«A Taça do Rei Tule»
Taça Milenar Persa
98- «A TAÇA DO REI TULE»
"O rei de Tule era velho, e sobre velho, enfermiço e
triste. Sentindo avizinhar-se a morte, distribuiu pelos filhos as suas terras e
riquezas. E ficou sozinho e pobre num antigo roqueiro castelo - o mar batia por
baixo, minando cavernas e invadindo as masmorras de entorno aos cataventos das
torres, gritavam as aves do temporal, e por salas de armas e corredores ainda a
desoras ressoavam as passadas duma corte dispersa aos quatro ventos, vendo o
rei sem território. O trôpego monarca, chamando as forças que lhe restavam,
vestiu-se dos seus vestidos de gala, coroou ele mesmo os velhos longos cabelos
com a sua coroa de ferro, e arrancando do seio uma taça preciosa, disse ao
pajem lhe vazasse um velho vinho do Reno. Triste é dizer a mágoa que o rei
exprimia ante essa taça que a amante lhe dera, à volta de montear, a primeira
vez que os dois tinham falado a sós. E o rei, que então era mimoso adolescente,
curvado sobre o palafrém da amante, jurara nunca profanar a taça em brindes
libertinos, nos festins do seu castelo roqueiro.
O pajem deitou-lhe vinho, ao largo era já noite no mar -
ele, erguendo o braço trémulo, bebeu vagarosamente, e havia nos seus olhos
cansados, como no seio duma gruta marinha, ossadas de antigas e abrasadoras
paixões.
Mas embalde o licor lhe circulava nos pergaminhos do corpo,
à mira de incender-lhe reminiscências da mocidade.
E atirou a taça ao mar, do varandim rendilhado, por que
ninguém mais, bebendo por ela, viesse a conhecer os segredos daquele amor de
balada, feito de suspiros e raios de lua, perfumes de laranjeira e baques de
coração espezinhado.
A taça oscilou ligeiramente nas águas, fez umas reviravoltas
antes de seguir mar em fora, como uma gôndola deserta que procura o gondoleiro.
E o rei considerava em voz triste - quem mesmo velho pudera
guardar-te dia e noite, taça de amor por onde os meus lábios beberam os vinhos
generosos, por essas noites perladas dos ecos das serenatas, dos perfumes
festivais das rosas, e da embriaguez dos profundos amores? ...Abandonaram-me os
meus cavaleiros e não me queixo, fugiram-me os cortesãos e estou tranquilo: só
a ideia de te deixar me atormenta, pois tu guardas inteira e palpitante a
história do meu coração."
[...]
Fialho de Almeida
(O País das Uvas (excerto), Lisboa, Ulisseia, 1987)
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