domingo, 16 de fevereiro de 2014

OUTROS CONTOS

«O Café de Surata», por Bernardin de Saint-Pierre.

«O Café de Surata»
Café * Surá

84- «O CAFÉ DE SURATA»

Havia em Surata um café onde muitos estrangeiros se reuniam à tarde. Certo dia aí foi um “seidre” persa, ou doutor da lei que escrevera toda a sua vida sobre a teologia e que não mais acreditava em Deus. “Que é Deus? dizia; de onde vem? Quem o criou? onde está? Se fosse um corpo nós o veríamos; se fosse um espírito seria inteligente e justo: não permitiria que houvesse infelizes sobre a terra. Eu próprio, após tanto haver trabalhado a seu serviço, seria pontífice em Ispahan e não teria sido obrigado a fugir da Pérsia, depois de haver procurado esclarecer os homens. Logo, Deus não existe. Destarte o doutor, transviado por sua ambição, à força de raciocinar sobre a razão primeira de todas as coisas, acabara perdendo a sua e acreditando que não era a sua própria inteligência que deixara de existir, mas sim aquela que governa o universo. Tinha como escravo um cafre quase nu, que ficou à porta do café. Quanto a ele, foi deitar-se num divã e tomou uma tapa de coquenar ou de ópio. Quando essa bebida começou a esquentar-lhe o cérebro, dirigiu-se ao escravo que estava sentado numa pedra, ao sol, entretido em afugentar as moscas que o devoravam, e disse-lhe: “Miserável negro, acredita na existência de Deus?” – “Quem pode duvidar?” .respondeu-lhe o cafre. Pronunciando essas palavras, o cafre tirou da tanga que lhe rodeava a cintura uma figurinha de madeira e disse: “Aqui está o Deus que me protege desde que estou no mundo; é feito de um galho da árvore sagrada de minha terra.” Todos as pessoas que se encontravam no café ficaram tão surpresas com a pergunta do senhor quanto com a resposta do escravo.

Então um brâmane, encolhendo os ombros, disse ao negro: “Pobre imbecil, como, levas teu Deus em tua cintura? Saiba que o único Deus que há é Brama, criador do mundo, e cujos tempos ficam às margens do Ganges. Os brâmanes são os seus únicos sacerdotes e é por sua especial proteção que eles subsistem há cento e vinte mil anos, apesar de todas as revoluções da Índia”. Imediatamente, um judeu, agenciador de negócios, tomou a palavra e disse: “Como podem acreditar os brâmanes que Deus só possui templos na Índia e que ele só exista para sua casta? O único Deus é o de Abraão, cujo único povo é o de Israel. Ele conserva-o, embora dispersado por toda a terra, até reuni-lo em Jerusalém para lhe dar o império das nações, quando tiver sido reedificado seu templo, outrora a maravilha do universo.” Ao pronunciar essas palavras, o israelita derramou algumas lágrimas. Dispunha-se a prosseguir quando um italiano, trajado de azul, disse-lhe colérico: “Está fazendo Deus injusto, dizendo que ele só ama o povo de Israel. Ele repeliu-o há mais de mil e setecentos anos, como pode verificar pela sua própria dispersão. Hoje ele chama todos os homens para a Igreja Romana, fora da qual não há salvação.” Um ministro protestante, da missão dinamarquesa de Trinquebar, respondeu empalidecendo ao missionário católico: “Como pode limitar a salvação dos homens a sua comunhão idólatras? Saiba que só se salvarão aqueles que, conforme os Evangelhos, adorarem Deus em espírito e em verdade, sob a lei de Jesus.” Aí um turco, oficial da alfândega de Surata, que fumava seu cachimbo, disse gravemente aos dois cristãos: “Padres, como podem restringir o conhecimento de Deus às suas igrejas? A lei de Jesus foi abolida depois da chegada de Mafoma, o Paráclito predito pelo próprio Jesus, o Verbo de Deus. Sua religião subsiste apenas em alguns reinos, e foi sobre suas ruínas que a nossa se ergueu na mais bela parte da Europa, da África, da Ásia e de suas ilhas. Ela hoje se acha instalada no trono do Mogol e espalha-se até a China, esse país de sabedoria. Os senhores mesmos reconhecem a condenação dos judeus à sua humilhação; reconheçam, portanto, a predestinação do Profeta às suas vitórias; só se salvarão os amigos de Mafoma e de Omar; quanto aos seguidores de Ali, são infiéis.” A tais palavras, o “seidre”, que era da Pérsia, onde o povo pertence à seita de Ali, pôs-se a sorrir; mas começou no café uma grande disputa por causa de todos os estrangeiros que pertenciam a várias religiões e entre os quais ainda havia cristãos abissínios, coptas, lamas tártaras, árabes ismaealitas, e guebros, ou adoradores do fogo. Todos discutiam sobre a natureza de Deus e sobre seu culto, cada qual afirmando que a verdadeira religião só existia em sua terra.

Havia também no café, um letrado da China, discípulo de Confúcio, que viajava para se instruir. Estava a um canto, tomando chá, tudo ouvindo sem pronunciar palavra. 0 turco, funcionário de alfândega, dirigindo-se a ele, gritou com voz forte: “Bom chinês, que se conserva em silêncio, o senhor sabe que muitas religiões penetraram na China? Assim mo disseram mercadores de seu país que necessitavam de meus serviços, afirmando-me que a melhor era a de Mafoma. Renda, – a exemplo deles, justiça à verdade: que pensa, de Deus e da religião de seu Profeta?” Fez-se então profundo silêncio no café. O discípulo de Confúcio, retirando as mãos das largas mangas de sua veste, e cruzando-as sobre o peito, concentrou-se e disse em voz suave e pausada: “Senhores, dir-lhes-ei, caso mo permitam, que a ambição é que impede, em todas as coisas, que os homens fiquem de acordo. Se tiverem a paciência de me ouvir, hei de lhes citar um exemplo que ainda está muito recente em minha memória. Quando parti na China, com destino a Surata, embarquei num navio inglês que fizera a volta do mundo. Durante a viagem, ancoramos na costa oriental de Sumatra. Cerca de meio-dia, havendo eu descido à terra com muitos homens da tripulação, fomos sentar-nos à beira-mar, junto a uma aldeola, debaixo de coqueiros a cuja sombra repousavam muitos homens de diferentes países. Entre eles havia um cego que perdera a visão à força de contemplar o sol. Tivera a ambiciosa loucura de compreender sua natureza, a fim de apropriar-se de sua luz. Tentara todos os meios da ótica, da química, e mesmo da necromancia, para encerrar numa garrafa um de seus raios; não havendo conseguido faze-lo, dizia: A luz do sol não é absolutamente um fluido, porque não pode ser agitado pelo vento; não é absolutamente um sólido, porque não se pode partir; de modo algum um fogo, porque não se apaga na água; de modo algum é espírito, porque é visível; não é um corpo, porque não é suscetível de ser manejada; nem mesmo é um movimento, porque não agita os corpos mais leves: logo, não é coisa alguma”. Afinal, de tanto contemplar o sol e raciocinar sobre sua luz, perdera os olhos, e, o que é pior, a razão. Acreditava que não era a sua visão, mas sim o sol, que deixara de existir no universo. Tinha como guia um negro que, depois de fazer seu amo sentar-se à sombra de um coqueiro, apanhou do chão um coco e pôs-se a fazer uma candeia com a casca, uma mecha com a fibra, e a espremer um pouco de óleo do caroço para pô-lo na candeia. Enquanto o negro estava assim entretido, disse-lhe o cego suspirando: “Então não há mais luz no mundo? Há a do sol, respondeu o negro. – Que é o sol? retrucou o cego. – Nada sei a esse respeito, respondeu o africano, a não ser que começo a trabalhar quando ele nasce e acabo quando se esconde. Sua luz interessa-me menos que a de minha candeia, que me ilumina em minha choupana; sem ela eu não poderia atende-lo durante a noite”. E então; apontando para o coquinho disse: “Aqui está meu sol”. Ao ouvir isso um homem da aldeia, que andava com muletas, começou a rir. E, julgando que o cego nascera assim, disse-lhe: “Saiba que o sol é um globo de fogo que nasce todos os dias no mar e que se põe todas as tardes no ocidente, nas montanhas de Sumatra. É o que o senhor veria pessoalmente como todos nós, se possuísse a visão”. Um pescador tomou então a palavra e disse ao coxo: “Bem se vê que o senhor nunca saiu de sua aldeia. Se possuísse pernas e tivesse dado a volta. à ilha de Sumatra, saberia que o sol não se põe em suas montanhas, mas sim, que todas as manhãs nasce do mar e todas as tardes volta a ele para se refrescar; é o que todos os dias vejo ao longo da costa”. Um habitante da península da Índia disse então ao pescador: “Como pode um homem dotado de senso comum acreditar que o sol seja um globo de fogo que todos os dias sai do mar e que a ele retorna sem se apagar? Saiba, assim, que o sol é uma “denta” ou divindade de meu país, que todos os dias percorre o céu num carro, girando em torno da montanha de ouro da Meruwa, que quando se eclipsa é que foi – devorado pelas serpentes Ragu e Quetu, das quais só se liberta com as orações dos hindus nas margens do Ganges. É uma ambição bem louca, para um habitante de Sumatra julgar que ele só resplandece no horizonte de sua ilha; ela só pode entrar na cabeça de um homem que apenas haja navegado numa piroga”. Um “lascar”, patrão de um barco mercante que estava fundeado, tomou então a palavra e disse: “Ambição ainda mais louca é a de julgar que o sol prefere a Índia a todos os países do mundo. Viajei pelo mar Vermelho, nas costas da Arábia, em Madagascar, nas ilhas Molucas e nas Filipinas: o sol ilumina a todas essas regiões tanto quanto a Índia. Não gira absolutamente em torno de uma montanha; mas ergue-se nas ilhas do Japão por esse motivo chamadas Jepon ou Gue-puan, terra do sol nascente; e deita-se muito longe, no ocidente, atrás das ilhas inglesas. Tenho toda a certeza, porque em criança o ouvi de meu avô, que viajara até os confins do mar.” Ia prosseguir quando um marinheiro inglês de nossa tripulação o interrompeu dizendo: “Não há região onde se conheça melhor o curso do sol do que na Inglaterra; saiba, pois, que ele não se ergue nem se põe em parte alguma. Dá sem cessar volta ao mundo; e tenho toda certeza disso, porque o mesmo acabamos de fazer e por toda parte o encontramos”. Tomando, então, um rotim das mãos de um dos ouvintes, traçou um círculo na areia, procurando explicar-lhe o curso do sol de um trópico a outro; mas, não o conseguindo fazer, tomou como testemunha de tudo o que acabava de dizer o piloto de seu navio.

O piloto que era um homem sábio, e que ouvira toda a discussão sem dizer coisa alguma, quando viu todos os presentes manterem-se em silêncio para ouvi-lo, tomou palavra e disse: “Cada um de vocês engana os outros e engana-se. O sol não gira absolutamente em redor da terra; mas a terra é que gira à sua volta, apresentando-lhe sucessivamente, em cada vinte e quatro horas, as ilhas do Japão, as Filipinas, as Molucas, Sumatra, a África, a Europa, a Inglaterra, e muitas outras regiões. O sol não brilha apenas para uma montanha, uma ilha, um horizonte, um mar, nem mesmo para a terra, mas encontra-se no centro do universo, de onde a ilumina e mais cinco outros planetas que também giram à sua roda, e alguns dos quais são muito maiores que a terra e estão muito mais distantes do sol, que ela. Assim, entre outros Saturno, de trinta mil léguas de diâmetro e que está a duzentos e oitenta e cinco milhões de léguas do sol. Não me refiro às luas, que refletem a luz do sol nos planetas dele afastados, e que são bastante numerosas. Cada um dos presentes teriam a ideia dessas verdades se se contentasse em dirigir, à noite, os olhos para o céu e não tivesse a ambição de julgar que o sol só brilha para a sua terra”. Assim falou, com grande surpresa dos ouvintes, o piloto que dera a volta ao mundo e observara o firmamento.

“Em relação a Deus, acrescentou o discípulo de Confúcio, acontece o mesmo que em relação ao sol. Todos os homens acreditam possuí-lo com exclusividade, em sua capela, ou pelo menos em sua terra. Todos os povos julgam encerrar em seu templo aquele que o universo visível não contém. E entretanto haverá algum templo comparável àquele que o próprio Deus ergueu para congregar todos os homens na mesma comunhão. Todos os templos do mundo são feitos apenas à imitação do templo da natureza. Em quase todos eles se encontram lavabos ou pias, colunas, abóbadas, lâmpadas, estátuas inscrições, livros da lei, sacrifícios, altares, sacerdotes. Mas em que templo haverá uma pia tão vasta quanto o mar, que não está contido numa concha? colunas tão belas quanto as árvores das florestas, ou dos pomares carregados de frutos? abóbada tão alta quanto o céu e lâmpada tão resplandecente quanto o sol? Onde veremos estátuas tão interessantes como tantas criaturas sensíveis que se amam, que mutuamente se ajudam e que falam? Inscrições tão legíveis e mais religiosos que as próprias mercês da natureza? um livro da lei tão universal quanto o amor de Deus baseado em nosso reconhecimento e quanto o amor de nosso semelhante baseado em nossos próprios interesses? sacrifícios mais comoventes que o de nossos louvores àquele que tudo nos deu, e que o de nossas paixões por aqueles com os quais tudo devemos partilhar? finalmente, um altar tão augusto quanto o coração do homem de bem, cujo pontífice é o próprio Deus? Assim, quanto mais o homem ampliar o poder de Deus, tanto mais próximo estará de conhecê-lo; e quanto mais indulgência revelar para com os homens, tanto mais imitará sua bondade. Que aquele, portanto, que desfruta da luz divina, espalhada por todo o universo, não despreze o supersticioso que da mesma só distingue um raiozinho em seu ídolo, nem mesmo o ateu que está inteiramente privado dela, de medo que em punição de seu orgulho não lhe aconteça como àquele filósofo que, querendo apossar-se da luz do céu, cegou e viu-se reduzido, para se orientar, a servir-se da candeia de um negro.”

Assim falou o discípulo de Confúcio; e todas as pessoas presentes no café, que discutiam quanto à primazia de sua religião, conservaram-se em profundo silêncio.

Bernardin de Saint-Pierre

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