«A Actriz»
Salomé - Nazimova em Cena
59- «A ACTRIZ»
Existiu outrora uma grande actriz. Uma mulher que alcançara
tamanhos triunfos que todo o mundo da arte a adorava, curvado a seus pés.
O incenso da adoração perfumara-lhe a vida por muitos anos e
vedara-lhe os olhos para as outras coisas, de sorte que ela a nada mais
aspirava.
Não obstante, chegou o dia em que conheceu um homem, a quem
amou com toda a força da alma. Então sua arte, seus triunfos e as nuvens de
incenso nada mais significaram para ela – o amor era toda a sua vida. Mas
embora pensasse assim, o homem que ela amava tornou-se ciumento – ciumento do
público que não mais lhe interessava.
Pediu-lhe que desistisse da sua carreira e abandonasse o
palco para sempre. Ela acedeu sem resistência, e disse:
- O amor é melhor do que a arte, melhor do que a fama,
melhor do que a própria vida.
E logo abandonou alegremente o palco e todos os triunfos
para dedicar sua vida ao homem que amava.
O tempo transcorreu, o amor do homem começou rapidamente a
diminuir e a mulher que tudo havia sacrificado por ele percebeu-o; a certeza
disso caiu-lhe n`alma como a neblina fria do entardecer, envolvendo-a da cabeça
aos pés numa mortalha de desespero. Tratava-se, porém, de uma mulher corajosa,
decidida, e embora com a mágoa estampada no rosto, não se deixou abater.
Compreendeu que teria de sobrepujar a crise da sua vida, a crise da qual
dependia o seu destino.
Com perspicácia e cruel clarividência, sentiu a realidade
que lhe despedaçava o coração. Sacrificara a carreira ao seu amor e agora este
amor lhe fugia. Se não encontrasse meios para reanimar a chama que bruxuleava e
breve se apagaria totalmente, se conservaria solitária em meio aos escombros de
sua vida arruinada.
E a mulher, que fora uma grande actriz, percebera que a sua
arte, em vez de ser-lhe um estímulo ou uma inspiração nesta fase penosa da
vida, demonstrara o contrário – era desvantagem e obstáculo. Alheara-se da
orientação dos directores de cena e das ideias e conselhos dos autores. Até
então nada fizera sem eles – cada pensamento, cada entonação de voz e, mesmo,
cada gesto era-lhe sugerido, pois esta é a arte do actor. E, agora, quando se
via obrigada a pensar, criar e agir por si mesma, sentia-se desamparada, sem
recursos, como uma criança repentinamente às voltas com um grande problema. Mas
à medida que os dias se passavam, impunha-se cada vez mais acção pronta e
enérgica.
Um dia, quando andava de um lado para o outro, com o gérmen
selvagem do desespero crescendo-lhe no íntimo a cada minuto que passava, um
homem foi vê-la. Ele fora empresário do teatro onde ela trabalhara. Viera
pedir-lhe que representasse numa nova peça. Ela recusou. Que iria fazer no
palco com essa arte falsa que transforma aqueles que a praticam em fantoches,
fantoches irremediáveis, movidos por cordéis manejados pelas mãos dos autores e
directores de cena?
Agora ela se encontrava face a face com a verdadeira
tragédia da vida, ao lado da qual todas as falsas tristezas do palco nada mais
eram senão lantejoulas e bambinelas. Contudo, o empresário insistiu,
dizendo-lhe que a oferta significava dinheiro para ele, zumbindo-lhe em torno
com a persistência de uma mosca no outono, que não quer ser enxotada.
Não quereria pelo menos ler a peça? Para livrar-se dele,
leu-a, e reconheceu que a tragédia impressa era a tragédia da sua própria vida.
A mesma situação: o problema estava resolvido.
O destino viera em auxílio da atriz numa peça teatral. Ela
devia representá-la dominando inteiramente cada detalhe do enredo. Estudou,
então, a parte que lhe competia e a representou para um grande auditório. Actuou
com fervor do génio que jamais ultrapassara durante a sua carreira e o aplauso
que retumbou de todos os lados foi a homenagem irresistível tributada pelos
espíritos e corações dos homens àqueles que possuem génio.
Quando tudo chegou ao fim, ela voltou para casa fatigada e
um tanto surpresa com os gritos e aplausos da multidão ainda lhe ressoando nos
ouvidos. Dera-lhe o máximo, pusera-lhe aos pés o poder e a maravilha da sua
alma. Tudo que lhe restava agora era um sentimento de impotência e fragilidade.
Chegara à casa entristecida e carregada de flores. Repentinamente, observou que
havia dois pratos na mesa preparada para a ceia e lembrou-se de que, nesta
noite, fora resolvido o seu destino. Esquecera-o até então. Naquele momento o
homem que ela amara entrou, indagando:
- Cheguei na hora?
Ela olhou para o relógio, e respondeu:
- Chegaste na hora, mas demasiadamente tarde.
Oscar Wild
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