«Retirantes»
Os Retirantes, por Cândido Portinari
155- «RETIRANTES»
Os últimos habitantes da vila deviam abandoná-la naquela
noite. Desde que, com a continuação das ventanias doidas após o dia de São
José, se perdera a esperança de inverno, os lavradores, deixando os roçados e a
casa, haviam iniciado a descida para o litoral. Pelas várzeas combustas, onde a
lama rachara ao sol, partindo-se em escamas escuras como a carapaça de uma
tartaruga monstruosa, branqueavam, aqui ali, os esqueletos do gado morto de
sede e fome. Não se ouvia o pipilo de um pássaro ou o rumorejo de uma fronde.
Apenas, de e em longe, quebrando a monotonia da solidão, um cardo abria as
folhas sobre uma pedra, estendendo as mãos espinhentas e verdes, como se
amaldiçoasse, mudo, as radículas que o acorrentavam. E nas caatingas mortas, o
vento a investir contra os galhos secos, contra as flechas negras em que se
haviam transformado os arbustos sem vida, como se, reconhecendo a sua culpa na
extensão da calamidade, quisesse castigar-se, chicotear-se, flagelar-se com
ele. E castigando-se, chicoteando-se, flagelando-se, corria, gemia, gania,
levantando redemoinhos de poeira com os seus furiosos pés invisíveis.
Enferma em casa, nos arrabaldes da vila, a velha Raimunda
acompanhava sem surpresa nem revolta a marcha da Inimiga. Vira morrer no
terreiro, estorcendo-se, o genro, como assistira à agonia do marido, vinte anos
antes, na seca de 88. Dias depois, morreu-lhe também a filha. Homens piedosos
levaram os dois corpos ao cemitério, deixando-a sozinha na choça, estirada, com
febre, sobre uma suja esteira de carnaúba.
À tarde, quando procurava raízes selvagens para comer,
soubera, por umas mulheres retirantes, que a vila estava quase deserta. Os
moradores mais resistentes e teimosos preparavam-se para fugir naquela noite, à
primeira claridade da lua. Se ela não os acompanhasse na fuga, seria, em breve,
magra e velha, o último pasto dos urubus esfomeados.
Como lhe seria possível, porém, fugir, se não existia na
palhoça um único pedaço de pano com que velasse a nudez? Como poderia aliar-se
à caravana dos últimos fugitivos se vivia, há duas semanas, sem um molambo
sequer, sobre a pele engelhada? Que amigos lhe suportariam a companhia incômoda
se ela os envergonharia pelas estradas com o triste espetáculo da sua miséria?
Um pensamento macabro iluminou-lhe, num clarão de relâmpago,
o espírito brutalizado pela fome. Cadavérica e horrenda, com as falripas da
cabeleira falha a tombar, grisalhas, sobre os ombros e as espáduas, onde os
ossos furavam a pele suja, a velha encaminhou-se, cambaleando, para o casebre,
levantou a custo a enxada de roça que pertencera ao genro, e tomou o caminho da
várzea, onde os grilos trilavam aflitamente, anunciando a eclosão aérea das
estrelas.
Anoitecia, quando a velha, afastando com esforço duas
estacas da cerca, penetrou no cemitério. Olhou em torno, com os olhos em febre.
Aves agoureiras, espantadas, fugiram num vôo rasteiro. No Cruzeiro tosco,
emergindo de um tumulto de montes de areia recentes, e de cruzes apressadas e
rústicas, gargarejavam o seu canto noturno, saudando a treva, precursora
silenciosa da Morte.
Um frio súbito percorreu o corpo da megera, arrepiando-lhe
os cabelos, que o suor empastava. Tomou, porém, da enxada, e parou, corajosa,
diante de uma das sepulturas mais frescas, junto à porta da casa dos mortos. E
pôs-se a cavar com fúria, num apelo desesperado às forças que lhe restavam. Ao
balanço do seu corpo esguio, impelindo a enxada, os seios flácidos e compridos
fustigavam-lhe as costelas e o ventre magro, oscilando, doidos, à semelhança de
dois badalos sem eco de uma velha torre desmoronada. Os pés enfiavam-se pela
areia frouxa, que o sol amornara. Os braços agitavam-se-lhe descompassados,
secos, sem ritmo, precipitando os movimentos, num trabalho mecânico e
diabólico.
De repente, a enxada, soou, surda. Um cheiro de carniça
desprendeu-se da terra, subiu, empestou o ambiente. A virago abaixou-se sobre a
cova rasa, e puxou para cima, a custo, o leve cadáver que ali dormia. A noite
havia caído, trevosa e lúgubre, impedindo que ela reconhecesse o defunto. Viu,
apenas, que era corpo de mulher. Com os dedos trêmulos, percorreu-lhe,
tateando, a cintura frágil, encharcada de uma umidade repugnante,
desapertou-lhe a saia, que lhe puxou pelos pés, desabotoou-lhe o casaco frouxo,
arrancou-o em dois safanões, e, amassando as duas peças de roupa, sem olhar
para trás, passou, de novo, a cerca, e saiu, nua e suja de terra, a correr
desesperadamente para a várzea, rumo da estrada por onde desciam, dia e noite,
as levas de retirantes.
Fatigada, tropeçou no esqueleto de uma alimária, e rolou por
terra, a pequena distância do caminho. Desfaleceu. Quando recuperou os
sentidos, por milagre das suas energias de ferro, era dia alto. Sentou-se na
terra frouxa, e quente. Olhou em torno. E, os olhos fora das órbitas,
escancarou a boca num grito que não teve forças para emitir.
Ao seu lado, amarfanhados e fétidos, estavam embolados, em
trouxa, a saia e o casaco da filha...
Humberto de Campos
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