«Os Namorados»
Marcus Ashley
83- «SÃO VALENTIM»
O rapaz e a moça entraram na pousada e, de um jeito tímido,
ele perguntou o preço da diária. O velho Lilico informou e o rapaz e a moça
trocaram um olhar em que faiscaram joias de diversos tamanhos. A maior delas
era a cumplicidade.
Enquanto o rapaz preenchia a ficha de entrada, a moça se afastou um pouco para
examinar melhor o quadro na parede — e pude vê-la por inteiro.
Era muito bonita. Tinha os cabelos e a pele claros. Alta, magra, ossos
salientes nos ombros. Estava no mundo há pouco mais de uma década e meia e, com
certeza, alguém que recusara já havia escrito poemas desesperados pensando
nela. Ou cortado os pulsos — o que é quase a mesma coisa.
Embora não merecesse, o quadro recebeu toda sua atenção por alguns instantes.
Era uma pintura ordinária. Eu já tivera a oportunidade de analisá-la durante as
longas tardes em que a chuva me impedia de sair para caminhar pela cidade. Uma
cidade habitada, fora da temporada turística, por velhos, aposentados e hippies
extemporâneos. Gente que tentava, de um jeito ou de outro, ser esquecida.
O quadro: penso que o artista havia experimentado um momento de genuína
felicidade ao contemplar, em algum canto do país, aquelas montanhas, aquele
prado, aqueles cavalos. E, generoso, decidira compartilhar esse momento com o resto
da humanidade. Mas a verdade é que fracassara. A arte não é feita de boas
intenções.
O olhar com que a moça se despediu — para sempre — daquela obra continha um
pouco de piedade. E, com isso, ela me conquistou em definitivo.
O velho Lilico entregou a chave ao rapaz, que se voltou e sorriu para a moça.
Seu ar era de alguém vitorioso. Mas sou capaz de apostar que a mão que ele
juntou à dela, antes de subirem a escada de madeira, tinha a palma molhada de
suor. Havia um princípio de rubor no rosto dela. Eram muito jovens e estavam
vivendo um grande momento, mas não sabiam disso ainda. Essas coisas a gente só
compreende depois.
Lilico deixou o balcão da recepção e foi até a copa, onde falou alguma coisa
para Jair, um de seus empregados. Em seguida veio até a mesa que eu ocupava.
«Gosto de gente que chega para hospedar-se sem nenhuma bagagem», ele comentou.
«E a felicidade que eles carregam, não conta?», eu perguntei.
Ele examinou o tabuleiro, como se estivesse tentando rememorar a jogada que
pretendia fazer antes de ser interrompido pela chegada do casal.
«Mandei o Jair levar uma garrafa de champanhe para eles. Cortesia da casa».
«Fez bem», eu disse.
«Gozado, sabe quem essa moça me lembrou?»
Eu disse: «Sei».
«Acho que foram os olhos dela», ele falou. «Muito parecidos.»
Retomamos o jogo e não falamos mais do casal. Eu, porém, continuei pensando
neles. Num dia como aquele, anos antes, uma mulher, que entrava comigo num
hotel bem diferente daquela pousada, me dissera: «Hoje eu vou te dar um
presente muito especial».
Um pouco depois da meia-noite interrompemos o jogo e o velho Lilico recolheu as
peças e guardou o tabuleiro. E eu já estava no meio da escada, a caminho do meu
quarto, quando ele perguntou:
«Você ainda pensa nela?»
«De vez em quando eu penso.»
«E por que você não vai atrás dela? Vocês dois ainda têm alguns anos pela
frente.»
«A mágica não acontece duas vezes», eu disse.
O velho Lilico balançou a cabeça.
«Você sabe que só em filme francês antigo o herói termina seus dias em
hotéis vagabundos, escrevendo livros que nunca irá publicar».
Eu me limitei a sorrir. Então ele me desejou «boa noite» e voltou para a
recepção.
Eu subi a escada e, ao chegar ao corredor, parei diante da porta do quarto que
o casal ocupava e tentei ouvir alguma coisa. Mas tudo estava silencioso. Entrei
no meu quarto e, enquanto me despia, pensei no velho Lilico. Ele tinha razão:
ainda me restavam alguns anos pela frente. E essa era a pior parte da história.
Marçal Aquino
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Poet'anarquista
Um conto muito bonito!
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