terça-feira, 20 de maio de 2014

OUTROS CONTOS

Publica-se em dois capítulos, retirado da obra-prima «Comédia Humana», conto de Honoré de Balzac.
Poet'anarquista

«I- Gillette», por Honoré de Balzac.

Rue des Grands Augustiniens/ Paris
Balzac e Picasso

«Gillette»
Ilustração de Picasso

153- «I- GILLETTE»

Em fins de 1612, numa fria manhã de Dezembro, um rapaz, cujo vestuário era de modesta aparência, passeava em frente à porta de uma casa situada na Rue des Grands Augustiniens, em Paris. Depois de por muito tempo caminhar por aquela rua com a irresolução de um amante que não ousa apresentar-se em casa da sua primeira conquista, por mais fácil que ela tivesse sido, acabou por transpor o umbral daquela porta e perguntou se mestre Francisco Porbus estava em casa. Ante a resposta afirmativa que lhe foi dada por uma velha entretida em varrer uma sala baixa, o jovem subiu ágilmente os degraus, detendo-se em cada um deles como um cortesão noviço, inquieto pelo acolhimento que lhe faria o rei. Quando chegou ao alto da escadaria de caracol, ficou um momento no patamar, hesitando se usaria ou não a grotesca aldraba que ornamentava a porta da oficina onde devia trabalhar o pintor de Henrique IV, ao qual Maria de Médicis preferiu Rubens. O rapaz experimentava essa sensação profunda que deve ter feito vibrar o coração dos grandes artistas quando, em pleno zénite da mocidade e do amor pela arte, enfrentaram um homem de génio ou alguma obra-prima. Existe em todos os sentimentos humanos uma flor primitiva, engendrada por um nobre entusiasmo que vai continuamente enfraquecendo até que a felicidade não seja mais do que uma lembrança e a glória uma mentira. Por entre essas frágeis emoções, nada se assemelha tanto ao amor como a juvenil paixão de um artista que inicia o delicioso suplício de seu destino de glória e de infortúnio, paixão cheia de audácia e de timidez, de crenças vagas e de desânimos positivos. Ao artista que, de poucos haveres, que, adolescente de génio, não palpitou vivamente ao apresentar-se diante de um mestre, sempre faltará uma corda no coração, não sei que pincelada, que sentimento na obra, que indefinível expressão de poesia. Se alguns fanfarrões, cheios de si, crêem muito cedo no futuro, esses serão homens de espírito somente para os néscios. A ser assim, o jovem desconhecido parecia ter verdadeiro merecimento, se é que o talento deve medir-se por essa timidez inicial, por esse pudor indefinível que os que são destinados à glória sabem perder no exercício de sua arte, como as mulheres bonitas perdem o seu nos manejos da faceirice. O hábito do triunfo apequena a dúvida, e o pudor é talvez uma dúvida.
Deprimido pela miséria e surpreendido naquele momento por sua petulância, o pobre neófito não teria entrado em casa do pintor a quem devemos o admirável retrato de Henrique IV, sem um auxílio extraordinário que o acaso lhe proporcionou. Um ancião vinha subindo a escada. Pela singularidade do seu traje, pela magnificência de seu cabeção de renda, pela preponderante calma do seu andar, o rapaz adivinhou ser aquele personagem um protetor, ou amigo do pintor; recuou no patamar para dar-lhe lugar e examinou-o com curiosidade, na esperança de achar nele a boa índole de um artista ou o caráter serviçal das pessoas que amam a arte; mas naquele rosto divisou alguma coisa de diabólico, e, sobretudo, esse não sei que tanto atrai os artistas. Imaginem uma fronte calva, abaulada, proeminente, projetando-se saliente sobre um nariz pequeno e chato, arrebitado na ponta como o de Rabelais ou o de Sócrates; uma boca risonha e enrugada, um queixo curto, orgulhosamente erguido, tapado por uma barba grisalha, aparada em ponta, olhos verde-mar embaciados na aparência pela idade, mas que, pelo contraste do branco nacarado em que a pupila flutuava, deviam por vezes despedir olhares magnéticos no paroxismo da cólera ou do entusiasmo. O rosto, aliás, estava singularmente emurchecido pelas fadigas da idade e, mais ainda, por esses pensamentos que corroem igualmente a alma e o corpo. Os olhos não tinham mais cílios, e mal se viam vestígios de sobrancelhas por sobre as arcadas salientes. Ponham essa cabeça num corpo franzino e débil, cerquem-na de uma renda de deslumbrante alvura e perfurada como uma colher para peixe, atirem sobre o gibão preto do ancião uma pesada corrente de ouro e terão uma imagem imperfeita desse personagem, ao qual a escassa luz da escada acrescentava ainda uma cor fantástica. Dir-se-ia uma tela de Rembrandt caminhando silenciosamente, e sem o quadro, na escura atmosfera de que o grande pintor se apropriou. O ancião dirigiu ao rapaz um olhar repassado de sagacidade, bateu três pancadas na porta e disse a um homem valetudinário, de cerca de quarenta anos, que veio abrir:
- Bom dia, mestre.
Porbus inclinou-se respeitosamente; deixou o rapaz entrar, por julgá-lo trazido pelo ancião, e preocupou-se tanto menos com ele, por ter o neófito permanecido sob o encantamento que devem experimentar os pintores de vocação ante o aspecto do primeiro ateliê que vêem e onde se lhes revelam alguns dos processos materiais da arte. Uma claraboia existente no teto iluminava o ateliê de Porbus. Concentrada sobre uma tela colocada no cavalete e que não fora ainda tocada senão por três ou quatros traços brancos, a luz não alcançava as negras profundezas dos cantos daquela vasta peça; entretanto, alguns reflexos perdidos faziam brilhar naquela sombra pardacenta uma paleta prateada no ventre de uma couraça  suspensa na parede, listavam com um brusco sulco de luz a cornija esculpida e encerada de um antigo aparador coberto de louças curiosas ou pontilhavam de pingos brilhantes o tecido granuloso de alguns velhos reposteiros de brocado dourado, de grandes pregas desfeitas, atirados ali como modelos. Manequins de gesso, fragmentos e bustos de deusas antigas, amorosamente polidas pelos beijos dos séculos, enchiam as mesinhas e os consolos. Numerosos esboços, estudos a lápis, a três cores, sanguíneos ou feitos a pena, cobriam as paredes até o teto. Caixas de tintas, garrafas de óleo e de essência, escabelos caídos não deixavam senão um caminho estreito para chegar em baixo da auréola projetada pela claraboia, cujos raios caíam em cheio no pálido semblante de Porbus e sobre o crânio de marfim do homem singular. A atenção do rapaz foi logo exclusivamente solicitada por um quadro que, naquele tempo de motins e de revoluções, já se tornara célebre, e que era visitado por alguns desses teimosos aos quais se deve a conservação do fogo sagrado durante os dias maus. 
Aquela bela página representava uma Maria Egipcíaca que se dispunha a pagar a passagem da barca. Essa obra-prima, destinada a Maria de Médicis, foi por ela vendida nos dias de sua miséria.
- Tua santa me agrada disse o ancião a Porbus - e eu te daria por ela dez escudos de ouro acima do preço que a rainha oferece; mas competir com ela... é o diabo!
- Acha-a bem?
- Hum! hum! fez o ancião - bem?... sim e não. Essa tua mulherzinha não está mal-arranjada, mas não tem vida. Vocês pensam ter feito tudo quando desenharam corretamente uma figura e puseram corretamente cada coisa em seu lugar segundo as leis da anatomia! Vocês cobrem esse esboço com tonalidades de carne de antemão preparadas na paleta, tendo o cuidado de manter um dos lados mais sombrio do que o outro, e, como olham de quando em quando uma mulher nua que se conserva de pé em cima de uma mesa, julgam ter copiado a natureza; imaginam que são pintores e que roubaram o segredo de Deus!... Prrr! Não basta para ser um grande poeta conhecer a fundo a sintaxe e não cometer erros de linguagem! Olha tua santa, Porbus! À primeira vista ela parece admirável; mas a um segundo exame vê-se que está colada no fundo da tela e que não seria possível dar uma volta em torno do seu corpo. É uma silhueta que só tem uma face, é uma aparência recortada, uma imagem incapaz de se virar, de mudar de posição. Não sinto ar entre esse braço e o fundo do quadro; faltam espaço e profundidade: entretanto, em perspectiva tudo está bem e a degradação aérea está exatamente observada; mas, apesar de tão louváveis esforços, eu não poderia crer que esse belo corpo esteja animado pelo morno sopro da vida. Parece-me que, se eu colocasse a mão naquele colo de carnes firmes e harmoniosas, eu o acharia frio como mármore. Não, meu amigo, o sangue não corre por baixo daquela pele de marfim, a vida não intumesce com seu orvalho purpúreo as veias e as fibrilas que se entrelaçam em redes sob a transparência de âmbar das têmporas e do peito. Este lugar palpita, mas aquele outro está imóvel, em cada pormenor a vida e a morte lutam: aqui é uma mulher, ali é uma estátua, mais além é um cadáver. Tua criação é incompleta. Não pudeste transmitir senão uma parte de tua alma à tua obra querida. O facho de Prometeu mais de uma vez se apagou nas tuas mãos e muitos lugares do teu quadro não foram tocados pela chama celeste.
- Mas por quê, meu caro mestre? - disse respeitosamente Porbus ao ancião, enquanto o rapaz dificilmente reprimia um forte desejo de sová-lo.
- Ah! aí está! - respondeu o velhinho. - Flutuaste indeciso entre os dois sistemas, entre o desenho e a cor, entre a fleuma minuciosa, a rigidez precisa dos velhos mestres alemães e o ardor deslumbrante, a feliz abundância dos pintores italianos. Quiseste imitar ao mesmo tempo Hans Holbein e Ticiano, Albrecht Durer e Paolo Veronese. Evidentemente, era isso uma ambição magnífica! Mas que aconteceu? Não alcançaste nem a sedução severa da secura nem as decepcionantes magias do claro-escuro. Neste lugar, como um bronze em fusão que arrebenta seu molde fraco demais, a rica e loura cor do Ticiano fez romper-se o magro contorno de Albrecht Durer, em que o tinhas moldado. Além, o desenho resistiu aos magníficos transbordamentos da paleta veneziana e os conteve. Tua figura não está nem perfeitamente desenhada nem perfeitamente pintada, e mostra em toda parte os vestígios dessa infeliz indecisão. Se não te sentias suficientemente forte para fundir juntos ao fogo do teu génio as duas maneiras rivais, devias ter optado francamente por uma ou outra, a fim de obter a unidade que simula uma das condições da vida. Tu não és verdadeiro senão nos centros, teus contornos são falsos, não se envolvem e nada prometem por detrás. Aqui há verdade - disse o ancião, mostrando o peito da santa. - E também aqui - continuou ele indicando o ponto em que, no quadro, terminava o ombro. - Mas ali - acrescentou, voltando ao centro do colo - tudo é falso. Não analisemos nada, que isso seria desesperar-te.
O ancião sentou-se numa banqueta, segurou a cabeça com as mãos e ficou calado.
Mestre - disse-lhe Porbus -, entretanto estudei bem o nu deste colo; mas, por infelicidade nossa, existem efeitos verdadeiros na natureza que na tela não são mais prováveis...
- A missão da arte não é copiar a natureza e sim exprimi-la! Não és um vil copista, e sim um poeta! - exclamou vivamente o ancião, interrompendo Porbus com um gesto despótico. - De outra forma, um escultor estaria quite com todos os seus trabalhos modelando uma mulher! Pois bem, experimenta modelar a mão de tua amante e a colocar diante de ti; depararás com um horrível cadáver, sem nenhuma parecença, e serás forçado a ir em busca do escopro do homem que, sem copiá-la exatamente, nela representará o movimento e a vida. Temos de apreender o espírito, a alma, a fisionomia das coisas e dos seres. Os efeitos! os efeitos! mas se eles são os acidentes da vida e não a vida! Uma mão, já que recorri a esse exemplo, uma mão não está unicamente presa ao corpo, ela exprime e continua um pensamento que é preciso apreender e reproduzir. Nem o pintor nem o poeta nem o escultor devem separar o efeito da causa, que invencivelmente estão um no outro. A verdadeira luta está aí! Muitos pintores triunfam instintivamente sem conhecer esse tema da arte. Vocês desenham uma mulher, mas não a vêem! Não é assim que se consegue forçar o arcano da natureza. As mãos de vocês reproduzem, sem que se dêem conta, o modelo que copiaram na oficina do mestre. Vocês não descem suficientemente na intimidade da forma, não a perseguem com suficiente amor e perseverança nos seus desvios e nas suas fugas. A beleza é uma coisa severa e difícil que não se deixa alcançar à vontade, é preciso esperar suas horas, espioná-la, acossá-la e enlaçá-la firmemente para obrigá-la render-se. A Forma é um Proteu muito mais inatingível e mais fértil em sinuosidades do que o Proteu da Fábula; não é senão depois de demorados combates que se pode constrangê-la a mostrar-se sob seu verdadeiro aspecto. Vocês contentam-se com a primeira aparência que ela lhes entrega, ou quando muito com a segunda, ou com a terceira; não é assim que procedem os lutadores vitoriosos! Esses pintores jamais vencidos não se deixam ludibriar por esses mais-ou-menos, perseveram até que a natureza se veja reduzida a mostrar-se inteiramente nua, e no seu verdadeiro espírito. Assim procedeu Rafael - disse o ancião, tirando seu boné de veludo preto para exprimir o respeito que lhe inspirava o rei da arte -, sua grande superioridade provém do sentido íntimo que, nele, parece querer despedaçar a forma. A forma, nas suas figuras, é o mesmo que entre nós, um intérprete para comunicar ideias, sensações, uma vasta poesia. Toda imagem é um mundo, um retrato cujo modelo surgiu numa visão sublime, colorido de luz, designado por uma voz interior, despido por um dedo celestial que mostrou, no passado de toda uma vida, as fontes da expressão. Vocês fazem nas suas mulheres belos vestidos de carne, belos cortinados de cabelos, mas onde o sangue que engendra a calma ou a paixão e que causa efeitos particulares? Tua santa é uma mulher morena, mas isto aqui, meu pobre Porbus, é de uma loura! As figuras de vocês são então pálidos fantasmas coloridos que vocês nos passeiam diante dos olhos, e chamam a isso pintura e arte! Pelo fato de terem feito alguma coisa que se assemelha mais a uma mulher do que a uma casa, vocês pensam ter alcançado o alvo, e, muito ufanos por não serem mais obrigados a escrever ao lado de suas figuras, currus venustus ou pulcher homo, como os primeiros pintores, vocês julgam ser artistas maravilhosos! Ah! ah! ainda não alcançaram o alvo, meus denodados companheiros; terão ainda de gastar muitos lápis, borrar muitas telas antes de tal conseguir! Não há dúvida de que uma mulher traz a cabeça desse modo, ela segura a saia assim, seus olhos se enlanguescem e se fundem nesse ar de doçura resignada, a sombra palpitante dos cílios flutua desse modo sobre as faces! É isso e não é isso. Que falta, pois? um nada, mas esse nada é tudo. Vocês dão a aparência da vida mas não exprimem seu excesso que transborda, esse não sei que é a alma, talvez, e que flutua nebulosamente sobre o invólucro; enfim, essa flor de vida que Ticiano e Rafael surpreenderam. Partindo-se do ponto extremo a que vocês chegaram, far-se-ia, talvez, excelente pintura;
mas vocês se cansam muito depressa. O vulgo admira, mas o verdadeiro conhecedor sorri. Ó Mabuse, ó meu mestre - acrescentou aquele singular personagem -, és um ladrão, levaste a vida contigo! Feitas essas restrições - prosseguiu -, esta tela vale mais do que as pinturas desse mariola de Rubens, com as suas montanhas de carnes flamengas, polvilhadas de vermelhão, com suas bátegas de cabeleiras castanhas e sua orgia de cores. Pelo menos você tem aí cor, sentimento e desenho, as três partes essenciais da arte.
- Mas essa santa é sublime, velhote! - exclamou o rapaz com voz forte, ao sair de demorado devaneio. 
- Essas duas figuras, a da santa e a do barqueiro, têm uma finura de intenção que os pintores italianos ignoravam; não conheço um único que tivesse inventado a indecisão do barqueiro.
- Esse maroto é seu? - perguntou Porbus ao ancião.
- Ai de mim! mestre, perdoe o meu atrevimento - respondeu o neófito, corando. - Sou desconhecido, um pintamonos instintivo, e chegado faz pouco a esta cidade, fonte de toda ciência.
- Mãos à obra! - retrucou-lhe Porbus apresentando-lhe um lápis vermelho e uma folha de papel.
O desconhecido copiou celeremente a Maria em poucos traços.
- Oh! oh! - exclamou o ancião. - Como se chama?
O rapaz escreveu por baixo: Nicolas Poussin.
- Eis aqui algo que não está mal para um principiante - afirmou a singular personagem que tão aloucadamente discorria. - Vejo que se pode falar em pintura diante de ti. Não te censuro por teres admirado a santa de Porbus. Para todos é uma obra-prima, e somente os iniciados nos mais profundos arcanos da arte podem descobrir no que ela peca. Uma vez, porém, que és digno da lição e capaz de compreender, vou fazer-te ver o pouco que seria preciso para completar a obra. Abre bem os olhos e presta toda a atenção, pois semelhante ocasião de te instruíres não tornará jamais, talvez, a se apresentar. Tua paleta, Porbus!
Porbus foi buscar a paleta e os pincéis. O velhinho arregaçou as mangas com um gesto de rudeza convulsa, passou o polegar na paleta matizada e cheia das tintas que Porbus lhe oferecia; arrancou-lhe das mãos, mais do que o recebeu, um punhado de pincéis de todos os tamanhos, e sua barba, aparada em ponta, moveu-se subitamente por esforços ameaçadores que exprimiam o prurido de uma apaixonada fantasia. Ao mesmo tempo que enchia o pincel de tinta, resmungava entre dentes:
"Estas cores só prestam para ser atiradas pela janela, junto com o que as misturou: são de uma crueza e de uma falsidade revoltantes! Como se poderá pintar com isso?"
Molhava depois com febril vivacidade a ponta do pincel nas várias cores, das quais percorria por vezes toda a escala mais rapidamente do que um organista de catedral percorre a extensão de seu teclado no O filii da Páscoa.
Porbus e Poussin permaneciam imóveis, cada um deles a um lado da tela, mergulhados na mais veemente contemplação.
- Vês, rapaz - ia dizendo o velho, sem se voltar -, vês como por meio de três ou quatro pinceladas e de uns toques azulados se podia fazer o ar circular à roda da cabeça desta pobre santa, que devia estar sufocada e sentir-se presa nessa atmosfera densa! Olha como esta fazenda revoluteia agora e como se compreende que a brisa a soergue! Antes tinha o aspecto de uma tela engomada e presa com alfinetes. Estás notando como o brilho acetinado que acabo de depor no peito reproduz bem a fofa flexibilidade de uma pele de moça, e como o tom misturado de pardo-avermelhado e de ocre calcinado aquece a grísea frieza desta grande sombra na qual o sangue se coagulava em vez de circular? Rapaz, rapaz, o que aqui te estou mostrando nenhum mestre poderia ensinar-te. Somente Mabuse possuía o segredo de dar vida às figuras. Mabuse teve somente um discípulo, e esse sou eu. Eu não tive nenhum, e estou velho!
Tens suficiente inteligência para adivinhar o resto, por isto que te estou deixando entrever.
Ao mesmo tempo que falava, o estranho ancião tocava em todos os pontos do quadro: aqui duas pinceladas, ali uma única, mas sempre tão a propósito que se diria uma nova pintura, mas uma pintura banhada de luz. Trabalhava com um ardor tão apaixonado que o suor gotejou na sua fronte calva; ia tão rapidamente com pequenos movimentos tão impacientes, tão entrecortados que, para o jovem Poussin, parecia haver no corpo daquela singular personagem um demónio que atuava por suas mãos, tomando-as fantasticamente contra a vontade do homem. O brilho sobrenatural de seus olhos, as convulsões que pareciam o efeito de uma resistência davam àquela ideia um simulacro de verdade que devia atuar sobre uma imaginação moça. O ancião continuava dizendo:
- Paf! paf! paf! eis aqui como isto se lambuza, rapaz! Venham, minhas pinceladinhas, façam-me crestar este tom glacial! Vamos! Pon! pon! pon! - murmurava, dando calor às partes onde se assinalara uma falta de vida, fazendo desaparecer por meio de algumas placas de tinta as diferenças de temperamento, e restabelecendo a uniformidade de tom exigida por uma ardente egípcia.
- Vês, meu filho, o que vale é a última pincelada. Porbus deu cem; eu dou uma somente. Ninguém nos agradece o que está em baixo. Fique sabendo isso bem!
Finalmente, aquele demónio se deteve, e, virando-se para o Porbus e Poussin, mudos de admiração, disse-lhes:
- Isto não vale ainda a minha Belle Noiseuse; entretanto, podia-se assinar o nome ao pé de semelhante obra. Sim, eu a assinaria - acrescentou, erguendo-se para pegar um espelho, no qual olhou-a. - Agora, vamos almoçar - disse ele. - Venham os dois à minha casa. Tenho presunto defumado e bom vinho!... Eh! eh! apesar dos tempos desgraçados, falaremos de pintura! Somos de força... Aqui está um homenzinho - acrescentou, dando uma palmada no ombro de Nicolas Poussin - que tem facilidades.
Ao ver então o casaco ordinário do normando, tirou do cinturão uma bolsa de couro, meteu os dedos nela, de lá trouxe duas moedas de ouro e, mostrando-lhas:
- Compro o teu desenho disse ele.
- Aceita - aconselhou Porbus a Poussin, ao vê-lo estremecer e corar de vergonha, porquanto o jovem adepto tinha o orgulho do pobre. - Aceita de uma vez, pois que na sua sacola ele tem o resgate de dois reis.
Os três desceram a escada da oficina e caminharam charlando a respeito de arte, até chegarem a uma bela casa de madeira situada perto da ponte de São Miguel, e cujos ornamentos, a aldraba, os caixilhos das janelas, os arabescos, maravilharam Poussin. O aspirante a pintor viu-se repentinamente numa sala baixa, diante de um bom fogo, junto a uma mesa servida de manjares apetitosos, e, por uma felicidade inaudita, na companhia de dois grandes artistas cheios de bonomia.
- Jovem - disse-lhe Porbus, ao vê-lo pasmado em frente a um quadro -, não olhe muito essa tela, pois ficaria desesperado.
Era o Adam, que Mabuse fez para sair da prisão na qual seus credores o retiveram durante muito tempo. Aquela figura apresentava, efetivamente, um tal poder de realidade que Nicolas Poussin começou, desde aquele momento, a compreender o verdadeiro sentido das confusas palavras do ancião. Este contemplava o quadro com ar satisfeito, mas sem entusiasmo, parecendo dizer: ''Fiz coisa melhor!''
- Há vida aí - comentou -; meu pobre mestre sobrepujou-se; falta, porém, ainda um pouco de verdade no fundo da tela. O homem está bem vivo, vai levantar-se e dirigir-se para nós. Mas o ar, o céu, o vento que respiramos, vemos e sentimos não estão aí. Ademais, não há aí mais do que um homem! Ora, o único homem saído diretamente das mãos de Deus devia ter algo de divino, que falta. O próprio Mabuse, quando não estava ébrio, dizia isso cheio de despeito.
Poussin olhava alternativamente para o ancião e para Porbus com uma curiosidade inquieta. Aproximou-se deste como para perguntar-lhe o nome do anfitrião; o pintor, porém, pôs um dedo nos lábios com ar de mistério, e o rapaz, vivamente interessado, calou-se, esperando que cedo ou tarde alguma palavra lhe permitiria adivinhar o nome do seu hospedeiro, cuja riqueza e talentos eram suficientemente atestados pelo respeito que Porbus lhe testemunhava e pelas maravilhas acumuladas naquela sala.
Poussin, ao ver no sombrio forro de madeira de carvalho um magnífico retrato de mulher, exclamou:
- Que belo Giorgione!
- Não - replicou o ancião -, está vendo uma das minhas primeiras lambuzadas.
- Demónios! estou então em casa do deus da pintura! - disse ingenuamente Poussin.
O ancião sorriu como um homem habituado de há muito a esse elogio.
- Mestre Frenhofer! - disse Porbus - não quererá mandar buscar um pouco do seu bom vinho do Reno para mim?
- Duas pipas! - respondeu o ancião. - Uma para pagar o prazer que tive esta manhã ao ver tua linda pecadora e a outra como um presente de amizade.
- Ah! se eu não estivesse sempre doente - respondeu Porbus - e se quisesse deixar-me ver sua Belle Noiseuse, eu poderia fazer alguma pintura elevada, vasta e profunda, na qual as figuras seriam de tamanho natural.
- Mostrar minha obra! - disse o ancião, emocionado. - Não! não! preciso aperfeiçoá-la ainda. Ontem, ao entardecer, pensei tê-la terminado. Os olhos dela pareciam-me húmidos, sua carne estava agitada. As tranças dos seus cabelos moviam-se. Ela respirava! Embora eu tenha achado o meio de realizar numa tela chata o relevo e as rotundidades da natureza, hoje de manhã, à luz, reconheci meu erro. Ah! para chegar a esse resultado glorioso, estudei a fundo os grandes mestres do colorido, analisei e ergui camada por camada os quadros do Ticiano, esse rei da luz; como esse pintor soberano, esbocei minha figura num tom claro com uma pasta flexível e abundante, porque a sombra nada mais é do que um acidente, guarda isso, garoto! Depois voltei à minha obra e, por meio de meias-tintas e de cores claras e translúcidas cuja transparência eu ia diminuindo gradualmente, reproduzi as mais vigorosas sombras e até os mais rebuscados negros; porquanto as sombras dos pintores comuns são de outra natureza que os seus tons claros; é madeira, é bronze, e tudo que quiserem, menos carne na sombra. Sente-se que, se as figuras deles mudassem de posição, os lugares sombreados não se clareariam e não se tornariam luminosos. Evitei esse erro, no qual muitos dos mais ilustres caíram, e em mim a alvura se realça sob a opacidade da mais firme sombra. Não fiz como uma porção de ignorantes que pensam desenhar corretamente porque fazem um traço cuidadosamente nítido; não, eu não assinalei secamente as bordas exteriores da minha figura e não fiz ressaltar até a menor minúcia anatómica, porque o corpo humano não acaba por linhas. Nisso, os escultores podem aproximar-se mais da verdade do que nós. A natureza comporta uma série de curvas que se envolvem umas nas outras. Rigorosamente falando, o desenho não existe! Não se ria, rapaz! Por mais estranha que lhe pareça essa afirmação, algum dia você lhe compreenderá as razões. A linha é o meio pelo qual o homem se dá conta do efeito da luz sobre os objetos; mas na natureza, onde tudo é cheio, não há linhas: é modelando que se desenha, isto é, que se destacam as coisas do meio em que elas se acham: é somente a distribuição da luz que dá aparência ao corpo! Por isso não fixei os traços, espalhei sobre os contornos uma nuvem de meias-tintas louras e quentes que faz com que não se possa com precisão colocar o dedo no lugar em que eles se confundem com o fundo. De perto, esse trabalho parece nebuloso e como que falto de precisão; mas a dois passos tudo se afirma, se detém, se destaca; o corpo gira, as formas tornam-se salientes, sente-se o ar circular em torno. Entretanto, ainda não estou satisfeito, tenho dúvidas. Seria preciso talvez não desenhar um único traço, talvez fosse preferível começar uma figura pelo meio, dedicando-se primeiro às saliências mais iluminadas, para passar depois às porções mais sombrias. Não é assim que faz o sol, esse divino pintor do universo? Ó natureza! natureza! quem jamais te surpreendeu nas tuas fugas! Olhem, o excesso de ciência, do mesmo modo que a ignorância, leva a uma negação. Não tenho confiança na minha obra!
O ancião fez uma pausa, depois prosseguiu:
- Faz dez anos, meu rapaz, que trabalho; mas o que são dez minguados anos quando se trata de tirar com a natureza? Ignoramos o tempo que o senhor Pigmalião empregou para fazer a única estátua que caminhou!
O ancião mergulhou em profunda meditação e permaneceu de olhos fixos, brincando maquinalmente com uma faca.
- Ei-lo em conversação com o seu espírito! - disse Porbus em voz baixa.
Ao ouvir tais palavras, Nicolas Poussin sentiu-se sob a influência de uma inexplicável curiosidade de artista. Aquele ancião de olhos brancos, atento e estúpido, que se tornara para ele mais do que um homem, afigurou-se-lhe um génio fantástico que vivesse numa esfera desconhecida. Ele despertava-lhe mil ideias confusas na alma. O fenómeno moral dessa espécie de fascinação não pode ser definido, tanto quanto não o pode ser a emoção provocada por uma canção que lembre a pátria no coração de um exilado. O desprezo que aquele homem velho afetava manifestar pelas mais belas tentativas da arte, sua riqueza, suas maneiras, a deferência de Porbus por ele, aquela obra por tanto tempo mantida em segredo, obra de paciência, sem dúvida uma obra de génio, se se devia julgar pela cabeça da Virgem que o jovem Poussin tão francamente admirara e que, bela ainda, mesmo ante o Adam de Mabuse, atestava a imperial feitura de um dos príncipes da arte: tudo naquele ancião ultrapassava os limites da natureza humana. O que a rica imaginação de Nicolas Poussin pôde apreender de claro e de perceptível ao ver aquela criatura sobrenatural foi uma imagem completa da natureza artística, dessa aloucada natureza à qual são confiados tantos poderes e que com demasiada frequência deles abusa, arrastando a fria razão, os burgueses e mesmo alguns amadores através de mil estradas pedregosas onde, para eles, nada há; ao passo que, brincalhona nas suas fantasias, essa rapariga de asas brancas ali descobre epopéias, castelos, obras de arte. Natureza zombeteira e boa, fecunda e pobre! Assim, pois, para o entusiasta Poussin, aquele ancião tornara-se, por uma súbita transfiguração, a própria Arte, a arte com os seus segredos, seus ardores e seus devaneios.
- Sim, meu caro Porbus - volveu Frenhofer -, faltou-me até agora encontrar uma mulher irrepreensível, um corpo cujos contornos sejam de uma beleza perfeita e cuja carnação... Mas - continuou ele, após uma pausa - onde viverá essa Vénus dos antigos, impossível de achar, tantas vezes procurada e da qual encontramos apenas algumas belezas esparsas? Oh! para ver um momento, uma única vez, a natureza divina, completa, o ideal enfim, eu daria toda a minha fortuna... Mas irei procurar-te nos teus limbos, beleza celestial! Como Orfeu, descerei ao inferno da arte para de lá trazer a vida.
- Podemos ir embora daqui - disse Porbus a Poussin -; ele não nos ouve mais, não nos vê mais!
- Vamos ao seu ateliê - propôs o rapaz, maravilhado.
- Oh! o velho soube defender-lhe a enxada. Seus tesouros estão por demais bem guardados para que possamos chegar até eles. Não esperei tua opinião e tua fantasia para tentar o assalto do mistério.
- Há, então, um mistério?
- Sim - respondeu Porbus. - O velho Frenhofer foi o único discípulo que Mabuse quis ter. Tendo-se tornado amigo dele, seu salvador, seu pai, Frenhofer sacrificou a maior parte de seus tesouros para satisfazer as paixões de Mabuse; em troca, este legou-lhe o segredo do relevo, o poder de dar às figuras essa vida extraordinária, essa flor de natureza, nosso eterno desespero, mas da qual ele possuía tão bem a feitura que um dia, tendo vendido e bebido o damasco de flores com o qual devia vestir-se por ocasião da entrada de Carlos V, ele acompanhou seu senhor com um vestuário de papel pintado de damasco. O brilho particular da fazenda do traje de Mabuse surpreendeu o imperador, o qual, querendo dirigir um cumprimento ao protector do velho ébrio, descobriu a intrujice. Frenhofer é um homem apaixonado pela nossa arte, que vê mais acima e mais longe do que os outros pintores. Ele meditou profundamente sobre as cores, sobre a verdade absoluta da linha; mas, à força de pesquisas, chegou mesmo a duvidar do objeto delas. Nos seus momentos de desespero, ele acha que o desenho não existe e que com linhas não se podem reproduzir senão figuras geométricas; o que ultrapassa a verdade, porquanto com a linha e o preto, que não é uma cor, pode-se fazer uma figura; o que prova que a nossa arte é, como a natureza, composta de uma infinidade de elementos: o desenho dá o esqueleto, a cor é a vida, mas a vida sem o esqueleto é uma coisa mais incompleta do que o esqueleto sem a vida. Enfim, há alguma coisa mais verdadeira do que tudo isto, e é que a prática e a observação são tudo num pintor, e que, se o raciocínio e a poesia se malquistam com os pincéis, chega-se à dúvida como o velhote, que é tão louco quanto pintor. Pintor sublime, ele teve a desgraça de nascer rico, o que lhe permitiu divagar; não o imite! Trabalhe! Os pintores só devem meditar com o pincel na mão.
- Nós penetraremos lá! - exclamou Poussin, que não ouvia mais Porbus e de mais nada duvidava.
Porbus sorriu ante o entusiasmo do jovem desconhecido e separou-se dele convidando-o a que o fosse visitar.
Nicolas Poussin voltou a passos lentos para a Rue de la Harpe e ultrapassou sem se dar conta a modesta hospedaria onde se alojava. Subindo com inquieta celeridade sua escada miserável, chegou a um quarto no alto, situado sob um telhado com trapeira, simples e ligeira cobertura das casas da velha Paris. Junto à única e sombria janela daquele quarto estava uma moça, a qual, ao ruído da porta, ergueu-se subitamente por um impulso de amor; reconhecera o pintor pelo modo com que ele movera o trinco.
- Que tens? - perguntou-lhe.
- Tenho... tenho... - exclamou ele sufocado de gozo - que me senti pintor! Até agora tinha duvidado de mim, mas esta manhã tive confiança em mim! Posso ser um grande homem! Crê, Gillette, seremos ricos, felizes! Há ouro nesses pincéis...
Mas calou-se de repente. Seu rosto grave e vigoroso perdeu sua expressão de alegria quando comparou a imensidão das suas esperanças com a mediocridade de seus recursos. As paredes estavam cobertas de simples papéis cheios de esboços a lápis. Não possuía senão quatro telas próprias. As tintas estavam então muito caras e o pobre rapaz via sua paleta pouco mais ou menos vazia. No seio dessa miséria, ele possuía e sentia riquezas incríveis no coração e a superabundância de um génio devorador. Trazido a Paris por um de seus amigos, fidalgo, ou talvez pelo seu próprio talento, ele ali veio encontrar subitamente uma amante, uma dessas almas nobres e generosas que vêm sofrer junto a um grande homem, partilham seus trabalhos e se esforçam por compreender-lhes os caprichos; forte para a miséria e o amor, como outros são intrépidos para usar o luxo e fazer ostentação de sua insensibilidade. O sorriso que errava nos lábios de Gillette dourava aquele sótão e rivalizava com o brilho do céu. O sol nem sempre brilhava, ao passo que ela sempre estava ali, interiorizada na sua paixão, presa à sua felicidade, ao seu sofrimento, consolando o génio que transbordava no amor antes de se apoderar da arte.
- Ouve, Gillette, vem.
A obediente e alegre moça saltou sobre os joelhos do pintor. Era ela toda graça, toda beleza, linda como uma primavera, ornada com todas as riquezas femininas e iluminando-as com o fogo de uma bela alma.
- Oh! Deus! - exclamou ele - jamais me atreverei a dizer-lhe...
- Um segredo? - perguntou ela. - Quero sabê-lo.
Poussin permaneceu pensativo.
- Fala de uma vez.
- Gillette... pobre coração amado!
- Oh! queres alguma coisa de mim?
- Sim.
- Se queres que eu pose ainda para ti, como no outro dia - replicou ela com um arzinho amuado -, jamais consentirei em tal, porque nesses momentos teus olhos não me dizem mais nada. Não pensas mais em mim e contudo me olhas.
- Preferirias ver-me copiando uma outra mulher?
- Talvez - disse ela -, se fosse bem feia.
- Pois bem - replicou Poussin, em tom sério -, se, pela minha glória futura, se, para me tornar um grande pintor, fosse preciso ires posar para outro?
- Queres pôr-me à prova - respondeu ela. - Sabes perfeitamente que eu não iria.
Poussin inclinou a cabeça sobre o peito, como um homem que sucumbe a uma alegria ou a uma dor forte demais para a sua alma.
- Ouve - disse ela puxando Poussin pela manga de seu gibão surrado .-, eu te disse, Nick, que daria minha vida por ti; mas nunca te prometi renunciar ao meu amor enquanto vivesse.
- Renunciar? - exclamou o jovem artista.
- Se eu me mostrasse assim a um outro, tu não me amarias mais, e eu mesma me acharia indigna de ti. Obedecer aos teus caprichos não é uma coisa natural e simples? Embora não queira, sinto-me feliz e mesmo orgulhosa por fazer tua vontade querido. Mas para um outro, Deus me livre!
- Perdoa, minha Gillette - disse o pintor ajoelhando-se aos pés dela. - Prefiro ser amado a ser glorioso. Para mim, és mais bela do que a fortuna e as honrarias. Vai, atira fora meus pincéis, queima esses esboços. Enganei-me. Minha vocação é amar-te. Não sou um pintor, sou um amante. Morram a arte e todos os seus segredos!
Ela admirava-o, feliz, seduzida. Ela reinava, sentia instintivamente que as artes eram esquecidas por ela e atiradas a seus pés como um grão de incenso.
- Entretanto, trata-se apenas de um ancião - insistiu Poussin. - Ele não poderá ver em ti senão a mulher. Tu és tão perfeita!
- É preciso amar muito - exclamou ela, pronta a sacrificar seus escrúpulos de amor a fim de recompensar seu amante por todos os sacrifícios que ele lhe fazia. - Mas - acrescentou - isso seria perder-me. Ah! perder-me por ti... Sim, seria uma coisa belíssima! Mas tu me esquecerás. Oh! que mau pensamento esse que tiveste!
- Tive-o e te amo - disse ele com uma espécie de contrição. - Mas então serei um infame?
- Consultemos o velho Hardouin - propôs ela.
- Oh! não; fique isso em segredo entre nós dois.
- Pois bem, irei; mas que não estejas presente - disse ela. - Fica na porta, armado com o teu punhal; se grito, entra e mata o pintor.
Não vendo mais do que sua arte, Poussin estreitou Gillette em seus braços.
''Ele não me ama mais!'', pensou Gillette, quando ficou só.
Já estava arrependida da sua resolução. Mas logo foi presa de um pavor mais cruel do que seu arrependimento; esforçou-se em repelir um pensamento horrível que se erguia em seu coração. Julgava já estar amando menos o pintor por suspeitar ser ele menos estimável do que antes.

Honoré de Balzac
(Paris, Fevereiro de 1832)

Amanhã, II capítulo - «Catherine Lescault»

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