(Arthur Charles Clarke - escritor e inventor britânico, autor de obras de divulgação científica e de ficção científica, e considerado um dos mestres da ficção científica, faleceu em Colombo, no Sri Lanka, a 18 de Março de 2008).
Poet'anarquista
«A Estrela»
Pôr-de-Sol em Rouen, por William Turner
108- «A ESTRELA»
Estamos a 3.000 anos-luz do Vaticano. Um dia, acreditei que
o espaço não tinha poderes sobre a fé, assim como acreditava que os céus
proclamariam a glória da obra de Deus. Agora, já vi essa obra e minha fé se
encontra seriamente abalada. Olho para o crucifixo, suspenso na parede da
cabine, acima do computador Mark VIU, e pela primeira vez em minha vida me
pergunto se não será um símbolo vazio.
Ainda não contei a ninguém, mas a verdade não pode ser escondida. Os factos
estão lá para todos lerem, registrados em quilómetros sem conta de fita
magnética e nos milhares de fotografias que transportamos de volta a Terra.
Outros cientistas poderão interpretá-las tão facilmente quanto eu, e não serei
eu quem vai compactuar em ocultar a verdade, facto quase sempre responsável
pela má fama da nossa ordem nos velhos dias.
A tripulação já se encontra suficientemente deprimida e não sei como eles
aceitarão esta ironia final. Poucos dentre eles possuem qualquer tipo de fé
religiosa e, no entanto, não encontrarão prazer em usar essa arma final em sua
campanha contra mim. Aquela guerrinha particular, bem-humorada, mas de
fundamental importância, que transcorreu durante todo o caminho desde a Terra.
Eles achavam divertido ter um jesuíta como astrofísico-chefe: o Dr. Chandler, por
exemplo, nunca se acostumou com isso (por que será que os médicos são tão
ateus?). Algumas vezes ele me encontrava no convés de observação, onde as luzes
eram sempre reduzidas, de modo a que as estrelas pudessem brilhar em toda a sua
glória. Ficava ao meu lado na penumbra, olhando através da grande janela oval
para os céus que se moviam lentamente à nossa volta, enquanto a nave girava,
com a rotação residual, que nunca nos incomodaríamos em corrigir.
- Bem, padre - dizia ele, afinal -, parece prolongar-se para sempre, não?
Talvez alguma coisa o tenha criado. Mas como pode acreditar que essa alguma
coisa tenha um interesse especial por nós e nosso mundinho miserável, nunca
poderei entender.
E a discussão começava enquanto, lá fora, estrelas e nebulosas giravam em seus
arcos eternos e silenciosos, além do plástico claro e sem falhas da vigia de
observação.
Acredito que, em grande parte, era a aparente incongruência de minha posição
que fazia a tripulação achar a coisa tão divertida. Seria inútil eu chamar a
atenção para os meus três artigos publicados no jornal de Astrofísica ou os
cinco no Noticias Mensais da Real Sociedade Astronómica. Lembrava-lhes que a
minha ordem era famosa há muito tempo por seus trabalhos científicos. Nós
podemos ser poucos agora, mas desde o século XVIII temos feito contribuições à
astronomia e à geografia que parecem fora de proporção com o número de nossos
quadros. Será que meu relatório sobre a nebulosa Fênix vai pôr fim aos nossos
mil anos de história? Porá fim, receio, a muito mais que isso.
Não sei quem deu esse nome à nebulosa, que me parece muito inadequado. Se
contém alguma profecia, é coisa que não será verificada durante vários bilhões
de anos. Mesmo a palavra nebulosa é um engano: trata-se de um objeto muito
menor do que aquelas estupendas nuvens de poeira - a matéria-prima das estrelas
ainda por nascer - que se espalham ao longo da Via - Láctea. Na escala cósmica,
de facto, a nebulosa Fênix é algo pequeno - uma ténue concha de gás envolvendo
uma única estrela…
Ou o que sobrou de uma estrela…
O retrato de Loyola feito por Rubens parece zombar de mim, suspenso ali, acima
dos registros do espectrofotómetro. O que tu terias feito padre, com este
conhecimento que veio às minhas mãos, tão longe do pequeno mundo que foi todo o
universo que conheceste? Teria tua fé se erguido ante o desafio onde a minha
falhou? Teu olhar se perde na distância, padre, mas eu viajei por uma distância
além de qualquer uma que pudeste ter imaginado ao fundar a nossa ordem, há mil
anos. Nenhuma outra nave de pesquisa esteve tão longe da Terra. Encontramo-nos
nas fronteiras do universo explorado. Partimos para encontrar a nebulosa Fênix,
tivemos sucesso e agora voltamos com o peso de nossos conhecimentos. Quisera eu
poder erguer esse peso dos meus ombros, mas é em vão que te chamo através dos
séculos e anos-luz que nos separam.
No livro que seguras, as palavras são nítidas:
AD MAIOREM DEI GLORIAM, diz a mensagem, mas é uma mensagem em que não mais
posso crer. Poderias ainda acreditar nela se pudesses ver o que encontramos?
Nós sabíamos, é claro, o que era a nebulosa Fênix. Apenas em nossa galáxia, a
cada ano, mais de 100 estrelas explodem, queimando durante algumas horas ou
dias com milhares de vezes o seu brilho normal antes de mergulharem na morte e na
obscuridade. Essas são as novas normais, desastres comuns no universo. Já
gravei espectrogramas e curvas de luminosidade de dúzias delas, desde que
comecei a trabalhar no observatório lunar.
Mas três ou quatro vezes a cada mil anos ocorre alguma coisa, ao lado da qual
até mesmo uma nova empalidece na total insignificância.
Quando uma estrela se torna supernova, ela pode brilhar brevemente mais que
todos os sóis reunidos na galáxia. Os astrónomos chineses observaram isso
acontecer no ano 1054 d.C. sem conhecerem a razão do que viam. Cinco séculos
depois, em 1572, uma supernova explodiu na constelação de Cassiopéia, tão
brilhante que podia ser vista à luz do dia. E houve mais três durante os mil
anos que se passaram desde então.
Nossa missão era visitar o remanescente de semelhante catástrofe, tentando
reconstruir os eventos que haviam conduzido a ela para, se possível, aprender
sua causa. Entramos lentamente através das conchas concêntricas de gás que
haviam sido lançadas para fora há seis mil anos e ainda se expandiam. Ainda
estavam imensamente quentes, irradiando mesmo agora numa violenta luz violeta,
mas eram demasiado tênues para nos causar qualquer dano. Quando uma estrela
explode, suas camadas externas são impulsionadas para fora com tamanha velocidade
que escapam completamente ao seu campo gravitacional.
Agora formava essa concha oca, grande o suficiente para envolver mil sistemas
solares. Em seu centro queimava o objeto pequeno e fantástico em que a estrela
se tornara. Uma anã branca, menor do que a Terra e, no entanto pesando um
milhão de vezes mais.
As conchas de gás luminoso nos envolviam banindo a noite normal do espaço
interestelar. Voávamos para o centro de uma bomba cósmica que detonara há
milênios, e cujos fragmentos incandescentes ainda se expandiam. A imensa escala
da explosão e o fato de que os resíduos já cobriam um volume de espaço com
muitos bilhões de quilômetros de diâmetro roubavam à cena qualquer movimento
visível. Levaria décadas para que a visão pudesse discernir qualquer movimento
nesses tortuosos filamentos e redemoinhos de gás. E, no entanto, o sentimento
de uma expansão turbulenta era irresistível.
Havíamos verificado nossa direção básica horas atrás e agora flutuávamos
lentamente rumo à pequenina e fogosa estrela à nossa frente. Ela já fora um sol
como o nosso, mas consumira em algumas horas toda a energia que a teria mantido
brilhando por um milhão de anos. Agora se tornara avarenta e encolhida,
reunindo seus recursos como se tentasse compensar os excessos de uma juventude perdulária.
Ninguém esperava seriamente que pudéssemos encontrar planetas. Se houvesse
existido algum antes da explosão, teria sido cozido em sopros de vapor e sua
substância dissolvida em meio aos resíduos da estrela. Ainda assim fizemos a
busca automática, como sempre fazemos ao nos aproximarmos de um sol
desconhecido. Dentro em pouco localizamos um mundo pequeno, circundando a
estrela a imensa distância. Ele devia ter sido o Plutão desse desaparecido
sistema solar, orbitando nas fronteiras da noite. Demasiado afastado do sol
central para jamais ter conhecido a vida, sua distância salvara-o do destino
que consumira todos os seus companheiros.
A passagem do fogo queimara suas rochas, dissolvendo o manto de gás congelado
que devia cobri-lo nos dias anteriores ao desastre. Nós pousamos e descobrimos
a Cripta.
Seus construtores se haviam assegurado de que isso ocorreria. O marco
monolítico erguido acima da entrada não passava agora de um toco fundido, mas
mesmo nossas fotos de longa distância já nos revelavam existir ali o trabalho
de uma inteligência. Pouco depois detectamos o padrão de radioatividade ampla
como um continente, que fora embutido na rocha. Mesmo que o pilar acima da
Cripta tivesse sido destruído, essa energia teria permanecido, um eterno e irremovível
farol acenando para as estrelas. Nossa nave mergulhou como uma flecha em
direção a esse gigantesco alvo.
O pilar devia ter uma altura de 1,5 km quando foi construído. Agora parecia uma
vela que se derretera até formar um monte de cera. Levamos uma semana para
perfurar a rocha fundida, já que não tínhamos ferramentas adequadas para essa
tarefa. Éramos astrónomos, não arqueólogos, mas podíamos improvisar. Nosso
propósito original fora esquecido: esse monumento solitário, erguido com
tamanho esforço à maior distância possível do sol condenado, só poderia ter um
significado. Uma civilização que tinha consciência de seu fim próximo fizera
ali seu último apelo à imortalidade.
Examinar todos os tesouros depositados na Cripta será trabalho para gerações. Eles
tiveram muito tempo para se preparar, já que seu sol deve ter dado os primeiros
avisos muitos anos antes da detonação final. Tudo o que desejavam preservar,
todos os frutos de seu génio, eles depositaram ali, naquele mundo distante,
dias antes do fim, na esperança de que alguma outra raça os encontrasse, para
que não fossem inteiramente esquecidos. Teríamos nos portado desse modo? Ou
teríamos nos perdido em nossa própria autocomiseração, incapazes de pensar num
futuro que nunca poderíamos ver ou compartilhar?
Se ao menos eles tivessem tido um pouco mais de tempo… Podiam viajar livremente
entre os planetas de seu próprio sol, mas ainda não haviam aprendido a cruzar
os golfos interestelares, e o sistema solar mais próximo encontrava-se a 100
anos-luz de distância. Mas mesmo que possuíssem o segredo do impulso
transfinito, não mais que uns poucos milhões poderiam ter sido salvos. Talvez
tenha sido melhor assim.
Mesmo que eles não fossem tão perturbadoramente humanos, como revelam suas
esculturas, não poderíamos deixar de admirá-los e lamentar seu destino. Eles
deixaram milhares de registros visuais, juntamente com minuciosas máquinas para
projetá-los. Havia instruções pictóricas, de modo que não fosse difícil
aprender a sua linguagem escrita. Temos examinado muitas dessas gravações,
trazendo de volta à vida, pela primeira vez em seis mil anos, todo o calor e a
beleza de uma civilização que, em muitos aspectos, deve ter sido bem superior à
nossa. Talvez eles tenham deixado apenas seu lado melhor, mas ninguém poderá
condená-los por isso. Seus mundos, contudo, eram adoráveis e suas cidades,
erguidas com uma graça que iguala qualquer coisa já feita pelo homem. Nós os
observamos no trabalho e nas diversões, ouvimos sua linguagem musical soando
através dos séculos. E uma cena permanece ante meus olhos. Um grupo de crianças
numa praia de estranha areia azul, brincando nas ondas como as crianças brincam
na Terra. Há uma fileira de árvores exóticas, que lembram chicotes, ao longo da
praia, e algum animal muito grande aparece, atravessando os baixios, sem atrair
atenção.
Mergulhando no mar, ainda cálido e generoso, vemos o sol que logo se tornaria
traidor, apagando toda essa felicidade inocente.
Talvez se não estivéssemos tão longe de casa, e, portanto tão vulneráveis à
solidão, não ficássemos tão profundamente comovidos. Muitos de nós já
observaram as ruínas de antigas civilizações em outros mundos, mas elas nunca
nos afetaram tão profundamente. Essa tragédia era única. Uma coisa é uma raça
falhar e morrer, como nações e culturas já o fizeram na Terra. Mas ser
destruída tão completamente, em pleno ápice de seu desenvolvimento, sem deixar
qualquer sobrevivente - como tal coisa poderia conciliar-se com a misericórdia
divina?
Meus colegas já perguntaram isso e eu dei as respostas que pude. Talvez
tivesses feito melhor, padre Loyola, mas nada encontrei no Exercitia
Spiritualia que me ajudasse nessa tarefa. Eles não eram gente má: não sei que
deuses adoravam, se é que adoravam algum. Mas tenho olhado para eles através do
abismo dos séculos e vi a beleza que preservaram em seu último esforço sendo de
novo trazida à luz de seu sol encolhido. Eles poderiam ter-nos ensinado tanto.
Por que foram destruídos?
Conheço as respostas que meus colegas darão quando estiverem de volta a Terra.
Dirão que o universo não possui propósito ou plano, e que de vez que 100 sóis
explodem, a cada ano, em nossa galáxia, neste exato momento alguma raça está
morrendo nas profundezas do espaço. Se essa raça fez o bem ou o mal durante sua
existência, não faz qualquer diferença no final. Não há justiça divina porque
não existe Deus.
É claro que o que vimos não prova nada disso. Qualquer um que assim afirme está
sendo influenciado pela emoção, não pela lógica. Deus não necessita justificar
suas ações perante o Homem. Ele, que construiu o universo, pode destruí-lo
quando quiser. Constitui arrogância - perigosamente próxima da blasfémia -
pensar que podemos dizer o que Ele pode ou não fazer.
Isso eu teria aceitado, não importando quão dolorosa fosse a perspectiva de
mundos inteiros, juntamente com seus povos, sendo lançados em fornalhas. Mas
chega um ponto em que até mesmo a mais profunda fé pode vacilar, e agora,
quando olho para os cálculos colocados diante de mim, percebo que afinal
cheguei a esse ponto.
Não podíamos dizer, antes de alcançar a nebulosa, há quanto tempo ocorrera à
explosão. Agora, partindo da evidência astronómica e dos registros nas rochas
daquele único planeta sobrevivente, fui capaz de datá-la com precisão. E sei em
que ano a luz desse incêndio colossal chegou a Terra. Sei o quanto essa
supernova, cujo cadáver agora se apaga atrás de nossa nave em aceleração, deve
ter brilhado nos céus da Terra. Sei como deve ter fulgurado baixa sobre o
horizonte do leste, antes do nascer do Sol, como um farol na alvorada oriental.
Não pode haver mais dúvida. O mistério ancestral foi finalmente solucionado. E,
no entanto, ó Deus! Havia tantas estrelas que poderias ter usado. Qual a
necessidade de lançar essas pessoas ao fogo para que o símbolo de sua morte
pudesse brilhar acima de Belém?
Arthur C. Clarke
Sem comentários:
Enviar um comentário