«A Fada Apaixonada»
John Atkinson Grimshaw
107- «A FADA APAIXONADA»
Consegues ouvir, Ninon, a chuva de Dezembro a fustigar as
nossas janelas? O
vento geme no longo corredor. É uma noite desagradável, uma
dessas noites em que
o pobre tirita à porta do rico que o baile arrasta para as
suas danças, debaixo dos
lustres dourados. Deixa ficar os teus sapatos de cetim à
entrada e vem sentar-te no
meu colo, ao pé da lareira ardente. Deixa também ficar a tua
linda veste: esta noite
quero-te contar uma história, um lindo conto de fadas.
Decerto saberás, Ninon, que outrora existia, no alto de uma
montanha, um
velho castelo lúgubre. Só se viam torres, muralhas, pontes
levadiças carregadas de
correntes; homens cobertos de ferro vigiando noite e dia nas
ameias, e apenas os
soldados eram bem acolhidos junto do Conde Enguerrand, o
senhor do castelo.
Se tu o tivesses visto, o velho guerreiro, a passear pelas
longas galerias, o
estrondo da sua voz seca e ameaçadora, terias tremido de
pavor, assim como tremia
a sua sobrinha Odette, a linda e pia donzela. Nunca
reparaste, pela manhã, numa
margarida a desabrochar aos primeiros beijos do sol, entre
silvas e urtigas!? Da
mesma forma desabrochava a jovem menina no meio de rudes
cavaleiros. Ainda
criança, quando estava a brincar, mal avistava o seu tio,
parava de repente, e os seus
olhos enchiam-se de lágrimas. Agora, tinha crescido e
tornara-se bela; o seu peito
enchia-se de melancolia; e um terror cada vez mais
lancinante apoderava-se dela
cada vez que via chegar o senhor Enguerrand.
Ela habitava numa torre afastada, passando o tempo a bordar
lindos
estandartes, repousando-se deste trabalho rezando a Deus,
contemplando da sua
janela os campos de esmeralda e o céu azul. Quantas vezes, à
noite, levantando-se
do seu leito, viera à janela olhar as estrelas e, nessa
altura, quantas vezes o seu
coração de dezasseis anos se lançara na direcção dos espaços
celestes, perguntando
a essas irmãs brilhantes qual a razão da sua agitação.
Passadas essas noites sem
conseguir dormir, depois desses impulsos, de amor, ela tinha
vontade de se pendurar
ao pescoço do velho cavaleiro; mas uma palavra áspera, um
olhar gélido faziam-na
imobilizar-se e, trémula, ela voltava à sua agulha. Eu vejo
que tens pena da pobre
menina, Ninon; ela era como a flor fresca e odorante, da
qual desprezamos o brilho
e o perfume.
Certo dia, a desolada Odette, seguia com um olhar sonhador
duas rolas que
fugiam, quando ouviu uma voz meiga no exterior do castelo.
Debruçou-se e viu um
lindo rapaz que, entoando uma canção trovadoresca, pedia
hospitalidade. Ela ouviu
sem compreender as palavras; mas aquela voz meiga
atormentava o seu coração, e
lágrimas deslizavam lentamente ao longo da sua face,
molhando um ramo de
manjerona que ela segurava na mão.
O castelo permaneceu fechado e um guarda gritou das
muralhas:
– Vá-se embora: aqui dentro só estão guerreiros.
Odette continuava a olhar. E deixou escapar o ramo de
manjerona
humedecido de lágrimas que foi cair aos pés do trovador.
Este, erguendo o olhar e
vendo aquela cabeça loira, beijou o ramo e afastou-se,
olhando para trás a cada
passo que dava.
Quando ele desapareceu, Odette ajoelhou-se no seu
genuflexório, onde fez
uma longa oração. Ela agradecia a Deus sem saber porquê;
sentia-se feliz, ignorando
por completo a razão da sua alegria.
Durante a noite, teve um sonho lindo. Parecia-lhe ver o ramo
de manjerona
que ela tinha lançado. Lentamente, do meio das folhas
trémulas, ergueu-se uma fada;
mas uma fada por demais querida, com asas em forma de
labareda, uma coroa de
miosótis e um longo vestido verde, a cor da esperança.
– Odette, disse ela harmoniosamente, eu sou a fada
Apaixonada. Fui eu que
te enviei hoje de manhã o Loïs, o jovem da voz doce; fui eu
que, ao ver o teu pranto,
quis enxugar as tuas lágrimas. Eu percorro a terra em busca
de corações e
aproximando aqueles que suspiram. Tanto visito uma cabana
como um solar; deleiteime,
com frequência, a unir o cajado ao ceptro dos reis. Semeio
flores debaixo dos
passos dos meus protegidos, acorrento-os com fios tão
brilhantes e tão preciosos que
os seus corações estremecem de alegria. Vivo nas ervas dos
caminhos, nos tições
cintilantes das lareiras de Inverno, nas roupas de cama dos
esposos; e em todo o lado
aonde vou, nascem os beijos e as conversas carinhosas. Não
chores mais, Odette: Eu
sou a Apaixonada, a fada boa, e venho enxugar as tuas
lágrimas.
E regressou à sua flor, que se voltou a transformar em
botão, fechando de novo
as suas folhas.
Tu sabes bem que a fada Apaixonada existe, Ninon. Vê-a a
dançar na nossa lareira, e compadece-te das pessoas infelizes que nunca
acreditarão na minha bela
fada.
Quando Odette acordou, um raio de sol iluminava o seu
quarto, ouvia-se o
canto de uma ave vindo do exterior, e o vento da manhã
acariciava as suas tranças
loiras, trazendo o perfume do primeiro beijo que tinha
acabado de dar às flores.
Levantou-se, feliz, e passou o dia a cantar, tendo esperança
no que lhe tinha dito a
fada boa. Olhava, por momentos, os campos, sorrindo a cada
ave que passava,
sentindo dentro de si impulsos que a faziam saltar e bater
as suas mãozinhas uma
contra a outra.
Chegada a noite, Odette desceu à grande sala do castelo.
Junto ao Conde
Enguerrand encontrava-se um cavaleiro que ouvia as histórias
do ancião. Ela pegou
na sua roca, sentou-se em frente da lareira onde cantava um
grilo e o fuso de marfim
rodou rapidamente entre os seus dedos.
No auge do seu trabalho, tendo lançado um olhar na direcção
do cavaleiro,
viu o ramo de manjerona entre as suas mãos, e eis que reconheceu
o Loïs da voz
doce. Um grito de alegria quase se lhe escapou. Para
esconder o rubor da sua face,
inclinou-se sobre as cinzas, revolvendo os tições com uma
vara comprida de ferro. O
braseiro crepitou, as chamas assustaram-se, irromperam
girândolas ruidosas e, de
repente, do meio das faíscas, surgiu Apaixonada, sorridente
e atenciosa. Sacudiu do
seu vestido verde as partículas incandescentes que
deslizavam sobre a seda, como se
fossem lantejoulas de ouro; precipitou-se em direcção à sala
e foi, invisível para o
conde, colocar-se por detrás dos jovens. Nesse momento,
enquanto o velho cavaleiro
narrava um combate atroz contra os Infiéis, ela disse-lhes
suavemente:
– Amai-vos, meus queridos. Deixai as recordações para a
austera velhice,
deixai ficar para essa altura os longos relatos ao pé dos
tições ardentes. Que ao
crepitar da chama apenas se misture o ruído dos vossos
beijos. Mais tarde virá o
tempo de suavizar as vossas mágoas, lembrando-vos dessas
doces horas. Quando se
ama aos dezasseis anos, falar é inútil; um simples olhar diz
mais do que um grande
discurso. Amai-vos, meus queridos; deixai falar a velhice.
Depois, encobriu-os com as suas asas, de tal forma que o
conde, ao explicar
de que modo o gigante Buch Tête-de-Fer3 foi morto por um
terrível golpe de Giralda,
a espada pesada, não viu Loïs depositar o seu primeiro beijo
no rosto da trémula
Odette.
Tenho que te falar, Ninon, dessas belas asas da minha fada
Apaixonada. Elas
eram transparentes como vidro e minúsculas como asas de
mosquito. Mas, quando
dois amantes corriam o perigo de ser vistos, elas cresciam,
cresciam, e tornavam-se
tão obscuras e tão espessas, que interceptavam os olhares e
abafavam o barulho dos
beijos. De maneira que o ancião continuou por muito tempo o
seu prodigioso relato e, por muito tempo também, Loïs acariciou Odette, a
loira, nas barbas do cruel
suserano.
Meu Deus! Meu Deus! Que belas asas eram aquelas! Disseram-me
que, por
vezes, as jovens meninas as encontram: e mais do que uma
consegue assim esconderse
dos olhos dos avós. É verdade, Ninon?
Quando o conde acabou a sua longa história, a fada
Apaixonada
desapareceu na chama, e Loïs foi-se embora, agradecendo ao
seu anfitrião e
enviando um último beijo a Odette. A jovem menina dormiu tão
feliz nessa noite, que
sonhou com montanhas de flores iluminadas por milhares de
astros, cada um deles
mil vezes mais brilhante do que o sol.
No dia seguinte, desceu ao jardim à procura dos caramanchões
obscuros.
Encontrou um soldado, cumprimentou-o e, ia afastar-se quando
viu que ele tinha na
mão o ramo de manjerona banhado de lágrimas. E eis que
reconheceu novamente o
Loïs da voz doce, que acabava de entrar no castelo sob um
novo disfarce. Ele fê-la
sentar-se num banco de relva, ao pé de uma fonte. Olharam um
para o outro,
radiantes por se encontrarem em pleno dia. As toutinegras
cantavam, sentia-se no ar
que a boa fada devia rondar por ali. Não te contarei todas
as palavras que ouviram
os velhos carvalhos discretos. Era um prazer ver os
apaixonados a conversar durante
tanto tempo, tanto tempo, que uma toutinegra que estava numa
moita vizinha teve
tempo de construir um ninho.
De repente, os passos pesados do Conde Enguerrand fizeram-se
ouvir na álea.
Os pobres apaixonados tremeram. Mas a água da fonte começou
a cantar mais
lentamente, e Apaixonada saiu, risonha e atenciosa, da
torrente límpida da nascente.
Envolveu os amantes com as suas asas, de seguida deslizou
ligeiramente com eles,
passando ao lado do conde, que ficou muito admirado por ter
ouvido vozes e não
encontrar ninguém. ciumenta da sorte deles, não me voltes a
devolver os meus beijos. Mas olha para ti,
cheia de curiosidade, menina má. Estou a ver que tenho de te
contentar.
Pois fica a saber que a fada vagueava assim até ao cair da
noite. Quando ela
decidiu afastar os amantes, viu-os tão desgostosos, mas tão
desgostosos de se
deixarem, que começou a falar-lhes baixinho. Parece que ela
lhes dizia algo de muito
belo, porque os seus rostos brilhavam e os seus olhos
intensificavam-se de alegria. E,
mal ela acabou de falar e eles concordaram, tocou-lhes o
rosto com a sua varinha
de condão.
De repente... Oh! Ninon, que olhos tão grandes de admiração!
Eras capaz de
começar a bater o pé se eu não acabasse!
De repente, Loïs e Odette transformaram-se em ramos de
manjerona, mas de
manjerona tão bela, que só existe uma fada capaz de tal
feito. Eles estavam lado a
lado, tão próximos um do outro, que as suas folhas se
misturavam. Eram flores
maravilhosas que deviam permanecer desabrochadas, trocando
eternamente os seus
perfumes e o seu orvalho.
Quanto ao Conde Enguerrand, ao que se diz, conformou-se,
contando todas
as noites de que modo o gigante Buch Tête-de-Fer foi morto
por um terrível golpe de
Giralda, a espada pesada.
E agora, Ninon, quando chegarmos ao campo, vamos procurar as
manjeronas
encantadas, para lhes perguntarmos em que flor está a fada
Apaixonada. Talvez,
minha amiga, uma moral se esconda por detrás deste conto.
Mas eu só to contei, com
os nossos pés em frente da lareira, para te fazer esquecer a
chuva de Dezembro a
fustigar as nossas janelas, e para te fazer sentir, esta
noite, um pouco mais de amor
pelo jovem contador.
Émile Zola
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