«A Fronteira de Asfalto»
Conto de José Luandino Vieira
158- «A FRONTEIRA DE ASFALTO»
“A menina das tranças loiras olhou para ele, sorriu e
estendeu a mão.
- Combinado?
- Combinado?
- Combinado – Disse ele.
Riram os dois e continuaram a a andar, pisando as flores violeta que caiam das
árvores.
- Neve cor de violeta – disse ele.
- Mas tu nunca viste neve…
- Pois não, mas creio que cai assim…
- É branca, muito branca…
- Como tu!
E um sorriso triste aflorou medrosamente aos lábios dele.
- Ricardo! Também há neve cinzenta… cinzenta escura.
- Lembra-te da nossa combinação. Não mais…
- sim, não mais clara da tua cor. Mas quem falou primeiro fostes tu.
Ao chegarem a ponta do passeio ambos fizeram meia volta e vieram pelo mesmo
caminho.
A menina tinha tranças loiras e laços vermelhos.
- Marina, lembras-te da nossa infância? – e voltou-se subitamente para ela.
Olhou-a nos olhos. A menina baixou o olhar para a biqueira dos sapatos pretos e
disse:
- Quando tu fazias carros com rodas de patins e me empurravas à volta do
bairro?
- Sim lembro-me…
A pergunta que o persegui há meses saiu, finalmente.
- E tu achas que está tudo como então? Como quando brincávamos à barra do lenço
ou às escondidas? Quando eu era o teu amigo Ricardo, um pretinho muito limpo e
educado, no dizer da tua mãe? Achas…
E com as próprias palavras ia-se excitando. Os olhos brilhavam e o cérebro
ficava vazio, porque tudo o que acumulara saía numa torrente de palavras.
- Que eu posso continuar a ser teu amigo…
- Ricardo!
- Que a minha presença na tua casa…no quintal da tua casa, poucas vezes dentro
dela ! Não estragará os planos da tua família a respeito das tuas relações…
Estava a ser cruel. Os olhos azuis de Marina não lhe diziam nada. Mas estava a
ser cruel.
O som da própria voz fê-lo ver isso. Calou-se subitamente.
- Desculpa – disse por fim.
Virou os olhos para o seu mundo. Do outro lá da rua asfaltada não havia
passeio. Nem árvores de flores violeta. A terra era vermelha. Piteiras. Casas
de pau-a-pique a sombra de mulembas. As ruas de areia eram sinuosas. Uma ténue
nuvem de poeira que o vento levantava cobria tudo. A casa dele ficava ao fundo.
Via-se do sítio donde estava. Amarela. Duas portas, três janelas. Um cercado de
aduelas e arcos de barril.
- Ricardo – disse a menina das tranças loiras – tu disseste isso para quê?
Alguma vez te disse que não era tua amiga? Alguma vez que te abandonei ? Nem
os comentários da minhas colegas, nem os conselhos velados dos professores, nem
a família que se tem voltado contra mim…
- Está bem. Desculpa. sabes, isto fica dentro de nós. Tem de sair em qualquer
altura.
E lembrava-se do tempo em que não havia perguntas, respostas, explicações.
Quando ainda não havia a fronteira de asfalto.
- Bons tempos – encontrou-se a dizer.
- A minha mãe era a tua lavadeira. Eu era o filho da lavadeira. Servia de
palhaço à menina Nina. A menina Nina dos caracóis loiros. Não era assim que te
chamavam? – Gritou ele.
Marina fugiu para casa. Ele ficou com os olhos marejados, as mãos ferozmente
fechadas e as flores violeta caindo-lhe na carapinha negra.
Depois, com passos decididos, atravessou a rua, pisando com raiva a areia
vermelha e sumiu no emaranhado do seu mundo. Para trás ficava a ilusão.
Marina viu-o afastar-se. Amigos desde pequenos. Ele era o filho da lavadeira
que distraía a menina Nina. Depois a escola. Ambos na mesma escola, na mesma
classe. A grande amizade a nascer.
Fugiu para o quarto. Bateu com a porta. Em volta o aspecto luminoso,
sorridente, o ar feliz, o calor suave das paredes
cor-de-rosa. E lá estava
sobre a mesa de estudo «… Marina e Ricardo – amigos para sempre». Os pedaços da
fotografia voaram e estenderam-se pelo chão. Atirou-se para cima da cama e
ficou de costas a olhar o tecto. Era ainda o mesmo candeeiro. Desenhos de Walt Disney. Os desenhos iam-se diluindo nos olhos marejados. E tudo se cobriu de
névoa. Ricardo brincava com ela. Ela corria feliz, o vestido pelos joelhos, e
os caracóis loiros brilhavam. Ricardo tinha uns olhos grandes. E subitamente
ficou a pensar no mundo para lá da rua asfaltada. E reviu as casas de pau-a-pique onde viviam famílias numerosas. Num quarto como o dela dormiam os quatro
irmãos de Ricardo…Porquê? Porque é que ela não podia continuar a ser amiga
dele, como fora em criança? Porque é que agora era diferente?
- Marina, preciso falar-te.
A mãe entrara e acariciava os cabelos loiros da filha.
- Marina, já não és nenhuma criança para que não compreendas que a tua amizade
por esse… teu amigo Ricardo não pode continuar. Isso é muito bonito em criança.
Duas crianças. Mas agora … um preto é um preto…
As minhas amigas todas falam da minha negligência na tua educação. Que te
deixei… bem sabes que não é por mim!
- Está bem, eu faço o que tu quiseres. Mas agora deixa-me só.
O coração vazio. Ricardo não era mais que uma recordação longínqua. Uma
recordação ligada a uns pedaços de fotografia que voavam pelo pavimento.
- Deixas de ir com ele para o liceu, de vires com ele do liceu, de estudares
com ele…
- Está bem mãe.
E virou a cabeça para a janela. Ao longe percebia-se a mancha escura das casas
de zinco e das mulembas. Isso trouxe-lhe novamente Ricardo. Virou-se
subitamente para a mãe. Os olhos brilhantes, os lábios arrogantemente
apertados.
- Está bem , está bem, ouviu? – gritou ela.
Depois mergulhando a cara na colcha chorou.
Na noite de luar, Ricardo, debaixo da mulemba, recordava. Os giroflés e a barra
do lenço. Os carros de patins. E sentiu necessidade imperiosa de falar-lhe.
Acostumara-se demasiado a ela. Todos aqueles anos de camaradagem, de estudo em
comum.
Deu por si a atravessar a fronteira. Os sapatos de borracha rangiam no asfalto.
A lua punha uma cor crua em tudo. Luz na janela. Saltou o pequeno muro. Folhas
secas rangeram debaixo dos seus pés. O “Toni” rosnou na casota. Avançou devagar
até a varanda, subiu o rodapé e bateu com cuidado.
- Quem é? – a voz de Marina veio de dentro, íntima e assustada.
- Ricardo!
- Ricardo? Que queres?
- Falar contigo.Quero que me expliques o que se passa.
- Não posso. Estou a estudar. Vai-te embora. amanhã na paragem do maximbombo. Vou mais cedo…
- Não. Precisa de ser hoje. Preciso de saber tudo já.
De dentro veio a resposta muda de Marina. A luz apagou-se. Ouvia-se chorar no
escuro. Ricardo voltou-se lentamente. Passou as mãos nervosas pelo cabelo. E,
subitamente o facho da lanterna do polícia caqui bateu-lhe na cara.
- Alto aí! O qu’ é que estás a fazer?
Ricardo sentiu medo. O medo do negro pelo polícia. Dum salto atingiu o quintal.
as folhas secas cederam e ele escorregou. O “Toni” ladrou.
Ricardo levantou-se e correu para o muro.O polícia correu também. Ricardo
saltou.
- Pára, pára! – gritou o polícia.
Ricardo não parou. Saltou o muro. Bateu no passeio com a violência abafada
pelos sapatos de borracha. Mas os pés escorregaram quando fazia o salto para
atravessar a rua. Caiu e a cabeça bateu violentamente de encontro a aresta do
passeio.
Luzes acenderam-se em todas as janelas. O “Toni” ladrava. Na noite ficou o
grito loiro da menina de tranças.
Estava um luar azul de aço. A lua cruel mostrava-se bem. De pé o polícia caqui
desnudava com a luz da lanterna o corpo caído. Ricardo , estendido do lado de
cá da fronteira , sobre as flores violeta das árvores do passeio.
Ao fundo, cajueiros curvados sobre casas de pau-a-pique estendem a sombra
retorcida na sua direcção.”
José Luandino Vieira
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