«Cronologia Viva»
Banda-desenhada, por JPGalhardas
77- «CRONOLOGIA VIVA»
O salão do Conselheiro de Estado Charamikin está mergulhado
em agradável penumbra. A grande lâmpada de bronze, com seu quebra-luz verde,
tinge, à maneira de uma “noite da Ucrânia”, as paredes, os móveis, as
fisionomias… De quando em quando, na lareira expirante, abrasa-se uma acha que
se consome, e por um instante projeta nos rostos um clarão de incêndio. Isto,
porém, não perturba a harmonia geral das luzes. O tom de conjunto, como diriam
os pintores, mantém-se.
Ao pé da lareira, acha-se afundado em uma poltrona, na
postura dum homem que acaba de jantar, Charamikin em pessoa, senhor idoso, de
suíças cinzentas de funcionário, olhos de um azul doce. Transparece-lhe no
rosto a benignidade. Um sorriso melancólico franze-lhe os lábios. A seus pés,
sobre um mocho, com as pernas voltadas para a lareira e estirando-se
preguiçosamente, está sentado o Vice-Governador Lopnef, galharda figura de
cerca de quarenta anos.
Junto ao piano brincam os filhos de Charamikin – Nina,
Kólia, Nádia e Vânia.
Do salão da Sra. Charamikin chega, pela porta entreaberta,
uma luz tímida. Ali, sentada à secretária, vê-se Ana Pavlovna, presidenta do
Comité das damas da cidade — jovem senhora, viva e picante, dos seus trinta
anos e mais alguma coisa. Através do lornhom, os olhos negros e vivos deslizam
pelas páginas de um romance francês. Sob o romance encontra-se, dilacerado, um
relatório do Comité, do ano anterior.
— Antigamente, nesse ponto de vista — diz Charamikin,
piscando os olhos pacatos à claridade dos tições morrediços —, nossa cidade era
mais favorecida. Não se passava um inverno que não aparecesse alguma estrela.
Tivemos atores e cantores célebres. E agora?… Sabe o diabo o que é! Afora
prestidigitadores e tocadores de realejo, não vem mais ninguém. Nenhum prazer
estético… Parece que vivemos no mato… Sim… Lembra-se, Excelência, daquele
trágico italiano?… Como se chamava mesmo?… Um moreno, alto… Queira Deus que eu
me lembre! Ah! sim! Luigi Ernesto di Ruggiero. Um talento notável… Que força!
Era ele abrir a boca, e o teatro em peso estremecia. A minha Anniutotchka se
interessava muito pelo talento dele. Conseguiu-lhe o teatro e vendeu bilhetes
para dez espetáculos… Ele, em recompensa, lhe deu lições de declamação e de
música. Um amor de homem! Ele esteve aqui… não vá eu enganar-me… há doze anos…
Não, estou enganado… Menos, apenas dez. Anniutotchka, que idade tem a nossa
Nina?
— Vai fazer dez anos — gritou Ana Pavlovna lá do seu
escritório. — Por quê?
— Nada, minha filhinha, só para saber… E às vezes também
vinham bons cantores… Lembra-se do tenore di grazia Priliptchin? Que amor de
homem! Que aparência!… Um louro… semblante expressivo, maneiras parisienses… E
que voz, Excelência! Só tinha um defeito: cantava algumas notas com o ventre e
emitia o ré em falsete; no mais, tudo era bom. Dizia-se aluno de Tamberlick…
Anniutotchka e eu conseguimos para ele o salão do Círculo, e, como prova de
gratidão, ele cantava em nossa casa, dias e noites… Ensinava canto a
Anniutotchka… Esteve aqui, lembro-me bem, pela Quaresma, isto há… doze anos.
Não, mais!… Que memória, santo Deus! Anniutotchka, quantos anos tem a nossa
pequena Nádia?
— Doze anos.
— Doze… se acrescentarmos dez meses… Exatamente… treze
anos!… Antigamente havia na cidade — como direi? — mais vida… Vejamos, por
exemplo, os nossos saraus de beneficência. Que belos saraus que houve… Que
encanto! Tocava-se, cantava-se, declamava-se… Depois da guerra, lembro-me bem,
houve aqui prisioneiros turcos. Anniutotchka organizou um sarau em benefício dos
feridos. Rendeu mil e cem rublos… Os oficiais turcos ficaram doidos com a voz
de Anniutotchka, e levavam o tempo a lhe beijar a mão. Eh! eh!… Apesar de
asiáticos, são pessoas reconhecidas, os turcos. O sarau alcançou tamanho êxito
que — imagine V. Exa. — eu anotei no meu diário. Isto foi, se estou bem
lembrado, em 76… Não… Em 77… Não! Um momento! Quando foi mesmo que tivemos os
turcos? Anniutotchka, quantos anos tem o nosso Kolitchka?
— Eu tenho sete anos, papai — disse Kólia, garoto trigueiro,
de cabelos pretos como carvão.
— Sim, a gente envelhece — assenta Charamikin, sorrindo. — A
nossa energia já não é a mesma… Eis aí a razão de tudo… A velhice, meu caro!
Faltam precursores novos, e os velhos envelheceram… Já não se tem o mesmo
ardor. Quando eu era mais moço, não gostava que as pessoas se aborrecessem… Era
o primeiro a ajudar a nossa Ana Pavlovna… Tratava-se de organizar um sarau de
beneficência, uma tômbola, de dar apoio a uma celebridade estrangeira? Eu
largava tudo e metia mãos à obra… Um inverno, recordo-me bem, corri tanto,
trabalhei tanto, que caí doente… Não posso esquecer esse inverno… Lembra-se do
espetáculo que organizamos com a nossa Ana Pavlovna em benefício das vítimas do
incêndio?
— Em que ano foi isso?
— Não faz muito tempo… Em 79. Não, creio que em 80. Um
momento. Que idade tem nosso Vânia?
— Cinco anos — grita Ana Pavlovna lá do seu salão.
— Então foi há seis anos… Sim, meu caro, tantas coisas…
Agora já não há nada disso! O ardor já não é o mesmo.
Lopnef e Charamikin meditam.
A acha morrediça aviva-se pela
última vez e se cobre de cinza.
Anton Tchekhov
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