«O Ladrão de Palavras»
Ilustração de Alain Corbel
143- «O LADRÃO DE PALAVRAS»
Há muitos anos, havia um homem que roubava palavras. As
nossas melhores palavras. Metia-as, cuidadosamente, num saco de linho e
desaparecia. Para ser sincero, na nossa aldeia, que uma sebe de montes abraça,
nunca ninguém viu o rosto do homem e ninguém lhe sabia o nome. Mas, pela manhã,
as pessoas acordavam pobres. Pobres, sempre mais pobres e tristes.
As palavras, nesse tempo, eram de ouro.
O homem introduzia uma palhinha invisível no nosso silêncio e apartava as
palavras. Da mesma arte se servia para desencaminhar palavras dos livros e dos
jornais. Não as roubava todas, porque isso daria muito nas vistas. Ele
aprisionava as palavras alegres, as mais luminosas, as nossas melhores palavras
— e nós sobrevivíamos no meio de palavras sem sabor.
Palavra insípida é como fruto desconhecido do sol.
Cada dia vivido, menos palavras havia para agasalhar a tristeza. Era como se a
mãe quisesse fazer um pão-de-ló e não houvesse açúcar; como se nós fôssemos
abelhas proibidas de produzir mel.
Impedidos das palavras luminosas, emagrecia a imaginação: e assim seria
impossível pedalar até ao fim dos sonhos. O sonho, na nossa aldeia, era veludo
que enxugava a melancolia.
Nós conhecíamos o local onde o homem abrigava o saco da alegria. Ficava num
bosque cerrado, nem o sol podia furar a copa das árvores. O bosque estava
povoado de cogumelos: engordavam de sombra e de humidade. Alguns cogumelos
atingiam a grandeza das árvores!
Nenhum de nós podia ir ao bosque. Entre outras palavras, ele roubou-nos a
coragem. Também correu a notícia de que os cogumelos seriam venenosos. Todos os
cogumelos, os pequenos — do tamanho de guarda-chuva aberto — e os grandes.
Bastaria olhá-los e perderíamos a vida!
Com o andar do tempo, a nossa tristeza transformou-se em nuvem. E essa nuvem,
de um momento para o outro, rasurou o sol em quase metade da aldeia: essa parte
do povoado ficou sombria como o bosque.
Todos os dias, porque o silêncio era tecido de palavras sem sabor, a nuvem
estendia o domínio. Temeu-se uma praga venenosa de cogumelos! Para afastar a maldição,
pela manhã, queimávamos rama verde de pinheiro em redor das casas.
Os cogumelos, enfim, não levantaram a cabeça. Mas a nuvem, que medrava com o
fumo da rama verde, tinha fome, imensa fome de claridade. Grande parte da
aldeia, a dada altura, era noite. A calamidade! A calamidade, provocada pelo
musgo verde, muito verde deu o primeiro sinal.
«Estranha doença!», disseram os velhos.
No rosto das crianças da aldeia despontou estranha barba, muito verde e húmida.
Testámos todos os xaropes caseiros e outras mezinhas da imaginação do povo
Nada. Nada estorvava o avanço do musgo no rosto das crianças. E também de pouco
valia ir ao barbeiro. Ele, com a costas da navalha, limpava a nossa cara, mas,
na manhã seguinte, a barba irrompia com mais fulgor.
Os velhos disseram: «Ninguém pode ser homem antes do tempo, é contra as leis da
natureza!»
Mandaram chamar o médico.
Não escondeu o espanto, o médico que veio de longe. Primeiro, por ver o dia e a
noite no mesmo sítio e à mesma hora. Depois a surpresa multiplicou-se à medida
que lhe surgiam meninos barbados e tristes. Apenas observou, com minúcia, uma
criança, e achou remédio para rebater o mal de todas as outras. Abriu a pasta
de couro, retirou um caderno e a caneta. Escreveu rápido. Entregou a receita,
não aceitou o dinheiro da consulta. E partiu a toda a velocidade, como se a
nossa doença alastrasse por contágio.
O ladrão de palavras estava junto de nós. Ninguém o viu, mas ele esteve sempre
no meio de nós. Adivinhámos a sua presença pelas palavras que a palhinha invisível
havia sorvido da receita:
«A sombra misturou-se com a tristeza. Só um , colher vezes dia, silêncio.»
A nuvem, nesse instante, cresceu largos metros: porque todos nós, velhos e
novos, sem saber o que o médico nos havia indicado, ficámos ainda mais tristes.
Mas a última palavra da receita (que o Ladrão terá achado de pouco valor para
guardar no saco de linho), abria uma pista. Se descobríssemos o verbo que
precedia silêncio, seria desvendado o mistério.
O automóvel do médico havia já dobrado o monte, e foi então, de forma
inesperada, que se ouviu o grito:
«É preciso prender o ladrão de palavras!»
O grito atravessou a aldeia, acordou os cães do lado onde era noite, assustou
as galinhas da parte onde era dia.
Uma mulher ergueu a voz e os braços na direcção da nuvem: afrontou (afrontar, o
verbo que procurávamos) o silêncio. De repente, outros habitantes resgataram a
coragem, a palavra coragem, adormecida no bosque dos cogumelos!
A nuvem estremeceu, depois, como bicho do monte, fugiu espavorida. Num instante,
o céu ficou leve, azul, imensamente azul. E sol, generoso, bebeu a nossa
melancolia.
Em grande festa, o povo partiu à descoberta do bosque. Primeira surpresa: não
havia cogumelos gigantes, muito menos venenosos. Mas o saco de linho estava lá,
ao pé de um velho medronheiro. Abrimos o saco e o saco nada tinha!
Nesse dia luminoso, verdadeiramente luminoso, no saco de linho vazio prendemos
o ladrão da alegria. Ele, afinal, era uma palavra — a palavra medo.
Francisco Duarte Mangas
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