«Os Olhos dos Pobres»
«Teresa de Calcutá»
Ilustração de Kelvin Okafor
79- «OS OLHOS DOS POBRES»
Quer saber por que a odeio hoje? Sem dúvida lhe será menos
fácil compreendê-lo do que a mim explicá-lo; pois acho que você é o mais belo
exemplo da impermeabilidade feminina que se possa encontrar.
Tínhamos passado juntos um longo dia, que a mim me pareceu
curto. Tínhamos nos prometido que todos os nossos pensamentos seriam comuns,
que nossas almas, daqui por diante, seriam uma só; sonho que nada tem de
original, no fim das contas, salvo o fato de que, se os homens o sonharam,
nenhum o realizou.
De noite, um pouco cansada, você quis se sentar num café
novo na esquina de um bulevar novo, todo sujo ainda de entulho e já mostrando
gloriosamente seus esplendores inacabados. O café resplandecia. O próprio gás
disseminava ali todo o ardor de uma estréia e iluminava com todas as suas
forças as paredes ofuscantes de brancura, as superfícies faiscantes dos
espelhos, os ouros das madeiras e cornijas, os pajens de caras rechonchudas
puxados por coleiras de cães, as damas rindo para o falcão em suas mãos, as ninfas
e deusas portando frutos na cabeça, os patês e a caça, as Hebes e os Ganimedes
estendendo a pequena ânfora de bavarezas, o obelisco bicolor dos sorvetes
matizados; toda a história e toda a mitologia a serviço da comilança.
Plantado diante de nós, na calçada, um bravo homem dos seus
quarenta anos, de rosto cansado, barba grisalha, trazia pela mão um menino e no
outro braço um pequeno ser ainda muito frágil para andar. Ele desempenhava o
ofício de empregada e levava as crianças para tomarem o ar da tarde. Todos em
farrapos. Estes três rostos eram extraordinariamente sérios e os seis olhos
contemplavam fixamente o novo café com idêntica admiração, mas diversamente
nuançada pela idade.
Os olhos do pai diziam: “Como é bonito! Como é bonito!
Parece que todo o ouro do pobre mundo veio parar nessas paredes.” Os olhos do
menino: “Como é bonito, como é bonito, mas é uma casa onde só entra gente que
não é como nós.” Quanto aos olhos do menor, estavam fascinados demais para
exprimir outra coisa que não uma alegria estúpida e profunda.
Dizem os cancionistas que o prazer torna a alma boa e
amolece o coração. Não somente essa família de olhos me enternecia, mas ainda
me sentia um tanto envergonhado de nossas garrafas e copos, maiores que nossa
sede. Voltei os olhos para os seus, querido amor, para ler neles meu
pensamento; mergulhava em seus olhos tão belos e tão estranhamente doces, nos
seus olhos verdes habitados pelo Capricho e inspirados pela Lua, quando você me
disse: “Essa gente é insuportável, com seus olhos abertos como portas de
cocheira! Não poderia pedir ao maître para os tirar daqui?”
Como é difícil nos entendermos, querido anjo, e o quanto o
pensamento é incomunicável, mesmo entre pessoas que se amam!
Charles Baudelaire
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