«Fala comigo doce como a chuva»
Pintura de Marc Allante
103- «FALA COMIGO DOCE COMO A CHUVA»
Dentro de um quarto de pensão, um homem está deitado na
cama, acaba de despertar. Não usa mais do que cuecas, velhas e amarrotadas,
enquanto sua mulher, num quimono cor-de-rosa, está sentada numa cadeira junto à
janela. Lá fora o céu está cinzento, carregado de uma chuva que a qualquer
instante haverá de cair. Ela segura um copo de água do qual, com gestos
nervosos, toma pequenos goles. Ambos têm rostos jovens e desolados como os
rostos de crianças sobreviventes em países devastados pela fome.
Que horas são?,
pergunta ele com voz rouca. Ao que ela responde murmurando qualquer coisa
inaudível. O quê, meu bem?, insiste ele.
Domingo, responde
ela.
Eu sei que é
domingo. Você nunca dá corda no relógio.
Ela bebe
outro gole d’água. Seus braços delicados e magros se esforçam para suportar o
peso do copo que parece puxá-la para frente como se o peso dos anos estivesse
contido no liquido que ela, trêmula, agora sorve. O homem a observa da cama,
solene e ao mesmo tempo carinhoso. Ao longe se pode escutar uma música, suave,
cristalina — um bandolim. De onde viria? Talvez do quarto ao lado, ele conclui.
Será que eu
descontei o meu cheque de desemprego?, ele pergunta.
Começa a
chover, forte, fazendo os pombos esvoaçarem com estardalhaço pela janela ao
lado da mulher e seu pesado copo de água. De algum outro quarto, agora
também se escuta a voz de uma criança que cantarola:
Chuva, chuva, vai
embora! Volta novamente num outro dia!
Sem fôlego a
mulher começa a rir, enquanto o homem, desanimado, continua a falar.
Eu espero não ter
descontado o meu cheque. Onde está a minha roupa? Procura nos meus bolsos e vê
se o cheque está comigo.
Você voltou
quando eu tinha saído para te procurar, pegou o cheque na cama e deixou um
bilhete que eu não pude entender, defende-se ela.
Você não entendeu
o bilhete?
Somente um número
de telefone, eu telefonei mas o barulho era tanto que não pude escutar coisa
alguma.
Barulho? Aqui?
Não, barulho lá.
Aonde lá?
Eu não sei.
Alguém disse “vem pra cá” e desligou e tudo que eu consegui depois foi um sinal
de ocupado.
Quando eu
acordei, eu estava numa banheira cheia de cubos de gelo derretendo e cerveja.
Minha pele estava azul. Eu estava respirando com dificuldade numa banheira
cheia de cubos de gelo. Era perto de um rio, mas não sei se era o East ou o
Hudson. As pessoas fazem coisas horríveis quando alguém está inconsciente nesta
cidade. Eu estou todo dolorido, como se tivessem me dado pontapés escada
abaixo, não como se eu tivesse caído, mas como se tivesse sido chutado. Eu me
lembro de uma vez que rasparam todo o meu cabelo. Outra vez me enfiaram numa
lata de lixo, em um beco e eu acordei com cortes e queimaduras no meu corpo.
Gente má abusa de você quando você está inconsciente. Quando eu acordei estava
despido numa banheira cheia de cubos de gelo que derretiam. Eu me arrastei pra
fora da banheira, fui para a sala e alguém estava saindo pela outra porta
quando eu entrei e, eu abri a porta e ouvi a porta de um elevador fechando e vi
as portas de um corredor de hotel. A TV estava ligada e havia um disco tocando ao
mesmo tempo; a sala estava cheia de carrinhos de chá carregados de coisas da
copa, presuntos inteiros, perus inteiros, sanduíches de três andares já velhos
e ficando duros, e garrafas, garrafas e mais garrafas de todos os tipos de
bebidas que ainda nem tinham sido abertas, e baldes de gelo derretendo… Alguém
fechou uma porta quando eu entrei… Quando eu entrei alguém estava saindo. Eu
ouvi a porta de um elevador fechar… Tudo espalhado pelo chão daquele quarto
perto do rio, coisas, roupas por todo lado… Soutiens! Calcinhas! Camisas,
gravatas, meias e outras coisas…
Roupas?, pergunta ela baixinho.
Sim, todo tipo de
coisas pessoais e vidro quebrado e móveis derrubados, como se estivesse
acontecendo uma briga do tipo vale-tudo na rua e a polícia tivesse dado uma
batida policial.
Oh.
Deve ter havido
violência naquele lugar…
E onde você
estava?
Na banheira,
gelado…
Oh…
E eu me recordo
de pegar o telefone para perguntar o nome do hotel, mas não me lembro se eles
me disseram ou não. Me dá um gole de água.
Os dois se
levantam e se encontram no meio do quarto. O copo é passado de uma mão para
outra com seriedade. O homem começa a bochechar olhando fixamente para ela, e
cruza para cuspir a água pela janela. Em seguida volta e devolve o copo para
ela. Ela toma mais um pouco de água. De modo carinhoso, ele desliza os dedos
sobre o longo pescoço dela.
Agora que recitei
a ladainha de minhas tristezas, continua ele, o que você tem para me
contar? Diga-me um pouco do que está se passando dentro do…
Os dedos
dele passam sobre a testa e os olhos dela que fecha os olhos e levanta a mão no
ar como se fosse tocá-lo. Ele pega sua mão e beija seus dedos apertando-os
contra seus lábios. Ao fundo se escuta o bandolim, a chuva… Ela toca seu peito
magro e ossudo como de uma criança, toca seus lábios com afeto. Os dedos dele
deslizam pelo pescoço dela e pela abertura do quimono enquanto o bandolim toca
e toca com mais e mais força. Então ela se volta e se encosta no corpo magro
dele curvando o pescoço sobre seus ombros pontudos. A mão dele correndo no pescoço
dela quando ele diz:
Faz tanto tempo
que não estamos juntos… quase como dois estranhos vivendo juntos. Vamos nos
reencontrar e talvez não ficaremos mais perdidos. Fala comigo! Eu estive
perdido! Eu pensei em você muitas vezes, porém não podia lhe telefonar, meu
bem. Pensei em você o tempo todo mas não podia telefonar. O que eu poderia
dizer se telefonasse? Poderia dizer, estou perdido? Perdido nesta cidade?
Jogado de um lado para o outro entre o povo como um cartão postal sujo? E
depois de desligar o telefone… Eu estou perdido nesta cidade…
A única coisa que
botei na boca desde que você saiu foi água!, ela diz quase que alegre,
sorrindo. O Homem a abraça com desespero num grito suave e chocado. Nada a
não ser café instantâneo até que acabou… e água.
Ela ri
convulsivamente. A chuva cai. O bandolim canta.
Você pode falar
comigo, bem? Você pode falar comigo agora!, ele quase implora.
Sim!, ela sorri.
Então fala comigo
como se fosse a chuva e me deixa ouvir, me deixa deitar aqui e ouvir…
Ele se deixa
cair para trás atravessado na cama, vira-se sobre o estômago com um braço
caindo do lado, batendo um ritmo no piso com os dedos da mão fechada. O
bandolim continua.
Faz tanto tempo
que não nos entendemos, ele prossegue. Agora me conta as coisas. O que
você tem pensado em silêncio? Enquanto eu era jogado de um lado para outro
nesta cidade como se fosse um cartão postal sujo… Me conta, fala comigo como se
fosse a chuva e eu ficarei deitado aqui e ouvirei.
Eu… Eu quero ir
embora.
Você quer?
Sozinha!, ela
volta para a janela. Eu me registrarei sob um nome falso num pequeno hotel
na costa…
Que nome?
Anna Jones… A
arrumadeira será uma pequena velhinha que tem um neto e ela fala sobre ele… eu
sentarei numa cadeira enquanto a velhinha faz a cama, meus braços cairão dos
lados da cadeira, e… a voz dela será… tranquila… Ela me contará o que o neto
comeu no almoço! Mingau de tapioca… O quarto estará na penumbra, fresco, e cheio
de murmúrio da…
Chuva?
Sim. Chuva. A
ansiedade desaparecerá.
Sim…
Depois de algum
tempo a velhinha dirá, sua cama está feita, Senhorita, e eu direi – Obrigada…
Tire um dólar da minha carteira para você. A porta fechará. E eu ficarei
sozinha novamente. As janelas serão altas com venezianas azuis e será a estação
da chuva… Minha vida será como o quarto, fresco… cheia de sombra fresca e do
murmúrio da…
Chuva…
Eu receberei um
cheque pelo correio toda semana no qual eu possa confiar. A pequena velhinha
irá ao banco descontar meu cheque e me trará livros da biblioteca e pegará
minha roupa lavada… Eu sempre terei coisas limpas! Eu me vestirei de branco. Eu
nunca serei muito forte nem terei muita energia, porém depois de algum tempo
terei energia suficiente para andar na calçada, para passear na praia sem esforço…
À noite eu passearei na calçada junto à praia. Eu terei um certo lugar onde me
sentarei, um pouco afastada do pavilhão onde a banda toca as músicas de Victor
Herbert ao anoitecer… Eu terei um quarto grande com venezianas na janela.
Haverá uma estação de chuva, chuva, chuva. E eu estarei tão cansada de uma vida
passada na cidade que eu não me importarei de ficar apenas ouvindo a chuva. Eu
ficarei tão quieta. As rugas desaparecerão do meu rosto. Meus olhos não ficarão
mais inflamados. Eu não terei amigos. Eu nem sequer terei conhecidos. Quando eu
ficar com sono, andarei devagarzinho de volta para o pequeno hotel. O empregado
dirá, Boa Noite, Senhorita Jones, e eu apenas sorrirei e pegarei minhas chaves.
Eu nunca olharei um jornal ou escutarei o rádio; eu não terei a menor ideia do
que está acontecendo no mundo. Eu não terei consciência da passagem do tempo…
Um dia eu me olharei no espelho e notarei que meus cabelos começam a
embranquecer e pela primeira vez terei consciência de estar vivendo neste pequeno
hotel sob um nome falso, sem amigos ou conhecidos de qualquer tipo por vinte e
cinco anos. Isto vai me surpreender um pouco mas não me incomodará nem um
pouco. Eu ficarei contente que o tempo tenha passado tão facilmente assim. De
vez em quando eu talvez vá ao cinema. Sentarei nas filas de trás, com toda a
escuridão ao meu redor e, ficarei sentada com as pessoas imóveis ao meu lado
sem tomarem conhecimento da minha presença. Olhando a tela. Pessoas
imaginárias. Pessoas das estórias. Lerei grandes livros e os diários de
escritores mortos. Eu me sentirei mais próxima deles do que das pessoas que
conheci antes de ter me retirado do mundo. Esta minha amizade com poetas mortos
será doce e refrescante, porque não terei que tocá-los ou responder suas
perguntas. Eles falarão comigo sem esperar minhas respostas. E ficarei
sonolenta ouvindo suas vozes explicando os mistérios pra mim. Dormirei com o
livro ainda entre os dedos, e choverá. Acordarei e ouvirei a chuva e tornarei a
dormir. Uma estação de chuva, chuva, chuva… Então um dia, quando tiver fechado
um livro ou voltado sozinha do cinema para casa às onze horas da noite. Olharei
no espelho e verei que meu cabelo ficou branco. Branco, completamente branco.
Tão branco quanto a espuma das ondas.
Ela se levanta
e anda pelo quarto enquanto continua a falar.
Passarei as mãos
pelo meu corpo e sentirei o quanto fiquei leve e magra. Oh, como estarei magra.
Quase transparente. Quase irreal. Então compreenderei, saberei, de modo vago,
que estava morando neste pequeno hotel, sem nenhuma relação social,
responsabilidade, ansiedades ou perturbações de qualquer tipo por quase cinquenta
anos. Meio século. Praticamente uma vida inteira. Nem sequer me lembrarei dos
nomes das pessoas que conhecia antes de vir para cá, nem da sensação de ser
alguém esperando por alguém que… talvez não venha… Então saberei… olhando no
espelho que pela primeira vez chegou o momento de andar sozinha mais uma vez na
calçada com o vento forte batendo em mim, o vento limpo e branco que vem do
princípio do mundo, ainda mais além do que isto, vem do princípio do espaço,
ainda mais além de qualquer coisa que haja além do princípio do espaço…
Ela senta
novamente, sem muita firmeza, perto da janela.
Então sairei e
andarei pela calçada. Andarei sozinha e serei empurrada pelo vento e ficarei
pequenina, pequenina.
Amorzinho. Vem
para a cama, ele chama.
A mulher
torna a se levantar, com dificuldade, e segue em direção ao homem, a chuva
caindo, o bandolim soando.
Pequena, pequena,
pequena e mais pequenina e pequenina! Até que finalmente não teria mais corpo e
o vento viesse me tomar em seus braços brancos e refrescantes para sempre, e me
levasse embora!
Sentado à
beirada da cama, ele a segura e aperta a boca contra seu pescoço, os olhos
cheios de nuvens, como o céu molhado que castiga a cidade com a chuva que não
cessa. Mas ela se solta e volta para o centro do quarto soluçando
descontroladamente.
Eu quero ir
embora… Eu quero ir embora, ela fala baixinho de forma dolorosa.
O homem
suspira e, se levantando, caminha até a janela onde se debruça, ao passo que
ela se senta na cama. As luzes da cidade piscam doídas e a chuva cai ainda mais
forte. O vento sopra frio e ela, tremendo, cruza os braços contra o peito. Seus
soluços morrem. O bandolim já não toca mais, apenas a chuva, a chuva, a chuva,
enquanto ela diz:
Volta para a
cama. Volta para a cama, meu amor…
E o homem se
volta para ela com uma expressão perdida.
A chuva cai.
Tennesse Williams
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