no Oriente; uma história sempre parece clara à distância, mas, quanto
mais nos aproximamos do lugar dos acontecimentos, mais vaga ela vai ficando.
Algumas pessoas disseram que o elefante havia ido numa direção, outras disseram
que havia ido em outra, algumas afirmaram não ter sequer ouvido falar de um
elefante. Eu estava quase chegando à conclusão de que a história toda não
passava de uma grande mentira, quando ouvimos gritos não muito longe dali.
Soou um berro escandalizado e alto de “Saia daqui, menino! Vá embora já!” – e
uma velha de chicote na mão surgiu dando a volta no canto de uma choupana, a
enxotar, furiosa, um bando de crianças sem roupa. Outras mulheres apareceram,
estalando a língua e vociferando; sem dúvida, havia alguma coisa lá que as
crianças não deveriam ver.
Dei a volta no canto da choupana e vi o corpo de um homem morto estendido no
barro. Era um indiano, um cule dravidiano pardo, quase nu, morto não mais do
que alguns minutos antes. As pessoas disseram que o elefante o atacara de
surpresa no canto da choupana, pegara-o com a tromba, pusera a pata sobre suas
costas e o prensara contra o chão.
Era a estação das chuvas, a terra estava fofa e o rosto dele abrira uma vala de
uns trinta centímetros de profundidade – e o corpo, uma de uns dois metros de
comprimento. Estava de bruços, com os braços abertos, a cabeça bruscamente
virada para o lado. O rosto estava coberto de barro, os olhos arregalados, os
dentes arreganhados, com uma expressão de agonia insuportável.
(A propósito, nunca me diga que um morto parecia tranquilo. A maioria dos
cadáveres que vi parecia diabólica.) A fricção da pata do enorme animal
arrancara a pele das costas do homem de maneira tão perfeita, como se tira a
pele de um coelho.
Assim que vi o morto, mandei um ordenança à casa de um amigo para tomar
emprestado um fuzil capaz de abater um elefante. Eu já tinha enviado o pônei de
volta, por não querer que enlouquecesse de medo e me derrubasse, caso farejasse
o elefante.
O ordenança voltou dali a alguns minutos com um fuzil e cinco cartuchos. Nesse
ínterim, alguns birmaneses haviam chegado, contando-nos que o elefante estava
nos arrozais, a apenas uns cem metros dali.
Quando comecei a caminhar, praticamente todos os habitantes do bairro saíram
aos bandos das casas e me seguiram num tropel danado. Tinham visto o fuzil e,
excitados, seguiam, aos gritos de que eu iria matar o elefante. Não tinham
mostrado grande interesse no elefante quando este se limitava a arrasar os
lugares e suas casas, mas agora era diferente, pois ele iria ser morto a tiros.
Eles teriam um pouco de diversão, assim como seria para uma multidão inglesa;
além disso, queriam a carne.
Isso me deixou vagamente perturbado. Eu não tinha intenção de atirar no
elefante – trouxera o fuzil simplesmente para me defender, se necessário – e é
sempre enervante ter uma multidão seguindo você.
Enfiei-me colina abaixo, observando e me sentindo um tolo, com o fuzil nos meus
ombros e um exército cada vez maior de pessoas se amontoando nos meus
calcanhares. Lá em baixo, quando as choupanas já haviam ficado para trás, havia
uma reluzente estrada de pedras e, além dela, um arrozal lodoso e abandonado,
de quase um quilômetro de extensão, ainda sem ser arado, mas encharcado das
primeiras chuvas e povoado de ervas daninhas.
O elefante estava a umas oito jardas da estrada, com seu flanco esquerdo
voltado para nós.
Ele não deu a mínima para a chegada da multidão. Arrancava montes de ervas,
batendo-as no joelho para limpá-las e enfiando-as na boca.
Eu hesitei no caminho. Assim que vi o elefante, soube, com uma certeza
perfeita, que não devia atirar nele. É uma questão séria atirar num elefante de
utilidade – algo comparável com destruir uma máquina grande e cara – e,
obviamente, não era certo fazer o que seria possível evitar. Ainda por cima, a
alimentar-se pacificamente, àquela distância, o elefante não parecia mais
perigoso do que uma vaca.
Pensei, então – e ainda penso -, que esse seu ataque de “precisão” já estava
passando; caso em que ele iria somente vaguear sem grandes danos até que seu
tratador voltasse e o levasse.
Além do mais, eu não queria, no fim, atirar nele. Decidi que iria olhá-lo por
um momento, para ter certeza de que ele não se tornaria furioso novamente – e,
daí, eu iria para casa.
Mas, naquele momento, dei uma olhada em torno da multidão que havia me seguido.
Era uma turba imensa, uns dois mil pelo menos, e crescia a cada minuto.
Bloqueava a estrada por uma longa distância, dos dois lados.
Olhei o mar de rostos amarelos por sobre os trajes bizarros – suas faces tão
felizes e excitadas com esse naco de entretenimento, todos certos de que o
elefante ia ser baleado. Olhavam-me como se olha um mágico prestes a fazer um
truque. Eles não gostavam de mim, mas, com o fuzil mágico nas mãos, eu era, por
um momento, algo que valia a pena ver.
E, de repente, me dei conta de que, afinal, teria que atirar no elefante. As
pessoas esperavam isso de mim e eu tinha que fazer; eu sentia aqueles dois mil
desejos me empurrando de forma irresistível.
E foi nesse momento, em que eu parei ali com o fuzil nas mãos, que captei pela
primeira vez o vazio, a futilidade do domínio do homem branco no Oriente. Ali
estava eu, o homem branco com seu fuzil, diante da multidão desarmada de
nativos – como um protagonista de uma peça; mas, na realidade, eu era uma
marionete absurda manipulada pela vontade daqueles rostos amarelos atrás de
mim.
Percebi, naquele instante, que quando o homem branco se torna tirano, é a sua
própria liberdade que ele destrói. Ele se torna uma espécie de boneco, oco e
afetado, a figura estereotipada de um sahib. Pois tal é a condição de seu
governo que ele passará a vida toda tentando impressionar os “nativos” e,
assim, a cada crise, ele terá de fazer o que os “nativos” esperam dele. Ele
enverga uma máscara – e seu rosto tem que se moldar dentro dela.
Eu tinha que balear o elefante. Havia me comprometido comigo mesmo fazer isso,
quando mandei buscar o fuzil. Um sahib tem que agir como um sahib; tem que
parecer decidido, conhecer sua própria mente e ter atitudes definidas. Ter
percorrido todo esse caminho com o fuzil nas mãos, duas mil pessoas marchando
nos meus calcanhares e depois sair-me dessa sem mais, sem fazer nada – não,
isso era impossível. A multidão iria rir-se de mim.
E a minha vida toda, a vida de cada homem branco no Oriente, era um esforço
imenso para evitar esse riso.
Mas eu não desejava atirar no elefante. Olhava-o batendo os feixes de capim
contra os joelhos, com aquele ar de avó preocupada que os elefantes têm. A mim,
parecia-me um assassínio abatê-lo. Naquela idade, eu não tinha escrúpulos em
matar animais, porém nunca havia abatido um elefante e nunca desejara.
(De certa forma, sempre parece pior matar um animal grande.)
Além disso, havia que levar em consideração o dono do animal. Vivo, o elefante
valia no mínimo cem libras esterlinas; morto, teria apenas o valor das presas –
cinco libras esterlinas, talvez.
Contudo, eu precisava agir rápido. Virei-me para uns birmaneses aparentemente
experientes que estavam lá quando cheguei e perguntei como o elefante havia se
comportado. Todos disseram a mesma coisa: ele não prestaria atenção na gente se
o deixássemos em paz, mas atacaria se chegássemos muito perto.
Ficou bastante claro para mim o que eu deveria fazer. Deveria me aproximar do
elefante e pôr à prova seu comportamento. Se atacasse eu poderia atirar. Se não
prestasse atenção em mim, seria seguro deixá-lo até que o condutor voltasse.
Porém eu também sabia que não faria isso. Era pouco hábil com um fuzil – e o
chão era de um barro mole em que se afundava a cada passo. Se o elefante
atacasse e eu errasse o alvo, teria a mesma chance de escapar que a de um sapo
sob um rolo compressor.
Mesmo assim, não pensava na minha pele em especial, somente nos rostos amarelos
atentos, atrás de mim. Porque, naquele momento, com a multidão a me observar,
não sentia um medo comum, como sentiria se estivesse sozinho. Um branco não
deve demonstrar medo na frente dos “nativos”; e assim, em geral, não tem medo.
O único pensamento em minha cabeça era que, se algo desse errado, aqueles dois
mil birmaneses me veriam perseguido, pego, esmagado e reduzido a um cadáver de
dentes arreganhados como aquele indiano no topo da colina.
E, se isso ocorresse, seria bem provável que alguns deles rissem. Isso não
poderia ser.
Havia apenas uma alternativa. Meti os cartuchos no depósito do fuzil e me deitei
na estrada para poder mirar melhor. A multidão se imobilizou e inúmeras
gargantas soltaram um suspiro profundo, baixo e feliz, como de pessoas que vêem
a cortina do teatro enfim se erguer. Teriam, afinal, um pouco de diversão.
O fuzil era um belo objeto alemão com um ponto de mira de retículo de fios
cruzados. Naquele momento, eu não sabia que, ao abater um elefante, se deve
atirar para cortar uma barra imaginária que vai de um ouvido a outro. Deveria,
portanto, uma vez que o elefante estava de lado, ter mirado o ouvido; na
verdade, mirei vários centímetros à frente dele, achando que o cérebro estaria
mais adiante.
Quando puxei o gatilho, não ouvi o estrondo nem senti o coice – nunca se sente
quando se atinge o alvo -, mas ouvi o barulho infernal de alegria que estourou
da multidão.
Naquele instante, num espaço de tempo bem curto, mesmo para um projétil chegar
lá, uma mudança terrível e misteriosa se deu no elefante. Ele não se agitou nem
tombou, mas cada traço de seu corpo sofreu uma transformação. Parecia de
repente ferido, contraído, extremamente velho, como se o espantoso impacto do
projétil o tivesse paralisado sem derrubar. Por fim, depois do que pareceu
muito tempo – devem ter sido uns cinco segundos -, ele cedeu, fraco, sobre os
joelhos. A boca babou. Uma enorme senilidade pareceu tomar conta dele. Era
possível imaginá-lo com mil anos de idade.
Atirei de novo, no mesmo ponto.
No segundo tiro, ele não caiu, mas se firmou com desesperada lentidão sobre as
patas e se manteve em pé, combalido, as pernas fraquejando e a cabeça pendendo.
Atirei uma terceira vez. Foi o tiro de misericórdia. Era possível ver a agonia
sacudir-lhe o corpo inteiro e arrancar-lhe das pernas o último resquício de
força. Mas, ao tombar, pareceu por um momento que se levantava, porque, quando
as pernas traseiras cederam, ele deu a impressão de se elevar como uma enorme
pedra, a tromba erguendo-se em direção ao céu como uma árvore.
Ele barriu pela primeira e última vez. E, em seguida, caiu, a barriga voltada
para mim, com um estrondo que pareceu estremecer até mesmo o chão em que eu
estava deitado.
Levantei-me. Os birmaneses já passavam correndo pelo barro. Era evidente que o
elefante jamais voltaria a erguer-se, mas não estava morto. Respirava de forma
cadenciada, com longos arquejos estrondosos, o volumoso flanco a expandir-se e
retrair dolorosamente. A boca estava escancarada – pude enxergar em seu
interior cavernas de uma garganta rosa claro.
Esperei um longo tempo que ele morresse, mas a respiração não enfraquecia.
Afinal, disparei os dois projéteis restantes no ponto em que pensei que o
coração deveria estar. O sangue grosso jorrou dele como veludo vermelho e,
ainda assim, ele não morreu. O corpo nem sequer se contraiu, quando os
projéteis o atingiram, a respiração torturada prosseguiu sem uma pausa.
Estava morrendo muito devagar e numa grande agonia, porém em algum mundo
distante de mim, em que nem mesmo um projétil poderia mais lhe fazer mal.
Senti que tinha de pôr um fim àquele barulho medonho. A mim, parecia horrendo
ver um animal enorme deitado lá, sem forças para se mexer e, no entanto, sem
forças para morrer, sem que eu fosse capaz de matá-lo.
Mandei buscar meu fuzil pequeno e despejei projétil atrás de projétil em seu
coração e em sua garganta. Eles pareciam não ter efeito. Os arquejos torturados
continuaram com a mesma regularidade de um ponteiro de relógio.
No fim, não consegui suportar mais e fui embora. Soube, depois, que levou meia
hora para ele morrer. Os birmaneses chegaram com dah e cestas, antes mesmo de eu
ir, e me contaram que, à tarde, tinham pelado o corpo quase até os ossos.
Depois, claro, ocorreram discussões intermináveis sobre o abate do elefante. O
dono ficou furioso, mas era apenas um indiano e nada podia fazer. Além do mais,
legalmente, eu fizera a coisa certa, pois um elefante enfurecido deve ser morto
como um cão raivoso, se o dono não o controlar.
Entre os europeus, a opinião se dividiu. Os mais velhos disseram que eu estava
certo; os mais jovens, que era uma lástima terrível abater um elefante por ele
ter matado um cule, pois um elefante vale bem mais do que um maldito cule de
Coringhee.
E, mais tarde, fiquei contente de que o cule estivesse morto; fornecia-me a
razão legal e pretexto suficiente para que eu tivesse abatido o elefante.
Muitas vezes me perguntei se alguém percebeu que fiz o que fiz unicamente para
evitar parecer um bobo.
George Orwell
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