«A Palavra Mágica»
Conto de Vergílio Ferreira
159- «A PALAVRA MÁGICA»
Nunca o Silvestre tinha tido uma pega com ninguém. Se às
vezes guerreava, com palavras azedas para cá e para lá, era apenas com os
fundos da própria consciência. Viúvo, sem filhos, dono de umas leiras herdadas,
o que mais parecia inquietá-lo era a maneira de alijar bem depressa o dinheiro
das rendas. Semeava tão facilmente as economias, que ninguém via naquilo um
sintoma de pena ou de justiça — mesmo da velha —, mas apenas um desejo urgente
de comodidade. Dar aliviava. Pregavam-lhe que o Paulino ia logo de casa dele
derretê-lo em vinho, que o Carmelo não comprava nada, livros ou cadernos ao
filho, que andava na instrução primária. As moedas rolavam-lhe para dentro da
algibeira e com o mesmo impulso fatal rolavam para fora, deixando-lhe, no
sítio, a paz.
Ora um domingo, o Silvestre ensarilhou-se, sem querer, numa
disputa colérica com o Ramos da loja. Fora o caso que ao falar-lhe, no correr
da conversa, em trabalhadores e salários, Silvestre deixou cair que, no seu
entender, dada a carestia da vida, o trabalho de um homem de enxada não era de
forma alguma bem pago. Mas disse-o sem um desejo de discórdia, facilmente,
abertamente, com a mesma fatalidade clara de quem inspira e expira. Todavia, o
Ramos, ferido de espora, atacou de cabeça baixa:
— Que autoridade tem você para falar? Quem lhe encomendou o
sermão?
— Homem! — clama o Silvestre, de mão pacífica no ar. — Calma
aí, se faz favor. Falei por falar.
— E a dar-lhe. Burro sou eu em ligar-lhe importância. Sabe
lá você o que é a vida, sabe lá nada. Não tem filhos em casa, não tem
quebreiras de cabeça. Assim, também eu.
— Faço o que posso — desabafou o outro.
Silvestre já se dispusera a ouvir tudo com resignação. Mas,
à palavra “inócuo”, estranha ao seu ouvido montanhês, tremeu. E à cautela, não
o codilhassem por parvo, disse:
— «inoque» será você.
Também o Ramos não via o fundo ao significado de inócuo.
Topara por acaso a palavra, num diálogo aceso de folhetim, e gostara logo dela,
por aquele sabor redondo a moca grossa de ferros, cravada de puas. Dois homens
que assistiam ao barulho partiram logo dali, com o vocábulo ainda quente da
refrega, a comunicá-lo à freguesia:
— Chamou-lhe tudo, o patife. Só porque o pobre entendia que
a jorna de um homem é fraca. Que era um paz-de-alma. E um «inoque».
— Que é isso de «inoque»?
— Coisa boa não é. Queria ele dizer na sua que o Silvestre
não trabalhava, que era um lombeiro, um vadio.
Como nesse dia, que era domingo, Paulino entrara em casa com
a bebedeira do seu descanso, a mulher praguejou, como estava previsto, e cobriu
o homem de insultos como não estava inteiramente previsto:
— Seu bêbado ordinário. Seu «inoque» reles.
Quando a palavra caiu da boca da mulher, vinha já tinta de
carrascão. E desde aí, «inoque» significou, como é de ver, vadio e bêbado.
Ora tempos depois apareceu na aldeia um sujeito de
gabardina, a vender drogas para todas as moléstias dos pobres. Pedra de queimar
carbúnculos, unguentos de encoirar, solda para costelas quebradas. Vendeu todo
o sortido. Mas logo às primeiras experiências, as drogas falharam. Houve pois
necessidade de marcar a ferro aquela roubalheira de gabardina e unhas polidas.
E como o vocabulário dos pobres era curto, alguém se lembrou da palavra
milagrosa do Ramos. Pelo que, «inoque» significou trampolineiro ou ladrão dos
finos. Mas como havia ainda os ladrões dos “grossos”, não foi difícil meter
dentro da palavra mais um veneno.
Como, porém, as desgraças e a cólera do povo pediam cada dia
termos novos para se exprimirem, “inócuo” foi inchando de mais significações.
Quando a Rainha deu um tiro de caçadeira, num dia de arraial, ao homem da
amante, chamaram-lhe, evidentemente, «inoque», por ser um devasso e um
assassino de caçadeira. Daí que fosse fácil meter também no «inoque» o
assassino de faca e a cróia de porta aberta.
“Inócuo” dera a volta à aldeia, secara todo o fel das
discórdias, escoara todo o ódio da população. A moca grossa de ferro, seteada
de puas, era agora uma arma terrível, quase desleal, que só se usava quando se
tinha despejado já toda a cartucheira de insultos. Até que o Perdigão dos
Cabritos entrou pela ponte norte da aldeia, com o cavalo carregado de reses,
num dia de feira, e se azedou com o taberneiro, quando trocava um borrego por
vinho. De olhos chamejantes, perdido, já no quente da refrega, o taberneiro
atirou-lhe o verbo da maldição. Houve quem achasse desmedida a vingança do
homem. Perdigão arriou:
— «Inoque» será você.
Também ele não sabia que veneno tinham despejado na palavra,
mas, pelo sim pelo não, aliviou. E pela tarde, enfardelou o termo infame com as
peles da matança, e abalou com ele pela ponte sul. Longos meses a palavra
maldita andou por lá a descarregar o ódio das gentes. Até que um dia voltou a
entrar na aldeia, não já pela ponte sul que dava para a Vila, mas pela ponte
norte que levava a terras sem nome. Vinha em farrapos, na boca de um
caldeireiro, mais estropiada, coberta da baba de todos os rancores e de todos
os crimes. Quando deitava um pingo num caneco de folha, o caldeireiro pegou-se
de razões com o freguês. O dono do caneco correu uma mão amiga pelas costas do
vagabundo:
— Lá ver isso, velhinho. O combinado foram cinco tostões.
— Não me faça festas que eu não sou mulher, seu «inoque»
reles.
E “inócuo” significou um nome feio para um homem. Então o
ajudante, ou o que era, do caldeireiro, tentou deitar água na fogueira.
— Cale-se também você, seu «inoque» ordinário. A mim não me
mata você à fome como fez a seu pai.
A aldeia em peso tremeu. Era possível a qualquer apanhar com
o palavrão na cara e ficar coberto de peste. Eis porém que uma vez o filho do
Gomes, que andava no colégio da Vila, insultado de «inoque» por um colega, numa
partida de bilhar, lembrou-se à noite de ver no dicionário a fundura vernácula
da ofensa. Procurou «inoque». Não vinha. Procurou «noque». Também não vinha.
Furioso, buscou à toa, «quinoque», «moque», «soque». Nada. Quando a mãe o
procurou, para ver se estudava, encontrou-o às marradas no dicionário. Choroso,
o rapaz declarou:
— O meu «pagnon» chamou-me «inoque», mãe. Queria saber o que
era. Mas não vem no dicionário.
— Não vejas! — clamou a mulher, de braços no ar. — Deixa lá!
Não te importes.
— Mas que quer dizer?
— Coisas ruins, meu filho. Herege, homem sem religião e mais
coisas más. Não vejas!
Começaram então a aparecer as primeiras queixas no tribunal
da Vila, contra a injúria de «noque», «inoque» e, finalmente, de “inócuo”,
consoante a instrução de cada um. Como a palavra estropiada era um termo
bárbaro nos seus ouvidos cultos, o juiz pedia a versão da injúria em linguagem
correcta, sendo essa versão que instruía os autos.
— Chamou-me «noque».
— Absolutamente. Mas que queria ele dizer na sua?
— Pois queria dizer que eu era ladrão.
E escrevia-se “ladrão”. Pelo mesmo motivo, gravava-se a
ofensa, de outras vezes, nos termos de “assassino”, “devasso”, ou “bêbedo”.
Ora um dia foi o próprio Bernardino da Fábrica que moveu um
processo ao guarda-livros pela injúria de «inócuo». Metida a questão nos
trilhos legais, o Bernardino procurou o juiz, para ver se podia ajustar,
previamente, uma bordoada firme no agressor. Mas aí, o juiz atirou uma palmada
à coxa curta, clamou:
— Homem! Agora entendo eu. «Noque» era ‘inócuo’!
E admitindo que o vocábulo contivesse um veneno insuspeito,
pegou num dicionário recente, o último modelo de ortografia e significados.
Então pasmou de assombro, perante o escuro mistério que carregara de pólvora o
termo mais benigno da língua: “inocuo’ significa apenas «que não faz dano,
inofensivo”. E pôs o dicionário aberto diante da ofensa de Bernardino. O
industrial carregou a luneta, e longo tempo, colérico, exigiu do livro insultos
que lá não estavam.
— Nada feito — repetia o juiz. — O homem chamou-lhe,
correctamente, “pessoa incapaz de fazer mal a alguém”.
— Mas há a intenção — opôs o advogado, mais tarde, quando se
voltou ao assunto. — Há o sentido que toda a gente liga à palavra.
— Nada feito — insistia o juiz. — “Inócuo” é ‘inofensivo’
até nova ordem.
Então o advogado desabafou. Também ele sabia, como toda a
gente culta, que “inócuo” era um pobre diabo dum termo que não fazia mal a
ninguém. Sabia-o, com um saber analítico, desde as aulas de Latim do seu Padre
Mestre. Mas não ignorava também que o ódio humano nem sempre conseguia razões
para se justificar. E nesse caso, qualquer palavra, mesmo inofensiva, era um
pendão desfraldado no pau alto da vingança. Bernardino fora ofendido. Mas podia
querer amanhã ofender e as razões serem curtas para o seu rancor. Uma palavra
informe, soprada de todos os furores, seria então a melhor arma. Despir o
mastro da bandeira seria desnudar-se na dureza bárbara do pau. ‘Inócuo’ era uma
maravilha para a última defesa da racionalidade humana, pelos ocos esconderijos
onde podiam ocultar-se todos os rancores e maldições. “Inócuo” era um benefício
social. Não havia que emendar-se a vida pelo dicionário. Havia que forçar-se o
dicionário a meter a vida na pele.
— Cultive-se o “inócuo”. Salvemo-lo, para nos salvarmos.
Desgraçadamente, porém, os receios do advogado eram vãos. A
vida, de facto, emendara o dicionário. Como bola de neve, “inócuo” rolara do
ódio alto dos homens e longo tempo levaria a derreter o calor da compreensão e
da justiça. Foi assim que o filho do Gomes, depois de ter encontrado a correspondência
vernácula da injúria do «pagnon», tentou reabilitar a palavra excomungada.
Esbaforido, foi com o dicionário aberto no sítio maldito, da mãe para o pai, do
pai para os amigos. Mas ninguém o entendeu. «Noque» ou “inócuo” era um anátema
verde de pus.
— Que importa o que dizem? — clamou o heroísmo do
rapaz. — Podem chamar-me «inoque» ou “inócuo”, que não ligo. Agora sei o que
quer dizer.
Dias depois, porém, um colega precisou de o insultar, e
arremessou-lhe outra vez com o termo nefando. Toda a gente conhecia já a
opinião do dicionário. Mas o furor era sempre mais forte do que o simples livro
impresso.
Pelo que, nessa noite, o filho do Gomes não dormiu,
preocupado apenas com descobrir uma maneira profícua de sovar bem o colega,
para desforra integral.
Vergílio Ferreira
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