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«O Nudista Militante»
Pietro da Cortona
104- «O NUDISTA MILITANTE»
Durante vários anos, na década de sessenta, um de meus
trabalhos principais foi traduzir e ler Les Actualités Françaises, noticiário
cinematográfico que a França distribuía semanalmente para a América Latina. A
tradução me tomava apenas alguns minutos, mas me detinha toda tarde de
quarta-feira nos estúdios de Génnévilliers, nos arredores de Paris. Havia
herdado este trabalho de um locutor uruguaio a quem ocorreu a pior tragédia
para um homem de sua profissão: tornar-se afônico. O fazia com gosto, pois era
bem pago, e me distraía essa saída semanal da cidade, na qual com frequência,
na ida ou na volta, costumava fazer uma parada no cemitério de cães de
Asniéres, lugar onde está enterrado o célebre Rintintin e que realmente é muito
bonito.
A gravação consistia em fugazes entradas na cabine de
locução, separadas por compridos intervalos que eu matava lendo, espiando a dobragem
de outras películas ou, mais amiúde, conversando com meu amigo projecionista,
Monsieur Louis. Dizer conversando é um exagero e uma mentira, pois conversar
sugere intercâmbio e reciprocidade, e o nosso consistia exclusivamente em eu
escutar o que ele dizia e em, de tempos em tempos, me limitar a intercalar em
seu monólogo alguma observação banal, para manter a aparência, e dar a ele e a
mim mesmo a impressão de que, de fato, conversávamos. Monsieur Louis era um
desses homens que não admitem interlocutores: somente ouvintes.
Devia estar beirando os sessenta e era baixo, magro, com uns
cabelos brancos que rareavam, uma tez rosada e uns olhinhos azuis muito tranquilos.
Tinha uma voz que nunca se elevava nem endurecia, suave, monótona, persistente,
ininterrupta. Vestia sempre um avental branco, imaculado como toda a sua
pessoa, e seu rosto ostentava em qualquer ocasião um assomo de sorriso que
nunca chegava a materializar-se. Poder-se-ia tomá-lo por um enfermeiro ou um
laboratorista pois seu traje, seu semblante e suas maneiras de algum modo
faziam pensar em hospitais, doentes e provetas cheias de química. Mas era
projecionista e estava ligado ao cinema desde muito jovem. Alguma vez ouvi que,
nos anos trinta, trabalhara como cameraman na filmagem clandestina de curtas
pornográficos cujos galãs eram, de preferência, cavalheiros tuberculosos, já
que estes, dizia ele, tinham ereções prolongadíssimas que, dada a lentidão da
rodagem, facilitavam muito as coisas. Mas Monsieur Louis havia deixado esse
trabalho por temor à polícia. Na realidade não gostava de falar sobre isso nem
de nada que não fosse o tema de sua vida: o nudismo.
Porque Monsieur Louis era nudista. Passava integralmente seu
mês de férias na Île du Levant, uma pequena ilha mediterrânea onde funcionava a
única colónia de nudistas autorizada na França nesse tempo. Passava os onze
meses restantes economizando, trabalhando e contando as horas que faltavam
para, com o sol de agosto, voltar a viver por trinta dias ao ar livre,
fotografando mariposas e casulos, acendendo fogueiras, queimando-se sobre as
rochas ou molhando-se no mar, nu como uma foca. Andar nu, rodeado de pessoas
nuas, lhe produzia uma ilimitada felicidade e, aparentemente, lhe resolvia
todos os problemas. O nudismo era para ele uma dedicação permanente. Dez minutos
após conhecê-lo, descobria-se que não só era seu único tema de conversação como
também de reflexão e de ação. Porque assim como outros dedicam seus dias e suas
noites a catequizar os demais e ganhá-los para a verdadeira religião ou para a
verdadeira revolução, Monsieur Louis havia consagrado os seus a esse
inconcebível apostolado: ganhar adeptos para o nudismo.
Nossa boa relação provinha de que ele me considerava um
catecúmeno. E eu encorajava essa crença, escutando com verdadeiro interesse,
entre as gravações de Les Actualités Françaises, os discursos com que me ia
iluminando sobre os fundamentos, segredos, lições e virtudes da filosofia
nudista. Explicou-me tudo cem vezes, com argumentos e exemplos que se repetiam,
obsessivos, em sua vozinha pausada, confiada, e incansável na propagação da fé.
Falou-me da Grécia e da beleza dos corpos que se movem e despregam em
liberdade, sem coberturas escravizantes; da comunhão do homem com a natureza, a
única que pode devolver-nos a saúde física e a paz espiritual que perdemos por
renegar covardemente a nossa primeira nudez; da necessidade de vencer os
preconceitos, a hipocrisia, a mentira (em outras palavras: o vestuário) e de
restabelecer a sinceridade e a frescura que existem nas relações entre, por
exemplo, as aves e os pequenos cervos e que no paraíso terreno existiram também
entre os humanos (e a que se devia isso?). Incontáveis vezes assegurou-me que,
na Île du Levant, ao despojar-se das roupas, os homens e as mulheres tiravam
também os maus pensamentos, os complexos de inferioridade, os vícios.
Ouvindo-o, chegava-se quase a convencer-se de que o nudismo era aquela panaceia
universal, cura de todos os males, que os alquimistas medievais buscaram com
tanto desespero.
As lições não eram somente orais. Monsieur Louis me levava
folhetos proselitistas e fotografias coloridas da ilha da liberdade. Aí estavam
os nudistas, de corpo inteiro, a aí estava ele, rosáceo, helênico, bebendo o
néctar das flores ou picando alegremente uns tomates, enquanto uma jovenzinha
de lindos seios e púbis encaracolado refrescava umas alfaces. Durante um bom
tempo chegaram em minha casa formulários, boletins de subscrição, convites de
clubes nudistas, que nunca preenchi nem respondi.
Porque, apesar de seus esforços, Monsieur Louis não me
ganhou para o nudismo. Mas, em compensação, me ajudou a identificar uma
variedade humana que, sob diferentes roupas e afazeres, encontra-se
pavorosamente estendida pelo mundo. O que recordo dele, sobretudo, é seu olhar:
tranquilo, fixo, irredutível, cego para tudo o que não fosse ele mesmo. É um
olhar que, em parte graças a ele, reconheço com facilidade e que vi reaparecer,
multiplicada, uma e outra vez em religiosos e revolucionários, em intelectuais
e em moralistas, sobretudo em ideólogos de toda espécie. É o olhar do que pensa
ser dono da verdade, do que não se distrai, do que nunca duvida, do humano mais
prejudicial: o fanático.
Mario Vargas Llosa
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