«A Luta com o Monstro»
Ario-Maru mata um polvo gigante,
por Kuniyoshi
92- «A LUTA COM O MONSTRO»
Depois do grande esforço, Gilliatt precisava recuperar as
forças e começou a procurar alimento. Um grande caranguejo, assustado com a
presença dele, tinha pulado na água, mas não mergulhou tanto que Gilliatt não o
visse. Fugia, e Gilliatt correu atrás dele. De repente, não viu mais nada. O
caranguejo metera‑se por algum buraco debaixo do rochedo.
Gilliatt atracou‑se aos relevos da pedra e esticou o pescoço, para tentar ver
alguma coisa. Encontrou ali uma anfratuosidade que era mais que uma fenda, era
um pórtico. O mar entrava por baixo desse pórtico, mas não era profundo. Via‑se
o fundo coberto de pedrinhas, que eram esverdeadas e revestidas de filamentos,
indicando que nunca estavam a seco. O caranguejo devia ter‑se refugiado aí.
Gilliatt pôs a faca entre os dentes, desceu do alto da rocha e saltou na água,
que o cobriu quase até os ombros. Meteu‑se pelo pórtico, e penetrou num corredor
com um esboço de abóbada ogival por cima. As paredes eram polidas e lisas. Já
não via o caranguejo. Tomara pé, caminhava, e diminuía‑se a luz. Começou a não
ver coisa alguma.
Depois de quinze passos, cessou a abóbada e ele se achou fora do corredor.
Havia mais espaço e mais luz. Os olhos iam‑se acostumando ao lugar e viam cada
vez melhor.
Descobriu ao alcance da mão uma fenda horizontal no granito. Provavelmente
estava ali o caranguejo. Meteu a mão o mais que pôde, e procurou às apalpadelas
naquele buraco de trevas. De repente, sentiu que lhe agarravam o braço. O que
ele experimentou, nesse momento, foi o horror indescritível.
Uma coisa que era delgada, áspera, chata, gelada, pegajosa e viva torcia-se na
sombra à roda de seu braço nu, e subia‑lhe para o peito. Era a pressão de uma
correia, e o impulso de uma verruma. Em menos de um segundo, uma espécie de
espiral tinha‑lhe invadido o punho e o cotovelo e tocava‑lhe o ombro. A ponta
metia‑se‑lhe na axila.
Gilliatt atirou‑se para trás, e mal pôde fazê‑lo. Estava como que pregado. Com
a mão esquerda que ficava livre, pegou na faca que tinha entre os dentes. Com
essa mão, que segurava a faca, apoiou-se no rochedo com um esforço desesperado
para retirar o braço direito. Só conseguiu inquietar a ligadura, que se apertou
mais. Era flexível como o couro, sólida como o aço, fria como a noite.
Outra correia, estreita e pontuda, saiu do buraco da rocha. Era uma espécie de
língua saindo de uma goela e lambendo medonhamente o corpo nu de Gilliatt. De
repente, esticando-se desmedida e fina, aplicou-se à pele e enrolou-se no
corpo. Ao mesmo tempo um sofrimento inaudito, sem comparação neste mundo,
levantava-lhe os músculos. Gilliatt sentia que a pele se abria em muitos
pontos, de modo horrível. Parecia-lhe que inúmeros lábios, pregados à carne,
procuravam beber-lhe o sangue.
Terceira correia saiu fora do rochedo, apalpou Gilliatt e chicoteou‑lhe os
lados como uma corda. Afinal fixou‑se como as outras.
A angústia, no paroxismo, é muda. Gilliatt não soltou um grito. Havia bastante
luz para que ele pudesse ver as formas repelentes aplicadas ao seu corpo.
Quarta ligadura, esta rápida como uma flecha, saltou‑lhe em roda do ventre e aí
se enrolou.
Era impossível cortar ou arrancar aquelas correias viscosas, que lhe aderiam
estreitamente ao corpo por muitíssimos pontos. Cada um desses pontos era um
foco de terrível e estranha dor. Sentia como se fosse engolido ao mesmo tempo
por uma porção de bocas pequeninas.
Quinta ligadura saltou-lhe ao tronco, sobrepôs‑se às outras e foi enroscar‑se
na altura do diafragma. A compressão ajuntava‑se à ansiedade. Gilliatt mal
podia respirar.
Aquelas ligaduras, pontudas na extremidade, alargavam-se como as lâminas de
espada, da ponta para o punho. Todas cinco pertenciam evidentemente ao mesmo
centro. Caminhavam e arrastavam‑se para Gilliatt. Ele sentia deslocarem‑se
essas pressões obscuras que lhe pareciam bocas.
Bruscamente uma larga viscosidade redonda e chata saiu de dentro da rocha. Era
o centro, e as cinco ligaduras prendiam‑se a ele como raios a um eixo. Do lado
oposto daquele disco imundo, podia-se ver o começo de outros três tentáculos,
presos no fundo do buraco. No meio dessa viscosidade havia dois olhos que
olhavam para Gilliatt. Ele reconheceu naquilo um polvo.
Para acreditar no polvo, é preciso tê‑lo visto. Comparadas a ele, as velhas
hidras fazem sorrir. Em certos momentos, parece que o elemento fugidio que
flutua em nossos pesadelos encontra paralelo na realidade, e dessas obscuras
ficções do sonho surgem criaturas. O ignoto dispõe do prodígio e serve-se dele
para compor o monstro. Orfeu, Homero e Hesíodo só puderam fazer a quimera, Deus
fez o polvo.
Quando Deus quer, excede no execrável. Admitidos todos os ideais, se o terror é
um fim, o polvo é uma obra-prima.
Mas onde reside o perigo do polvo? A baleia é enorme, o polvo é pequeno; o
hipopótamo tem uma couraça, o polvo é nu; a jararaca tem um silvo, o polvo é
mudo; o rinoceronte tem um chifre, o polvo não tem chifre; o escorpião tem um
dardo, o polvo não tem dardo; o tubarão tem barbatanas cortantes, o polvo não
tem barbatanas; o morcego tem asas com unhas, o polvo não tem asas; o porco‑espinho
tem espinhos, o polvo não tem espinhos; o espadarte tem um gládio, o polvo não
tem gládio; o torpedo tem um raio, o polvo não tem raio; o sapo tem um vírus, o
polvo não tem vírus; a víbora tem veneno, o polvo não tem veneno; o leão tem
garras, o polvo não tem garras; o gipaeto tem um bico, o polvo não tem bico; o
crocodilo tem uma goela, o polvo nem tem dentes.
O polvo não tem massa muscular, nem grito ameaçador, nem couraça, nem chifre,
nem dardo, nem barbatanas, nem asas, nem espinhos, nem espada, nem descarga
elétrica, nem vírus, nem veneno, nem garras, nem bico, nem dentes. Mas o polvo
é, de todos os animais, o mais formidavelmente armado.
O que é o polvo? É a ventosa.
Nos escolhos em pleno mar, onde a água mostra e esconde todos os seus
esplendores, nas cavas de rochedos não visitadas, nas cavas desconhecidas onde
abundam vegetações, crustáceos e conchas, debaixo dos profundos pórticos do
oceano, o nadador que se aventura, arrastado pela beleza do lugar, corre o
risco de um encontro. Se tiveres esse encontro, não sejas curioso: foge. Entra‑se
fascinado, sai‑se apavorado.
Nadando, o polvo conserva‑se, por assim dizer, na bainha. Nada com as antenas
fechadas. Imagine um punho costurado dentro de uma manga. Esse punho, que é a
cabeça, impele o líquido e avança com um vago movimento ondulatório. Os dois
olhos, embora grandes, são pouco distintos por serem da cor da água. Uma forma
cinzenta oscila na água, como um trapo. A pouco e pouco o trapo caminha para a
vítima, sob a forma de um guarda-chuva fechado sem o tecido. De repente abre‑se,
e oito raios projetam-se bruscamente em torno de um saco que tem dois olhos.
Esses raios vivem, flamejam ondeando. É uma espécie de roda que se desenrola,
com 4 ou 5 pés de diâmetro.
Atira‑se ao infeliz. A hidra arpoa o homem, aplica‑se à sua presa, cobre‑a,
envolve‑a com os seus longos braços. Por baixo é amarelada, por cima é térrea.
Nada pode imitar esse inexplicável matiz de poeira, como se fosse um animal
feito de cinza e morando na água. É aracnídeo pela forma, é camaleão pelo
colorido. Irritado, torna-se roxo. Coisa horrível, é flácido. Os seus nós
garroteiam, o seu contato paralisa. Tem um aspecto de escorbuto e de gangrena.
É a moléstia feita monstruosidade.
Não se pode arrancá‑lo, pois agarra‑se estreitamente à sua presa. Como? Pelo vácuo.
As oito antenas, largas na origem, vão se estreitando e terminam como agulhas.
Debaixo de cada uma delas alongam‑se paralelamente duas filas de pústulas
decrescentes, as grossas perto da cabeça, as pequenas na ponta, e cada fileira
tem 25. Há cinquenta pústulas em cada antena, e todo o animal tem quatrocentas.
Essas pústulas são ventosas. São cartilagens cilíndricas e lívidas. Na grande
espécie, vão diminuindo de diâmetro, desde uma moeda de 5 francos até a
grossura de uma lentilha. Esses pedaços de tubos saem e penetram na vítima.
Podem penetrar no corpo de um homem mais de uma polegada. É um aparelho de
sucção com a delicadeza de um teclado. Levanta‑se, esconde‑se, obedece à menor
intenção do animal. As sensibilidades mais delicadas não igualam a contratilidade
dessas ventosas, sempre proporcionadas aos movimentos internos do bicho e aos
incidentes externos. É um dragão e é uma sensitiva.
Esse monstro é aquele que os marinheiros chamam polvo, que a ciência chama
cefalópode, e que a legenda chama kraken. Os marinheiros ingleses chamam‑no
devil‑fish, o peixe‑diabo. Chamam‑no também blood‑sucker, chupador de sangue.
Nas ilhas da Mancha chamam‑no pieuvre.
Quando espreita a caça, o polvo esquiva‑se, diminui‑se, condensa-se, reduz‑se à
mais simples expressão. Confunde‑se com a penumbra. Assemelha‑se a tudo, exceto
a coisa viva. O polvo é o hipócrita, não se repara nele. Repentinamente,
abre-se.
O que pode existir de mais medonho do que uma viscosidade com uma vontade? O
viscoso cumulado de ódio?
É no mais belo azul da água límpida que surge essa hedionda estrela voraz do
mar. O que é terrível é que não se o sente de longe. Quando a gente o vê, já
está agarrado.
O polvo anda e também nada. É um tanto peixe e um tanto réptil. Arrasta-se no
fundo do mar. Utiliza as suas oito pernas. Roja-se como a lagarta.
Não tem osso, nem sangue e nem carne, é flácido. Não tem nada dentro, é uma
pele. Pode-se virar-lhe os tentáculos de dentro para fora, como dedos de uma
luva. Tem um só orifício no centro dos oito raios. É frio todo ele.
Repelente bicho. É um contato hediondo essa gelatina animada que envolve o
nadador, onde as mãos mergulham, onde as unhas trabalham, bicho que se rasga
sem matar, e que se puxa sem desgarrar, espécie de criatura resvaladiça e
tenaz, que escorrega entre os dedos. Nada iguala a súbita aparição do polvo,
medusa servida por oito serpentes. Não há aperto igual ao do cefalópode.
É uma máquina pneumática que ataca. Luta-se com o nada ornado de patas. Nem
unhas nem dentes, uma escarificação indizível. Uma mordedura é temível, mas
menos ainda que uma sucção. A garra não iguala a ventosa. A garra é o animal
que entra na carne, a ventosa é o homem sugado pelo bicho. Incham-se os
músculos, torcem-se as fibras, rebenta a pele debaixo de um peso imundo, jorra
o sangue e mistura-se horrivelmente à linfa do molusco. O bicho sobrepõe-se ao
homem por mil bocas infames. A hidra incorpora-se ao homem, o homem amalgama-se
à hidra. Ficam sendo um só. O tigre pode apenas devorar, já o polvo (horror!)
aspira, puxa o homem a si e em si.
Atado, enviscado, impotente, o homem sente-se lentamente esvaziado naquele
terrível saco, que é um monstro. Além do terrível, que é ser comido vivo, há o
inexprimível, que é ser bebido vivo.
Aquele monstro era o habitante daquela gruta. Era o medonho génio do lugar,
estava em sua casa. Quando Gilliatt, entrando pela caverna em busca do
caranguejo, viu o buraco onde pensou que ele se tivesse refugiado, o polvo
estava ali à espreita. Gilliatt metera o braço no buraco, e o polvo o agarrou.
Estava preso, era a mosca daquela aranha.
Gilliatt tinha água até a cintura, os pés agarrados nos seixos arredondados e
resvaladiços, com o braço direito atado pelas correias do polvo e o tronco do
corpo quase desaparecendo debaixo das dobras e cruzamentos daquela atadura
horrível.
Dos oito tentáculos do polvo, três aderiam à rocha, cinco aderiam a Gilliatt.
Deste modo, agarrados ao granito por um lado e ao homem pelo outro,
encadeavam-no ao rochedo. Gilliatt tinha sobre o seu corpo 250 chupadores.
Estava apertado dentro de uma grande mão, com dedos elásticos e do comprimento
de um metro, cheios de pústulas vivas que lhe fuçavam na carne.
Não se pode arrancar o polvo. Quem o tenta, fica mais fortemente amarrado. Ele
aperta-se mais, o seu esforço cresce na razão do esforço da vítima. Quanto
maior é a sacudidela, maior é a constrição.
Gilliatt só tinha um recurso: a faca. Tinha a mão esquerda livre, e nela a faca
aberta. Mas não se cortam as antenas do polvo; é um couro impossível de cortar,
pois resvala debaixo da lâmina. E tal é a forma de contato, que um corte nessas
correias atingiria a própria carne.
O polvo é formidável, mas há uma maneira de vencê-lo. Os pescadores o sabem, os
ouriços-do-mar também o sabem. Ele só é vulnerável na cabeça, e Gilliatt não o
ignorava.
Há um momento para vencer o polvo, como o há para o touro. É o instante em que
o touro curva o pescoço, é o instante em que o polvo estica a cabeça. Instante
rápido. Quem o deixa escapar, está perdido.
O polvo procura apavorar a presa. Agarra e espera o mais que pode. Gilliatt
tinha a faca na mão. As sucções aumentavam. Ele olhava para o polvo, o polvo
olhava para ele.
De repente o bicho desprendeu do rochedo a sexta antena. Atirando-a sobre
Gilliatt, procurou agarrar-lhe o braço esquerdo. Ao mesmo tempo esticou
vivamente a cabeça. Mais um segundo, e a sua boca aplicar-se-ia sobre o peito
de Gilliatt. Sangrando no corpo e preso pelos braços, ele estaria morto.
Mas Gilliatt vigiava. Espreitado, espreitava. Evitou a antena. No momento em
que o bicho ia agarrar-lhe o peito, a sua mão armada abateu-se sobre o bicho.
Houve duas convulsões em sentido inverso – a do polvo e a de Gilliatt. Foi luta
de dois relâmpagos.
Gilliatt mergulhou a ponta da faca na viscosidade chata. Com um movimento
giratório semelhante à torção de uma chicotada, fazendo um círculo à roda dos
dois olhos, arrancou a cabeça como quem arranca um dente.
Estava acabado. O bicho caiu. Parecia uma roupa que se desprende. Destruída a
bomba aspirante, desfez-se o vácuo. As quatrocentas ventosas largaram ao mesmo
tempo o rochedo e o homem. Aquele andrajo foi ao fundo da água.
Gilliatt, ofegante da luta, pôde ver a seus pés, em cima das pedras do fundo,
dois montes gelatinosos e informes – a cabeça de um lado, o resto de outro.
Dizemos resto, porque não se poderia dizer corpo.
O animal estava bem morto. Gilliatt fechou a faca.
Victor Hugo
O conto, inicialmente, era uma narração oral de extensão reduzida.
ResponderEliminarVem desse tempo a expressão: "Era uma vez"... seguindo-se a narrativa do que se pretendia contar. Desse tempo é também a expressão: "quem conta um conto acrescenta um ponto", querendo isso significar que sendo uma narrativa oral, nem sempre era contado da mesma maneira. Queremos com isto dizer que o contador do conto adaptava a narrativa à qualidade dos ouvintes.
Com o tempo, ainda na Idade Média, passou a ser esporadicamente uma narrativa escrita, mas sempre tendo em conta a sua extensão. Foi no início do século dezanove que começou a ganhar o estatuto de género literário, mas durante muito tempo, quanto a nós injustamente, era considerado um género literário subalterno.
Foi já no século vinte que ganhou dimensão e leitores, graças à extraordinária qualidade de escritores que se dedicaram a esta forma de contar histórias.
A melhor forma de entender o que pretendemos dizer, está na atribuição do Prémio Nobel de Literatura, em 2013, a Alice Munro, uma contista canadiana. Já em 2007, também através da atribuição deste prémio a Doris Lessing, uma contista inglesa, infelizmente já desaparecida, o conto tinha entrado na alta roda da literatura.
Parece-nos assim que, finalmente, este género literário ocupa o lugar que lhe pertence no campo das letras.
Daí que queiramos saudar o "Poetanarquista" por nos trazer ao conhecimento tantos e variados contos. Como é o caso deste «A Luta com o Monstro», do escritor do século dezanove, Victor Hugo.
Cabe-me saudar o comentário muito esclarecedor de 26 de Fevereiro de 2014 às 13:03. Mesmo a propósito a reflexão aqui expressa. Obrigado!
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