Segundo e último capítulo do conto de Honoré de Balzac,
retirado da obra-prima «Comédia Humana». Pode por aqui- «OUTROS
CONTOS» seguir as incidências do primeira parte, com o título «Gillette».
Poet'anarquista
«Catherine Lescault», por Honoré de Balzac.
«Pintando Catherine Lescault»
Ilustração de Picasso
154- «II- CATHERINE LESCAULT»
Três meses depois do encontro de Poussin e Porbus, este foi visitar mestre
Frenhofer. O ancião estava então sujeito a um desses desânimos profundos e
espontâneos cuja causa, se devemos dar créditos aos matemáticos da medicina,
reside numa má digestão, no vento, no calor, ou em alguma inchação dos
hipocôndriacos; e, segundo os espiritualistas, na imperfeição da nossa natureza
moral. O velhote pura e simplesmente se cansara em dar a última de mão no seu
misterioso quadro. Estava preguiçosamente sentado numa vasta poltrona de
carvalho esculpido, forrada de couro preto; e, sem sair de sua atitude
melancólica, dirigiu a Porbus o olhar de um homem que se instalara no seu
tédio.
- E então, mestre - perguntou-lhe Porbus -, o ultramar que foi buscar em Bruges
não era bom? Será que não soube misturar nosso novo branco? Seu óleo era ruim
ou os pincéis eram teimosos?
- Ai de mim! - exclamou o ancião - durante um momento acreditei que minha obra
estivesse concluída; mas com certeza me enganei nalguns detalhes e não
sossegarei enquanto não dissipar minhas dúvidas. Estou decidido a viajar e vou
à Turquia, à Grécia, à Ásia para procurar por lá um modelo e comparar meu
quadro com alguns nus... É possível que eu tenha lá em cima - continuou,
esboçando um sorriso de satisfação - a própria natureza. Por vezes, quase tenho
medo de que um sopro desperte aquela mulher e que ela desapareça.
Depois, ergueu-se de repente, como para partir.
- Oh! oh! - respondeu Porbus - chego a tempo para poupar-lhe as despesas e as
fadigas da viagem.
- Como assim? - perguntou Frenhofer, admirado.
- O jovem Poussin é amado por uma mulher cuja incomparável beleza não tem a
menor imperfeição. Mas, meu caro mestre, se ele consente em emprestar-lha, será
preciso pelo menos que nos deixe ver sua tela.
O ancião permaneceu de pé, imóvel, num estado de perfeita estupidez.
- Como! - exclamou ele, por fim, dolorosamente - mostrar minha criatura, minha
esposa? rasgar o véu sob o qual castamente encobri minha felicidade? Mas isso
seria uma horrível prostituição! Faz dez anos que vivo com essa mulher, ela é
minha, só minha, ela me ama. Não me sorriu cada pincelada que lhe dei? Ela tem
uma alma, a alma com que a dotei. Ela coraria se outros olhos que não os meus a
fixassem. Mostrá-la! mas qual é o marido, o amante suficientemente vil para
levar sua mulher à desonra? Quando fazes ora quadro para a Corte, não pões nele
toda a tua alma, não vendes aos cortesãos mais do que manequins coloridos.
Minha pintura não é uma pintura, é um sentimento, uma paixão! Nascida na minha
oficina, ela aí deve permanecer virgem e não pode sair senão vestida. A poesia
e as mulheres só se entregam nuas aos seus amantes! Possuímos nós o modelo de
Rafael, a Angélica de Ariosto, a Beatriz do Dante? Não! não lhes vemos senão as
formas. Pois bem, a obra que tenho lá em cima trancada a ferrolho é uma excepção
na nossa arte. Não é uma tela, é uma mulher! uma mulher com a qual choro, rio,
converso, penso. Queres que repentinamente eu abandone uma felicidade de dez anos
como se atira uma capa; que repentinamente eu deixe de ser pai, amante e Deus?
Essa mulher não e uma criatura, é uma criação. Que venha o teu rapaz, eu lhe
darei meus tesouros, quadros de Correggio, de Michelangelo, de Ticiano,
beijarei as pegadas de seus passos na poeira; mas fazer dele meu rival?
opróbrio sobre mim! Ah! ah! sou mais amante ainda do que pintor. Sim, terei
forças para queimar a minha Belle Noiseuse ao dar o último suspiro; mas fazê-la
suportar o olhar de um homem, de um rapaz, de um pintor? não, não! Mataria no
dia seguinte aquele que a tivesse poluído com um olhar! Eu te mataria agora
mesmo, a ti, que és meu amigo, se não a saudasses de joelhos! Queres agora que
eu submeta meu ídolo às frias miradas e às críticas estúpidas dos imbecis? Ah!
o amor é um mistério que só tem vida no fundo dos corações, e tudo está perdido
quando um homem diz, mesmo ao seu amigo: "Aí está a mulher que
amo!"
O ancião parecia ter remoçado; seus olhos tinham brilho e
tinham vida; suas faces pálidas estavam matizadas de um vermelho vivo e suas
mãos tremiam. Porbus, espantado com a violência apaixonada com que aquelas
palavras foram proferidas, não sabia o que responder a um sentimento tão novo
como profundo. Frenhofer estava no uso da razão ou louco? Estaria ele subjugado
por uma fantasia de artista, ou as idéias que ele exprimira procederiam desse
singular fanatismo que se produz em nós pela criação laboriosa de uma grande
obra? Poder-se-ia esperar transigir um dia com aquela paixão estranha?
Empolgado por todos esses pensamentos, Porbus disse ao
ancião:
- Mas não é uma mulher por outra mulher? Não entrega Poussin
sua amante aos olhares do senhor?
- Que amante? - respondeu Frenhofer. - Cedo ou tarde ela o
trairá. A minha me será sempre fiel!
- Pois bem - disse Porbus -, não falemos mais nisso. Mas,
antes do senhor achar, mesmo na Ásia, uma mulher tão bela, tão perfeita como
esta de que lhe falo, morrerá talvez sem ter concluído seu quadro.
- Oh! ele está acabado - disse Frenhofer. - Quem o visse,
julgaria estar vendo uma mulher deitada num leito de veludo, velada por
cortinas. Junto a ela uma tripeça de ouro exala perfumes. Ficarias tentado a
agarrar as borlas dos cordões que retêm as cortinas, e te pareceria ver o seio
de Catherine Lescault, uma bela cortesã chamada Belle Noiseuse, mover-se com a
respiração. Entretanto, eu quisera ter certeza...
- Vá pois para a Ásia - respondeu Porbus, ao perceber uma
certa hesitação no olhar de Frenhofer.
E Porbus deu alguns passos em direção à porta da sala.
Nesse momento, Gillette e Nicolas Poussin tinham chegado
junto à residência de Frenhofer. Quando a moça estava a ponto de entrar, soltou
o braço do pintor e recuou como se a tivesse invadido algum súbito
pressentimento.
- Mas, afinal, que venho eu fazer aqui? - perguntou ao amante
com um som de voz profundo e olhando-o fixamente.
- Gillette, deixei-te senhora de tua vontade e quero
obedecer-te em tudo. Tu és minha consciência e minha glória. Volta para casa;
eu serei mais feliz, talvez, do que se tu...
- Pertenço-me, acaso, quando me falas assim? Oh! não, não
sou senão uma criança... Vamos acrescentou, parecendo fazer um esforço violento
-, se nosso amor morrer e se puser no meu coração um infindável arrependimento,
não será tua celebridade o preço da minha obediência aos teus desejos?
Entremos, será ainda viver o estar sempre como uma recordação na tua paleta.
Ao abrirem a porta da casa, os dois amantes se encontraram
com Porbus, o qual, surpreendido pela beleza de Gillette, cujos olhos estavam
naquele momento rasos de lágrimas, segurou-a toda trémula e, levando-a ante o
ancião, disse-lhe:
- Veja, não vale ela todas as obras-primas do mundo?
Frenhofer estremeceu. Gillette ali estava, na atitude
ingénua e simples de uma jovem georgiana inocente e medrosa, raptada por
bandidos e apresentada a algum mercador de escravos. Um pudico rubor corava seu
rosto; ela baixava os olhos; as mãos pendiam aos lados, as forças pareciam
abandoná-la, e lágrimas protestavam contra a violência feita ao seu pudor.
Nesse momento, Poussin, desesperado por ter tirado do sótão aquele belo
tesouro, amaldiçoou-se a si próprio. Tornou-se mais amante do que artista, e
mil escrúpulos torturaram-lhe o coração quando viu os olhos rejuvenescidos do
ancião, o qual, por um hábito de pintor, despiu, por assim dizer, aquela moça,
adivinhando-lhe as formas mais secretas. Retornou então ao feroz ciúme do
verdadeiro amor.
- Partamos, Gillette! - bradou.
Ante aquele rasgo, a amante, alegre, ergueu os olhos para
ele, viu-o, e correu para seus braços.
- Ah! então tu me amas! - respondeu, desatando a chorar.
Depois de ter tido a energia de fazer calar seu sofrimento,
ela não tinha forças para ocultar sua felicidade.
- Oh! deixe-ma por um momento - disse o velho pintor - e
poderás compará-la com a minha Catarina... Sim, consinto.
No grito de Frenhofer ainda havia amor. Parecia ter
faceirice para com seu simulacro de mulher e gozar de antemão o triunfo que a
beleza de sua criação ia conseguir sobre a de uma verdadeira moça.
- Não o deixe desdizer-se - exclamou Porbus, batendo no ombro
de Poussin. - Os frutos do amor passam depressa, os da arte são imortais.
- Para ele - respondeu Gillette, olhando Poussin e Porbus
atentamente - eu não serei então mais do que uma mulher?
Ergueu a cabeça com altivez; mas, quando, depois de dirigir
um olhar cintilante a Frenhofer, ela viu seu amante entretido a contemplar
outra vez o retrato que anteriormente ele tomara por um Giorgione:
- Ah! - disse ela - subamos! Ele nunca me olhou assim.
- Ancião - disse Poussin, arrancando à sua meditação pela
voz de Gillette -, olha esta espada, eu a mergulharei no teu coração à primeira
palavra de queixa que proferir esta moça, atearei fogo a tua casa, e ninguém
sairá dela. Compreendes?
Nicolas Poussin estava sombrio e seu falar foi terrível.
Essa atitude e sobretudo o gesto do jovem pintor consolaram Gillette, que
quase o perdoou por sacrificá-la à pintura e ao seu glorioso futuro. Porbus e
Poussin ficaram na porta do ateliê, olhando em silêncio um para o outro. Se, a
princípio, o pintor de Maria Egipcíaca se permitiu algumas exclamações:
"Ah! ela se está despindo, ele manda-a colocar-se em boa luz!
Compara-a!", pronto calou-se ante o aspecto de Poussin, cujo semblante
estava profundamente triste; e, conquanto os velhos pintores não tenham mais
escrúpulos desses, tão mesquinhos diante da arte, ele admirou-os, de tal forma
eram ingénuos e bonitos. O rapaz estava com a mão no punho da espada e com o
ouvido quase colado à porta. Ambos, na sombra e de pé, assemelhavam-se assim a
dois conspiradores à espera da hora de apunhalar um tirano.
- Entrem, entrem! - disse o ancião, radiante de felicidade.
Minha obra está perfeita, e agora posso mostrá-la com orgulho. Jamais
pintor, pincéis, tintas, tela e luz farão uma rival a Catarina Lescault, a bela
cortesã!
Possuídos de viva curiosidade, Porbus e Poussin correram
para o centro de uma vasta oficina coberta de pó, onde tudo estava em desordem,
onde viram aqui e ali quadros pendurados nas paredes. Detiveram-se primeiro
diante de uma figura de mulher de tamanho natural, seminua, que os encheu de
admiração.
- Oh! não se ocupem com isso - disse Frenhofer -, é uma tela
que borrei para estudar uma pose; esse quadro não vale nada. Aí estão meus
erros - continuou, mostrando-lhes encantadoras composições penduradas às
paredes, à roda deles.
Ante essas palavras, Porbus e Poussin, estupefactos com
aquele desdém por tais obras, procuraram o retrato anunciado, sem
conseguir vê-lo.
- Pois bem, aí está ele! - disse-lhes o ancião, cujos
cabelos estavam em desordem, cujo rosto estava injectado por uma exaltação
sobrenatural, cujos olhos cintilavam, e que ofegava como um rapaz ébrio de
amor. - Ah! ah! - exclamou - não esperavam tanta perfeição! Estão diante de uma
mulher e procuram um quadro. Há tanta profundidade nessa tela, o ar é nela tão
real que não podem mais distingui-lo do ar que nos cerca. Onde está a arte?
perdida, desaparecida! Eis as formas verdadeiras de uma rapariga. Não lhe dei
bem o colorido, a precisão das linhas que parecem terminar o corpo? Não é o
mesmo fenómeno que nos apresentam os objectos que estão na atmosfera como os
peixes na água? Admirem como os contornos se destacam do fundo! Não lhes
parece que podem passar as mãos nesse dorso? Também, durante sete anos, estudei
os efeitos da conjunção da luz e dos objectos. E esses cabelos, não os inunda a
luz?... Mas, creio, ela respirou!... Vejam, esse seio! Ah! quem não o quereria
adorar de joelhos? As carnes palpitam. Ela vai erguer-se, esperem!
- Está vendo alguma coisa? - perguntou Poussin a Porbus.
- Não. E você?
- Nada.
Os dois pintores deixaram o velho entregue a seu êxtase,
olharam para ver se a luz, ao cair a prumo sobre a tela que ele lhes estava
mostrando, não neutralizava todos os seus efeitos. Examinaram então a pintura
colocando-se à direita, à esquerda, de frente, abaixando-se
e levantando-se alternativamente.
- Sim, sim, é mesmo uma tela - dizia-lhes Frenhofer,
enganando-se com a finalidade daquele exame escrupuloso. - Olhem, aqui está a
moldura, o cavalete, enfim, aqui estão minhas tintas, meus pincéis.
E apoderou-se de um pincel, que lhes apresentou num gesto
ingénuo.
- O velho lansquenete está divertindo-se à nossa custa -
disse Poussin, voltando para diante do pretenso quadro. - Não vejo ali senão
cores confusamente amontoadas e contidas por uma porção de linhas esquisitas que
formam uma muralha de pintura...
- Nós nos enganamos, veja! - respondeu Porbus.
Aproximando-se, perceberam num canto da tela a ponta de
um pé nu que saía daquele caos de cores, de tons, de matizes indecisos, espécie
de bruma sem forma; mas um pé delicioso, um pé com vida! Ficaram petrificados
de admiração diante daquele fragmento escapo a uma incrível, a uma lenta e
progressiva destruição. Aquele pé aparecia ali como um torso de alguma Vénus de
mármore de Paros que surgisse de entre os escombros de uma cidade incendiada.
- Há uma mulher por baixo disso! - exclamou Porbus, fazendo
Poussin notar as camadas de tinta que o velho pintor sobrepusera sucessivamente
ao julgar que aperfeiçoava sua pintura.
Os dois artistas viraram-se espontaneamente para Frenhofer,
começando a compreender, porém de modo vago, o êxtase no qual ele vivia.
- Ele está de boa-fé - disse Porbus.
- Sim, meu amigo - respondeu o ancião, despertando -, na
arte é preciso fé, fé, e viver muito tempo com a própria obra para produzir
semelhante criação. Algumas dessas sombras custaram-me muito trabalho. Olhe
sobre a face, ali, abaixo dos olhos, há uma leve penumbra que, se a observarem
na natureza, parecer-lhes-á quase intraduzível. Pois bem, julgam vocês que esse
efeito não me custou trabalhos inauditos para reproduzi-lo? Mas também, meu
caro Porbus, olha atentamente para o meu trabalho e compreenderás melhor o que
eu te dizia sobre o modo de tratar o modelado e os contornos. Olha a luz do
seio e vê como, por uma série de retoques e de realces fortemente empastados,
consegui agarrar a verdadeira luz e combiná-la com a alvura lustrosa dos tons
iluminados; e, como por um trabalho oposto, apagando as saliências e o
grão da pasta, pude, à força de amaciar o contorno da minha figura, mergulhada nos
semitons, suprimir até a ideia de desenho e de meios artificiais, e dar-lhe o
aspecto e o próprio ondulado da natureza. Aproximem-se e verão melhor esse
trabalho. De longe, ele desaparece. Vejam! ali, creio, ele é bem visível.
E com a ponta do pincel designava aos dois pintores um bloco
de cor clara.
Porbus bateu no ombro do ancião, virando-se para Poussin:
- Sabe que vemos nele um bem grande pintor? - disse.
- Ele é ainda mais poeta do que pintor - respondeu Poussin
gravemente.
- Aqui - prosseguiu Porbus, tocando a tela - acaba a nossa
arte sobre a terra.
- E, daí, vai perder-se no céu - disse Poussin.
- Quanto gozo nesse pedaço de tela! - exclamou Porbus.
O ancião, absorto, não os ouvia e sorria àquela mulher
imaginária.
- Mas cedo ou tarde ele se aperceberá de que não há nada na
sua tela! - exclamou Poussin.
- Nada na minha tela! - disse Frenhofer, olhando
alternativamente os dois pintores e seu pretenso quadro.
- Que fez você! - disse Porbus em voz baixa a Poussin.
O velho segurou com força o braço do rapaz e disse-lhe:
- Nada vês, labrego! tratante! patife! desavergonhado! Para
que, pois, subiste aqui? Meu bom Porbus - disse ele virando-se para o pintor -,
será que você também se está divertindo à minha custa? Responda! sou seu amigo,
diga, teria eu estragado meu quadro?
Porbus, indeciso, não se atreveu a falar; mas a ansiedade
pintada na fisionomia lívida do ancião era tão cruel que ele apontou para a
tela, dizendo:
- Veja!
Frenhofer contemplou seu quadro um instante e cambaleou.
- Nada! nada! E ter trabalhado dez anos!
Sentou-se e chorou.
- Sou pois um imbecíl, um louco! não tenho nem talento
nem capacidade! Não sou senão um homem rico que, ao caminhar, nada mais
faz do que caminhar! Não terei, pois, produzido nada!
Contemplou a tela através de suas lágrimas, ergueu-se
subitamente com orgulho e lançou aos dois pintores um olhar fulgurante:
- Pelo sangue, pelo corpo, pela cabeça de Cristo! vocês são
uns invejosos que me querem fazer crer que ela está estragada, para ma
roubarem! Eu vejo-a! - gritou - ela é maravilhosamente bela...
Naquele momento Poussin ouviu o pranto de Gillette,
esquecida num canto.
- Que tens, meu anjo? - perguntou-lhe o pintor, voltando a
ser um apaixonado.
- Mata-me! - disse ela. - Eu seria uma infame se te
amasse ainda, porque te desprezo... Admiro-te, e me causas horror! Amo-te, e
creio que já te odeio!
Enquanto Poussin ouvia Gillette, Frenhofer cobria sua
Catherine com uma sarja verde, com a séria tranquilidade de um joalheiro que
fechasse suas gavetas ao julgar-se na companhia de hábeis ladrões. Dirigiu aos
dois pintores um olhar profundamente dissimulado, repleto de desprezo e de
desconfiança, pô-los silenciosamente fora de sua oficina, com uma presteza
convulsiva; depois, à porta de sua casa disse-lhes:
- Adeus, meus amiguinhos.
Esse adeus gelou os dois pintores. No dia seguinte, Porbus,
inquieto, voltou para ver Frenhofer e soube que ele morrera à noite, depois de
ter queimado suas telas.
Honoré de Balzac
(Paris, Fevereiro de 1832)
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