«Angelus nos Mares da Sicília»
Carráca séc. XVI/ JPGalhardas
78- «ANGELUS NOS MARES DA SICÍLIA»
O dia se tinha escoado em meio a exaustivos cuidados para
evitar o naufrágio, e a noite começava a descer. Aproximávamo-nos de Messina, e
eu me lembrava da profecia do piloto, que nos havia anunciado que duas horas
após a Ave-Maria teríamos chegado ao nosso destino. Isso me recordou que desde
nossa partida eu não havia visto nenhum dos nossos marinheiros cumprir
ostensivamente os deveres da Religião, que no entanto os filhos do mar
consideram sagrados.
Havia mais: uma pequena cruz de oliveira incrustada de nácar,
semelhante àquelas que os monges do Santo Sepulcro fazem e os peregrinos trazem
de Jerusalém, havia desaparecido de nossa cabine, e eu a havia reencontrado na
proa da embarcação, acima de uma imagem da Madonna di Pie’ di Grotta, sob a
invocação da qual nossa pequena embarcação estava colocada. Depois de me ter
informado se havia um motivo particular para mudar a cruz de lugar, e ter
sabido que não, eu a retomei de onde estava e a levei à cabine, na qual ficou
desde então. Estava claro que a Madonna, agradecida sem dúvida, nos protegera
na hora do perigo.
Nesse momento eu me virara, e percebi o capitão próximo a
nós.
— Capitão — disse-lhe — parece-me que em todos os navios
napolitanos, genoveses ou sicilianos, quando vem a hora da Ave-Maria, se faz
uma prece em comum. Não é esse o seu hábito a bordo do Speronare?
— De fato, Excelência, de fato! — respondeu vivamente o
capitão — E devo esclarecer que estamos embaraçados por não o podermos fazer.
— Mas o que o impede?
— Desculpe-me, Excelência, mas como nós conduzimos com
freqüência ingleses que são protestantes, gregos que são cismáticos e franceses
que não são nada, temos sempre receio de ferir a crença ou de excitar a
incredulidade de nossos passageiros pela vista de práticas religiosas que não
serão as deles. Mas quando os passageiros nos autorizam a agir cristãmente,
somos muito agradecidos a eles por isso. De sorte que, se o permite…
— Como não, capitão! Eu lhes peço, e se quiserem podem
começar em seguida; parece-me que já está próximo das dezoito horas…
O capitão tirou seu relógio, e vendo que não havia tempo a
perder, anunciou em voz alta:
— A Ave-Maria!
A estas palavras, cada um saiu das escotilhas e lançou-se no
convés. Mais de um, sem dúvida, já havia começado mentalmente a Saudação
Angélica, mas a interrompeu para vir tomar parte na prece geral.
De um extremo ao outro da Itália, essa oração, que cai em uma hora solene,
encerra o dia e abre a noite. Esse momento do crepúsculo, em toda parte cheio
de poesia, no mar se acresce de uma santidade infinita. Essa misteriosa
imensidade do ar e das ondas, esse sentimento profundo da fraqueza humana
comparada ao poder onipotente de Deus, essa escuridão que avança, e durante a
qual o perigo sempre presente vai ainda crescer, tudo isso predispõe o coração
a uma melancolia religiosa, a uma confiança santa que soergue a alma nas asas
da fé. Essa tarde sobretudo, o perigo do qual acabáramos de escapar, e que nos
era lembrado de tempos em tempos por uma onda encapelada ou rugidos longínquos,
tudo inspirava à tripulação e a nós um recolhimento profundo.
No momento em que nos juntávamos no convés, a noite começava
a tornar-se mais espessa no oriente. As montanhas da Calábria e a ponta do cabo
de Pelora perdiam sua bela cor azul para se confundir em uma tintura acinzentada
que parecia descer do céu, como se estivesse caindo uma fina chuva de cinzas. A
ocidente, um pouco à direita do arquipélago de Lipari, cujas ilhas de formas
extravagantes destacavam-se com vigor sobre um horizonte de fogo, o sol
alargado e listrado de longas faixas violetas começava a embeber a orla de seu
disco no Mar Tirreno, que, cintilante e movimentado, parecia rolar ondas de
ouro fundido.
Nesse momento o piloto levantou-se atrás da cabine e tomou
em seus braços o filho do capitão, que pôs de joelhos sobre o estrado.
Abandonando o leme, como se a embarcação estivesse suficientemente guiada pela
oração, sustentou o menino para que o balanço não lhe fizesse perder o
equilíbrio. Esse grupo singular destacou-se logo sobre um fundo dourado,
semelhante a uma pintura de Giovanni Fiesole ou de Benozzo Gozzoli. Com uma voz
tão fraca que apenas chegava até nós, e que entretanto subia até Deus, começou
a recitar a prece virginal, que os marinheiros escutavam de joelhos, e nós
inclinados.
Eis uma dessas lembranças para as quais o pincel é inábil e
a pena insuficiente; eis uma dessas cenas que nenhuma narração pode descrever,
nenhum quadro pode reproduzir, porque a sua grandiosidade está inteira no
sentimento íntimo dos atores que a realizam. Para um leitor de viagens ou um
amador das coisas do mar, será apenas uma criança que ora, homens que respondem
e um navio que flutua. Mas para qualquer um que tiver assistido a uma cena
assim, será um dos mais magníficos espetáculos que ele tenha visto, uma das
mais magníficas lembranças que ele tenha guardado. Será a fraqueza que reza, a
imensidade que olha, e Deus que escuta.
Alexandre Dumas, Pai
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